sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Michel Onfray, o filósofo francês que desafia os círculos acadêmicos





Desconforme com o modelo educativo tradicional, Onfray criou uma Universidade onde não se fazem exames nem se conferem títulos. Seus textos combinam a filosofia com gastronomia, religião, anarquismo e a busca do prazer.


Segue artigo de Héctor Pavón publicado no jornal argentino Clarín, 11-02-2008.


A tradução é do Cepat.

Há uma Universidade na cidade de Caen, França, onde um filósofo chamado Michel Onfray dá aulas para auditórios lotados de ouvintes. Não são alunos tradicionais, são pessoas que vão à universidade para aprender sem buscar títulos, mas saberes finamente selecionados. É esse o espírito que rege a escritura deste pensador que se mantém afastado dos círculos acadêmicos que costuma defenestrar. Produz textos livres que combinam filosofia com gastronomia, religião, anarquismo, história e a busca do prazer, entre outras disciplinas e ocorrências.

Muitos desses livros (escreveu mais de quarenta) foram editados aqui [Argentina] ou importados e são lidos apaixonadamente. Somente em 2007 foram editados quatro: La filosofía feroz (Libros del Zorzal); La potencia de existir. Manifiesto hedonista (De la Flor); El cristianismo hedonista. Contrahistoria de la filosofía II e Las sabidurías de la antigüedad (Anagrama). Há um crescente interesse por seu pensamento e por sua atitude antiintelectual que seduz e multiplica leitores argentinos.

Alguns de seus livros começaram a circular nos anos 90: A razão gulosa e O ventre dos filósofos [No Brasil, ambos são editados pela Rocco], por exemplo. Esse modo de analisar a partir da filosofia os hábitos culinários chamou a atenção, e seu nome começou a circular nas livrarias, faculdades e círculos de discussão filosófica fora das universidades. Depois se conheceu um livro bem divertido sobre a vida dos filósofos cínicos e de Diógenes em particular, Cinismos. O ateísmo e o hedonismo são os temas que ocupam seu pensamento desde sempre.

O livro Tratado de Ateologia [Martins Fontes, 2007] vendeu 200 mil exemplares só na França e também provocou reações ásperas por parte de grupos religiosos. Foram publicados três livros que tentaram rebater seus postulados e também foi aberto um blog intitulado “Contra Michel Onfray”. Ali fazem fila intelectuais e crentes em geral para “pegar” Onfray. No blog se pode ler: “Michel Onfray, nascido em 1959 (depois de JC) pretende desencaixar tudo. Inspirado nas correntes de idéias marxistas e nietzscheanas, prega a descristianização. Suas propostas são virulentas, cultiva o desprezo, propaga idéias caluniosas e blasfemas”. Também se poderia dizer que se encarregou de historiar o prazer ou sua carência. O seu caminho também fustiga o cristianismo e ao mesmo tempo resgata, em El cristianismo hedonista, santos heréticos e sábios licenciosos cristãos que participaram de banquetes sexuais.

Onfray teve uma infância muito dura, sem família. Graças à filosofia se refez de um duro começo: “A filosofia me permitiu sobreviver à tragédia que foi para mim ser enviado a um orfanato por meus próprios pais quando eu tinha dez anos. Os livros, a leitura me salvaram nesse momento e depois me garantiram a salvação novamente na minha adolescência, quando a filosofia funcionou em mim como o sentido, a verdade, a certeza, a razão que ninguém me havia transmitido: creio que a filosofia é uma terapia, o que séculos de filosofia mostraram, sempre que não foram cristãos...”, diz desde Argentan, sua cidade natal.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Dois exemplos da geopolítica na nova ordem "imperial"


Duas pequenas reportagens extraídas hoje do site UOL ilustram com clareza a configuração geopolítica "imperial" da nova ordem que se anuncia no início deste milênio.


Primeiro exemplo:

Integração à UE é falsa promessa da Europa para os Bálcãs



Sérvia, Kosovo, Montenegro, Macedônia. A União Européia mostrou a cenoura da afiliação a todos esses países. Mas quem na UE quer ver o bloco aumentar? Quase ninguém

Hans-Jürgen Schlamp
Em Bruxelas


A Europa é uma potência mundial, pelo menos em princípio. Com a declaração divulgada na segunda-feira pelos 27 ministros das Relações Exteriores da União Européia, tornou-se mais ou menos a política oficial do bloco: a Europa, diz a declaração, terá um papel de liderança na estabilidade de todos os Bálcãs ocidentais.

Nos próximos 120 dias, cerca de 2 mil policiais, peritos judiciais e especialistas do serviço civil seguirão para o recém-independente Kosovo para ajudar a estabelecer a estrutura de trabalho oficial necessária para um país funcionar. Bruxelas entrou no clube de elite das potências que assumiram total responsabilidade pela segurança e a economia de um território estrangeiro. Os outros membros modernos desse clube são Moscou e Washington.


Garoto segura bandeiras sérvias durante protesto no vila de Gracanica, em Kosovo

Como exatamente isso vai funcionar no caso de Kosovo -e no resto dos Bálcãs ocidentais- é há muito tempo um tema para "brainstorming" e sessões de planejamento. A estratégia resultante depende em grande parte de dois instrumentos: um envolve dinheiro e o outro mostra a cenoura do eventual acesso à União Européia. Os países que se comportarem receberão primeiro um pacote de ajuda econômica e então, em algum momento, a identidade de sócio, completa, com a paz e a prosperidade que a acompanham.

A lógica política é fácil de seguir. Oferecer aos países da antiga Iugoslávia uma "perspectiva européia", como se diz nos salões de Bruxelas, vai encorajar os vários grupos étnicos, religiosos e lingüísticos da região a abandonar qualquer idéia de novos derramamentos de sangue.

Mas há um detalhe: alguns -talvez a maioria- dos membros da UE estão trabalhando ativamente contra essa vaga promessa de afiliação feita aos sérvios, bósnios, montenegrinos e albaneses. Bruxelas tem de andar na corda bamba e oferecer a esses países o prêmio da afiliação sem realmente dá-la. O motivo disso é claro: com o acesso da Romênia e Bulgária à UE em 1º de janeiro de 2007, a disposição do grupo de se expandir ainda mais encolheu para zero.

A Spiegel Online examina rapidamente as possibilidades de acesso à UE de cada país dessa região inclinada a crises:

Croácia - próximo membro da UE?
A Croácia é a primeira candidata ao acesso na sala de espera dos Bálcãs, e como tal a primeira a ser afetada pela nova atitude européia em relação à expansão. Há muito tempo disseram que o país entraria para o clube em 2009. Mas hoje em dia poucos em Bruxelas acreditam que a Croácia será convidada para embarcar antes de 2011 -apesar das negociações continuarem em bom ritmo. As negociações começaram em 3 de outubro de 2005 e vão bem, segundo um recente relatório da Comissão Européia. A economia do país está crescendo e as reformas jurídicas, conforme os regulamentos da UE, estão bem encaminhadas.

Mas enquanto a comissão demonstrou uma disposição a olhar para outro lado quando avaliou falhas óbvias tanto na Romênia quanto na Bulgária, antes da ampliação de 2007, hoje minúcia é o nome do jogo -especialmente quando se trata de inadequações jurídicas ou deficiências no combate à corrupção. E enquanto os burocratas europeus se tornam mais detalhistas a euforia diminui no país -resultando em menos disposição para cooperar entre seus políticos. As conseqüências podem ser vistas nos choques recentes sobre direitos de pesca ao largo da costa da Croácia, ou disputas sobre o acesso da vizinha Eslovênia às águas internacionais. Zagreb está se tornando menos disposta a compromissos. Os que são forçados a correr atrás da cenoura por muito tempo eventualmente perderão o apetite.

Macedônia - esperando pelos vizinhos?
Os macedônios ainda estão ávidos para entrar na UE, e o país, que fica ao norte da Grécia, é o segundo candidato oficial à afiliação nos Bálcãs. Mas as negociações de acesso ainda nem começaram -Bruxelas também está ganhando tempo aqui. O país fez rápido progresso na implementação de uma estrutura de pré-acesso e até deu passos na direção de controlar a corrupção, como Bruxelas notou. O crescimento sólido com inflação limitada também pode ser colocado no lado positivo da balança, mas a UE nota uma constante tensão política no país entre a maioria eslava e a minoria albanesa. Em suma, a Macedônia não será convidada a entrar para a UE tão cedo, e provavelmente terá de esperar até que seus vizinhos estejam prontos para que possa se unir ao grupo.

Albânia, Montenegro e Bósnia-Herzegovina -ainda não estão prontos.
Todos esperam um futuro no clube europeu. Mas por enquanto, pelo menos, nenhum deles está sequer remotamente perto de preparado. O judiciário e as forças policiais dos três países dificilmente são transparentes, e a corrupção é crescente. Os três provavelmente terão dificuldades econômicas. Bruxelas está planejando enviar um total de 1 bilhão de euros para eles entre 2007 e 2011, pagamentos chamados de "assistência pré-acesso". Especialistas em ampliação de Bruxelas especulam que os três poderão estar prontos para se afiliar até 2015.

Sérvia -irada para sempre?
Belgrado, que já foi a capital da diversificada nação da Iugoslávia e hoje é apenas a capital de uma Sérvia encolhida, se contenta por enquanto em chorar a glória perdida. A Sérvia está chamando seus embaixadores de todos os países, incluindo a Alemanha na quarta-feira, que reconheceram Kosovo. Líderes do governo também estão fazendo pouco para acalmar as emoções aquecidas entre a população e se recusam a assinar acordos negociados com a União Européia. O país teve uma oportunidade de ouro de entrar na pista rápida de acesso à UE, mas mostrou uma disposição de deixar a chance passar por intransigência sobre a questão de Kosovo.

Se Belgrado tivesse apresentado uma lista de exigências em troca de flexibilidade sobre Kosovo -compensação territorial, ajuda financeira ou cronograma para o acesso- teria conseguido a maior parte ou mesmo tudo o que pedisse.

Mas agora as relações entre a Sérvia e a UE chegaram ao fundo do poço. Não vão ficar assim por muito tempo. Os dois lados precisam do outro. Sem a Sérvia a bordo, a estabilidade nos Bálcãs em longo prazo é impossível. E sem a UE a Sérvia não tem futuro.


Segundo exemplo:


Mudança no Paquistão pode impedir ataques contra suspeitos de terrorismo




Eric Schmitt e David E. Sanger



Em Washington

As autoridades americanas chegaram a um discreto acordo com o líder paquistanês, no mês passado, para intensificar os ataques secretos contra suspeitos de terrorismo com aeronaves não tripuladas, lançadas de dentro do Paquistão, disseram altos funcionários de ambos os governos. Mas a perspectiva de mudanças no governo do Paquistão deixaram o governo Bush preocupado com uma possível restrição às operações.
Entre outras coisas, os novos acordos permitiam um aumento no número, área de patrulha e ataques por aeronaves de vigilância armadas Predator, lançadas de uma base secreta dentro do Paquistão -uma estratégia bem mais agressiva para atacar a Al Qaeda e o Taleban.
Mas desde que os partidos de oposição saíram vitoriosos nas eleições no início desta semana, as autoridades americanas temem que o novo acordo mais permissivo possa ser sufocado em sua infância.
Nas semanas que antecederam as eleições de segunda-feira, uma série de encontros com os conselheiros de segurança nacional do presidente Bush resultaram em um relaxamento significativo das regras, segundo as quais as forças americanas poderiam atacar combatentes suspeitos da Al Qaeda e do Taleban nas áreas dos Paquistão próximas da fronteira com o Afeganistão. A mudança, descrita por altos funcionários americanos e paquistaneses que não quiseram ser identificados porque o programa é confidencial, permite aos comandantes militares americanos maior liberdade para escolher entre o que uma autoridade que participou do debate chamou de "cardápio chinês" de opções de ataque.
Em vez de serem obrigados a confirmar a identidade de um líder militante antes de atacar, a mudança permite que os operadores americanos ataquem comboios que tenham as características de conterem líderes da Al Qaeda e do Taleban em fuga, por exemplo, desde que o risco de baixas civis seja considerado baixo.
As novas regras de combate mais flexíveis poderiam ter seu maior impacto na base secreta da CIA no Paquistão, cuja existência foi descrita por altos funcionários americanos e paquistaneses como mantida até agora em segredo para evitar embaraço para o presidente Pervez Musharraf. O presidente, cujo partido foi derrotado nas eleições desta semana por margens que surpreenderam as autoridades americanas, é acusado pelos adversários políticos de ligação estreita demais com os Estados Unidos.
A base no Paquistão abriga um punhado de Predators -aeronaves não tripuladas que são controladas dos Estados Unidos. Dois mísseis de um desses Predators teriam matado um alto comandante da Al Qaeda, Abu Laith al-Libi, no noroeste do Paquistão no mês passado, apesar de um alto funcionário paquistanês ter dito que seu governo ainda não confirmou a presença de Libi entre os mortos. Um porta-voz da CIA se recusou a comentar na quinta-feira qualquer operação no Paquistão.
Os novos acordos com o Paquistão ocorreram após uma viagem ao país, em 9 de janeiro, de Mike McConnell, o diretor de inteligência nacional, e do general Michael V. Hayden, o diretor da CIA. As autoridades americanas se encontraram com Musharraf e com o novo chefe do exército, o general Ashfaq Parvez Kayani, e ofereceram um aumento das operações secretas.
Mas funcionários do governo Bush e especialistas americanos em contraterrorismo estão expressando preocupação com a possibilidade desses acordos poderem ser revistos ou reduzidos pelos vencedores das eleições parlamentares do Paquistão. Os dois partidos vencedores disseram que desejam promover negociações com os líderes tribais pashtun, que se opõem ao governo de Musharraf e que às vezes apóiam o Taleban e dão abrigo aos combatentes estrangeiros da Al Qaeda."Um novo governo poderia chegar a um acordo com os extremistas, o que daria uma certa trégua para o governo", disse Robert L. Grenier, ex-diretor do Centro de Contraterrorismo da Agência Central de Inteligência (CIA).
"Mas isto daria aos extremistas espaço para fornecer santuário para a Al Qaeda e outros extremistas envolvidos em ataques no Afeganistão."
Xenia Dormandy, a diretora para Sul da Ásia do Conselho de Segurança Nacional até 2005, disse na quinta-feira que se as negociações resultassem no tipo de trégua -e recuo de tropas- negociada por Musharraf há quase dois anos, os extremistas provavelmente continuariam se fortalecendo.
"Se tentarem reproduzir o que já vimos, eu não sei por que o resultado seria diferente", ela disse. Mas ela acrescentou que se o exército paquistanês permanecer na área, o governo poderá manter alguma vantagem.
A pergunta sobre o que fazer a seguir no Paquistão provavelmente preocupará o último ano de mandato do governo Bush. Funcionários disseram que há uma pressão clara, mesmo que não declarada, para fazer um último esforço para capturar ou matar Osama Bin Laden antes que Bush deixe o cargo. Mas vários altos funcionários no Departamento de Estado vinham alertando que o apoio pleno do governo a Musharraf era uma estratégia errada que agora poderá fracassar.
Outros funcionários do governo alertaram contra as pessoas fazerem uma interpretação exagerada dos comentários iniciais de Asif Ali Zardari, o líder do Partido do Povo Paquistanês e viúvo da ex-primeira-ministra Benazir Bhutto, sobre fechar acordos com os líderes tribais. Zardari, eles notaram, deixou claro que deseja acabar com o terrorismo e apontou que os terroristas mataram sua esposa, de forma que deseja derrotá-los.
Os partidos de oposição e analistas disseram que as autoridades americanas estavam interpretando erroneamente o resultado das eleições, que foram dominadas pelos partidos seculares, liberais, do país. Uma aliança de partidos religiosos que controlava o governo provincial da Fronteira Noroeste foi retirada do poder e até mesmo perdeu a maioria das cadeiras nas áreas tribais.Segundo os partidos de oposição, um novo governo civil será mais eficaz no combate aos extremistas do que o dominado pelos militares sob Musharraf. Eles pediram por uma estratégia nas áreas tribais semelhante às novas estratégias de contra-insurreição empregadas pelos militares americanos no Afeganistão e no Iraque. Nesses lugares, os Estados Unidos tentaram usar uma combinação de força militar, reconstrução e diálogo político para voltar as tribos locais contra os radicais fundamentalistas.
A pergunta, disseram altos funcionários americanos e paquistaneses na quinta-feira, é como a estratégia para atingir estas metas comuns poderia mudar.
"A curto prazo, haverá alguma confusão e alguns tropeços", disse Henry A. Crumpton, uma ex-autoridade de contraterrorismo do Departamento de Estado. "Mas a médio e longo prazo, haverá a continuidade da cooperação, talvez até mesmo uma mais estreita, devido aos nossos interesses comuns."



David Rohde, em Peshawar, Paquistão, contribuiu com reportagem.


Tradução: George El Khouri Andolfato

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Devemos tornar-nos utópicos, afirma Slavoj Zizek



Slavoj Zizek sustenta que "há situações em que a democracia não funciona, em que ela perde sua substância, em que é preciso reinventar modalidades de mobilização popular".



Segue a entrevista dada a Éric Aeschimann e publicada no Libération, 16-2-08.



Que crítica você faz à democracia?

Talvez a mesma que os conservadores... Os conservadores têm a coragem de admitir que a democracia está num impasse. Riu-se muito de Francis Fukuyama quando anunciou o fim da história, mas hoje todo o mundo aceita a idéia de que o quadro democrático-liberal se impôs para sempre.

Nos contentamos em reclamar um capitalismo de rosto humano, como se falava outrora de um comunismo de rosto humano. Vejam a ficção-científica: visivelmente, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

O capitalismo é o alvo, por atrás da crítica da democracia?

Sejamos claros: a Europa do pós-guerra conheceu um nível médio de felicidade nunca visto. Mas quatro problemas maiores vêm desequilibrar o modelo democrático-liberal.

1) Os indocumentados, os sem-teto, os sem emprego, aqueles que não participam da vida da comunidade, com os quais o Estado não se ocupa mais.

2) A propriedade intelectual, que o mercado não chega mais a regular, como o mostra o destino delirante de Bill Gates, fundador da Microsof.

3) O meio-ambiente, cuja regulação o mercado pode assegurar quando a poluição é mensurável, mas não quando o risco for incalculável – Tchernobyl, as tempestades...

4) A biogenética: estamos em condições de dizer onde começa o humano?

Nesses quatro campos, nem a democracia liberal, nem o capitalismo global têm boas respostas.

Que alternativa existe?

Eu não sou idiota, eu não sonho com um novo partido comunista. Minha posição é mais trágica. Como todo marxista, eu admiro a incrível produtividade do capitalismo e não subestimo a utilidade dos direitos humanos. A prisão de Pinochet exerceu um papel psicológico muito importante no Chile. Mas vejam o venezuelano Chávez. Dizem que ele é populista, demagógico, que não faz nada pela economia, que isso vai acabar mal. Talvez seja verdadeiro... Mas ele é o único a ter incluído os pobres das favelas num processo político. É por isso que eu o apóio. Quando criticam a sua tentação ditatorial, fazem como se, antes dele, tivesse existido uma democracia equilibrada. Ora, foi ele, e somente ele, o vetor da mobilização popular. Para defender isso eu penso que existe o direito de utilizar o aparelho do Estado – chamem isso de Terror, se quiserem.

Para os pensadores liberais, capitalismo e democracia permanecem inseparáveis.

Muitos disseram isso, mas na China está nascendo um capitalismo autoritário. Modelo americano ou modelo chinês: eu não quero viver nessa escolha. É por isso que devemos voltar a ser utópicos. O aquecimento global vai nos levar a reabilitar as grandes decisões coletivas, aquelas que os pensadores antitotalitários dizem que conduzem necessariamente ao gulag. Walter Lippmann mostrou que em situações normais, a condição da democracia é a que a população tenha confiança numa elite que decide. O povo é como um rei: ele subscreve passivamente, sem olhar. Ora, em tempo de crise, esta confiança se evapora. Minha tese é a seguinte: há situações em que a democracia não funciona, em que ela perde sua substância, em que é preciso reinventar modalidades de mobilização popular.

Por isso seu elogio a Robespierre.

O Terror não se resume a Robespierre. Havia então uma agitação popular, encarnada pelas figuras ainda mais radicais, como Baboeuf e Hébert. É preciso lembrar que foram decepadas mais cabeças depois da morte de Robespierre do que antes. De fato, continuou muito legalista. A prova disso é que ele foi preso. O que me interessa nele é aquilo que Walter Benjamin chama de “violência divina”, aquela que acompanha as explosões populares. Eu não gosto da violência física, eu tenho medo dela, mas eu não estou próximo de renunciar a esta tradição da violência popular. Isso nem sempre quer dizer violência sobre as pessoas. Gandhi, por exemplo, não se contentou em organizar as manifestações, mas ele fez boicotes, estabeleceu uma relação de força. Defender os excluídos, proteger o meio ambiente passará por novas formas de pressão, de violência. Amedrontar o capitalismo, não para matar, mas para mudar as coisas. Caso contrário, corremos o risco de cair numa violência maior, numa violência fundamentalista, num novo autoritarismo.

Na perspectiva de uma “violência popular”, um intelectual serve para qualquer coisa?

Para prevenir as formas catastróficas. Para fazer ver as coisas de outra maneira. Deleuze dizia que se há falsas respostas, há também falsas perguntas. Um conselho de filósofo não pode estabelecer um projeto para mobilizar as massas. Mas podemos lançar as idéias e talvez alguma coisa será recuperada. Os motins dos subúrbios da França nasceram de um descontentamento não-articulado a um pensamento, mesmo de maneira utópica. Essa é a tragédia.

Seus amigos de esquerda pensam como você?

O que predomina, sobretudo nos Estados Unidos, é um esquerdismo liberal, tolerante, para quem a menor alusão à noção de verdade já é totalitária, em que é preciso respeitar a história de cada um. Para o filósofo Richard Rorty, o que define o homem é seu sofrimento e sua capacidade de narrá-lo. Para mim, esta esquerda de ressentimento e de impotência é muito triste.





quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

FIDEL

Mais uma vez peço desculpas ao grupo desse blog, mas a comunista impedernida que em mim habita não pode conter o ímpeto de publicar algo sobre o barbudo vivo mais famoso do planeta.
Vou ficar pelo menos 1 semana com a mensagem de "Viva Fidel!" no meu msn, com uma fotinho do "ditador".
A seguir o artigo de Clovis Rossi, como sempre mandando muito bem, sobre Fidel, publicado na Folha de hoje. O melhor texto até agora.


Só a história para fazer um julgamento mais racional sobre dirigente cubano
Ditador comunista, que associou o extraordinário e inegável carisma a uma inquietação permanente, é santo ou demônio, sem meios termos, de acordo com posição ideológica de quem o julga
CLÓVIS ROSSI DO CONSELHO EDITORIAL
Começou ontem, com a renúncia de Fidel Alejandro Castro Ruz, aos 81 anos, a contagem regressiva para se saber se vingará uma de suas frases mais célebres: "A história me absolverá".
Só mesmo a história para emitir um julgamento menos emocional de quem era o governante há mais tempo no poder no planeta: 49 anos. Fidel é santo ou demônio, sem meios termos, de acordo a posição ideológica de quem o julga.A frase completa é algo mais longa: "Podem condenar-me, não importa, a história me absolverá". Foi pronunciada por Fidel como advogado dele próprio, durante o julgamento, em 1953, dos militantes que tentaram ocupar o quartel Moncada, um dos principais do Exército do ditador Fulgencio Batista.A primeira parte da frase cumpriu-se: Fidel foi condenado a 15 anos de prisão. Anistiado em 1955, tratou de apressar a absolvição pela história, que a seu ver seria representada pela derrubada de Batista. Cumpriu-se igualmente a segunda parte. Mas começou então um novo julgamento, sobre os méritos e os defeitos da revolução e, por extensão, do homem que a encarnava.
Comunista desde quando? É comunista desde sempre e escondeu o fato para não alienar aliados do movimento anti-Batista ou é apenas um libertário? O seu primeiro documento político sugere a segunda opção. O manifesto com que ele e seus 165 homens mal equipados se lançaram ao ataque ao Moncada é pouco radical. Pedia até a volta à Constituição de 1940, liberal como quase todas as Cartas latino-americanas. O suficiente para justificar a análise que fez o historiador britânico Hugh Thomas, em seu livro "A Revolução Cubana": "Castro embarcou no ataque ao Moncada sem uma ideologia verdadeiramente elaborada, somente com o anseio de depor o tirano Batista e de acabar com a corrompida sociedade da velha Cuba". Até depois da vitória, na sua primeira visita aos EUA (maio de 1959), o tom era similar: "Digo de maneira clara e definitiva que não somos comunistas". Comunista tardio, só assumiria o comunismo no fim de 1961. A decisão foi tomada praticamente três anos depois de vitoriosa a revolução e de uma sucessão de atos hostis por parte do governo norte-americano, como o bloqueio comercial e a frustrada tentativa de invasão de Cuba por contra-revolucionários financiados e treinados pelos EUA. Paradoxo da história: um comunista tardio tornou-se, com o fim da URSS e do charme do marxismo, no "último dinossauro marxista", na definição do "Le Figaro", de 1995. De todo modo, não se fez comunista pelo método mais usual, que era o de aderir ao Partido Comunista. Na verdade, o partido aceitou a direção de um homem sobre o qual o único consenso, entre admiradores e inimigos, é o de que possui extraordinário carisma, no sentido que o filósofo Max Weber dá ao termo.
"Carisma implica muito mais do que popularidade. O líder carismático é percebido por seus seguidores como dotado de poderes ou qualidades sobre-humanas ou, pelo menos, excepcionais. E ele se percebe a si próprio como "eleito" do alto para cumprir uma missão. Ambos os requisitos se cumpriram em Cuba", escreveu o acadêmico americano Richard Fagen.
Fidel associou o carisma a uma inquietação permanente, que o levou, aos 20 anos (1947), a participar de uma frustrada tentativa de invadir a República Dominicana para depor o ditador Rafael Trujillo. Antes disso, tivera a sua primeira e fracassada experiência de interlocução com os EUA. Aos 14 anos, em 1940, enviou carta a Franklin Delano Roosevelt, na qual dizia ter 12 anos, cumprimentava-o pela reeleição e pedia uma nota de US$ 10, "porque nunca vi uma nota verde de dez dólares americanos e gostaria de ter uma".

Nunca recebeu o dinheiro e foi vítima de 33 tentativas de assassinato, parte delas pela CIA, a agência de inteligência norte-americana. Retórica, ele marcaria a história de Cuba não só com ações mas com uma retórica caudalosa, triunfalista. Ao ir para o exílio no México, em 1955, profetizou: "De tais viagens, ou não se tem retorno, ou se retorna com a ditadura decapitada aos pés". Quase tudo deu errado para os 82 homens que, em 25 de novembro de 1956, embarcaram no iate Granma para decapitar a ditadura. Uma sucessão de tempestades atrasou a chegada e o grupo que deveria apoiar o desembarque foi dizimado pelos soldados de Batista. Não obstante, quando o grupo desembarcou, em 2 de dezembro, voltou a profetizar: "Os dias da ditadura estão contados". Estavam. Às 3h de 1º de janeiro de 1959, Batista e colaboradores fugiram para a República Dominicana. Uma semana depois, Fidel entrou em Havana e voltou a profetizar: "Não nos enganemos, acreditando que, daqui para a frente, será mais fácil. Talvez seja mais difícil". Acertou outra vez. Difícil, entre outras razões, porque os revolucionários iniciaram processo de autofagia. Os primeiros a divergir foram os moderados do Movimento 26 de Julho. Em outubro, o líder guerrilheiro Hubert Matos escreveu a Fidel, pedindo demissão do comando militar da Província de Camaguey e do governo revolucionário. A carta custou a Matos 20 anos de prisão, "sistemáticas perseguições, maus-tratos e torturas", como ele contaria depois. Ele passou a ser, em todos esses 20 anos, um dos símbolos, talvez o maior, de violação aos direitos humanos praticados por uma revolução que Castro jurara, no início, ser "a mais justa e a mais generosa".

Nem Ernesto Guevara, o Che, ficou imune às disputas de poder ou ideológicas no novo regime. Che acreditava cegamente que sua missão era levar a revolução socialista a toda a América Latina. Fidel dependia fortemente da URSS, cuja doutrina oficial era a da "coexistência pacífica" com o Ocidente.Em 1964, "já não restavam dúvidas de que tinham começado a seguir rumos divergentes. A meta de Fidel era consolidar o bem-estar econômico de Cuba e a sua própria sobrevivência política, e, para isso, ele se dispunha a conciliar. A missão de Che era difundir a revolução socialista. Aproximava-se a hora em que deveria deixar Cuba", escreve Jon Lee Anderson, em biografia de Guevara.Três anos depois, Guevara morria na Bolívia e, paradoxalmente, Fidel assumia o papel de propagador da revolução no resto do mundo, ao criar a Olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade).

O confronto de posições com a URSS era uma relíquia de sua nunca escondida irritação com o comportamento do líder soviético Nikita Kruschev na crise dos mísseis em 1962, tido como o momento em que as duas superpotências ficaram mais próximas de um confronto.Para ele, "a forma como [Kruschev] se comportou na crise foi uma séria afronta". Afrontar a "convivência pacífica" da URSS com o internacionalismo revolucionário da Olas parecia uma resposta à "afronta" anterior, mas durou pouco. O bloqueio dos EUA aumentou a dependência dos recursos enviados pela União Soviética. Natural que Cuba entrasse em colapso quando a URSS começou a ruir, a partir de 1989. Entre 1989 e 1992, a economia cubana retrocedeu 35%,e o racionamento (em vigor desde o bloqueio americano) tornou-se mais rígido. Mas Fidel nunca perdeu a pose e sempre teve tratamento de superstar nos encontros internacionais.Ele teve momentos de estrela até no território inimigo: em 1995, teve tratamento de herói em visita ao bairro do Harlem, em Nova York. Ainda se permitiu uma ironia: "Se algum dia os EUA precisarem de médicos, garanto que temos os melhores. Teria o maior prazer em mandá-los para tratar da população que não pode pagar os hospitais caros daqui".Uma ironia que corresponde a uma realização, o êxito no setor de saúde, que nem mesmo os mais ferozes críticos negam. O triunfalismo e a retórica quase sempre inflamada não impediram que, por vezes, Castro preferisse aos clássicos marxistas ou revolucionários o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca para recitar, na Cúpula sobre o Desenvolvimento Social de 1995: "A vida é sonho e, os sonhos, sonhos são".

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O capitalismo deve ser combatido por meio de reivindicações impossíveis ou se deve almejar a conquista do poder do Estado?

Slavoj Zizek




Por: Slavoj Zizek




Uma das lições mais claras das últimas décadas é que o capitalismo é indestrutível. Marx comparava o capitalismo a um vampiro, e hoje um dos pontos que mais se salientam nessa comparação é que os vampiros sempre conseguem se reerguer, mesmo depois de feridos de morte. Até a tentativa de Mao, na Revolução Cultural, de apagar todos os vestígios do capitalismo acabou desembocando no seu retorno triunfal.

A esquerda de hoje reage de maneira bastante variada à hegemonia do capitalismo global e ao seu complemento político, a democracia liberal. Pode, por exemplo, aceitar essa hegemonia, mas continuar a lutar por reformas dentro das suas regras (a social-democracia da Terceira Via).

Ou pode aceitar que essa hegemonia não deixará de existir, mas ainda assim preconizar uma resistência a ela a partir dos seus “interstícios”.

Ou aceitar a futilidade de toda luta, já que a hegemonia é tão abrangente que não há nada que se possa fazer, exceto esperar pela irrupção da “violência divina” — uma versão revolucionária do “só Deus pode nos salvar”, de Heidegger.

Ou reconhecer a futilidade temporária da luta. Após o triunfo do capitalismo global, como a verdadeira resistência é impossível, diz o argumento, a única coisa que podemos fazer, enquanto o espírito revolucionário da classe operária global não se renova, é defender o que ainda resta do Welfare State, confrontando os ocupantes do poder com reivindicações que eles não têm como atender. E, fora isso, nos refugiarmos nos estudos culturais, nos quais é possível prosseguir silenciosamente o trabalho de crítica.

Ou enfatizar que o problema é mais profundo, e que o capitalismo global é, em última instância, um efeito dos princípios subjacentes da tecnologia, ou da “razão instrumental”.

Ou postular que é possível minar o capitalismo global e o poder do Estado não por meio de um ataque direto, mas transferindo o foco da luta para as práticas cotidianas, com as quais se pode “construir um mundo novo”. Desse modo, as fundações do poder do capital e do Estado ficarão cada vez mais abaladas e, em algum momento, o Estado acabará desabando (o exemplo dessa visão é o movimento zapatista, no México).

Ou enveredar pelo caminho “pós- moderno”, transferindo a ênfase da luta anticapitalista para as múltiplas formas de disputa político-ideológica pela hegemonia, enfatizando a importância da rearticulação do discurso.

Ou apostar que é possível repetir, no nível pós-moderno, o gesto marxista clássico de incorporar a “negação” do capitalismo: com a ascensão contemporânea do “trabalho cognitivo”, a contradição entre a produção social e as relações capitalistas tornou-se mais aguda do que nunca, sendo possível pela primeira vez a “democracia absoluta” (essa seria a posição de Michael Hardt e Antonio Negri).

Essas posições não são apresentadas para evitar uma “autêntica” política radical de esquerda — o que elas tentam contornar, na verdade, é a falta dessa posição. A derrota da esquerda, porém não esgota a história dos últimos trinta anos. Existe outra lição, não menos surpreendente: é a de que precisamos aprender com o crescimento da social-democracia de Terceira Via na Europa Ocidental e com a liderança dos comunistas chineses, cujo desenvolvimento, segundo se diz, é o mais explosivo de toda a história do capitalismo.

Eis a lição em poucas palavras: podemos fazer isto melhor. No Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis. Foi Tony Biair quem conseguiu institucionalizá-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blair (mais que o primeiro-ministro John Major) quem realmente deu forma ao thatcherismo.

A resposta de alguns críticos da esquerda pós-moderna a essa situação difícil é propor uma nova política de resistência. Os que ainda insistem em combater o poder do Estado, para não falar dos que ainda cogitam em tomá-lo, são acusados de um apego indevido ao “velho paradigma”: a tarefa, hoje, é resistir ao poder do Estado retirando-se do seu terreno e criando novos espaços fora do seu controle, o que é, evidentemente, o contrário de aceitar o triunfo do capitalismo. A política de resistência não passa do complemento moralizante de uma esquerda da Terceira Via.

O recente livro de Simon Critchley, Infinitely Demanding: Ethics of Commitment, Politics of Resistance [“Demandas Infinitas: Ética do Compromisso, Políticas de Resistência”, London: Verso, 2007. i68 p.j, representa essa posição de maneira quase perfeita. Para Critchley, o Estado liberal-democrático chegou para ficar. Como as tentativas de abolir o Estado fracassaram miseravelmente, a nova política deve se concentrar a uma certa distância dele: nos movimentos contra a guerra, nas organizações ecológicas, nos grupos que protestam contra abusos racistas ou sexuais, e em outras formas de organização espontânea local. Ela deve ser uma política de resistência ao Estado, de denúncia das suas limitações, de seu bombardeio com demandas impossíveis. O principal argumento em favor dessa política se baseia na dimensão ética das “reivindicações infinitas” por justiça: nenhum Estado tem como satisfazer essa expectativa uma vez que a sua finalidade última é assegurar a própria reprodução (o seu crescimento econômico, a sua segurança pública etc.).

“Obviamente”, diz Critchley, a história é geralmente escrita pelas pessoas que detêm as armas e os cassetetes, e não se pode esperar derrotá-las a golpes de espanador e sátira bem-humorada. Ainda assim, como demonstra de maneira eloqüente a história do niilismo ativo de ultra-esquerda, estamos perdidos no momento em que pegamos em armas e cassetetes. A resistência política anárquica não deve copiar e espelhar a violência do poder ao qual se opõe.

Nesse caso, o que deveriam fazer, por exemplo, os democratas americanos? Parar de disputar o poder estatal e refugiar-se nos interstícios do Estado, deixando o poder para os republicanos e iniciando uma campanha de resistência anárquica? E o que faria Critchley se tivesse pela frente um adversário como Hitler? Em casos assim, o militante pode “copiar e espelhar a violência do poder” ao qual se opõe? Será que a esquerda não deveria fazer uma distinção entre as circunstâncias em que é possível recorrer à violência no confronto com o Estado e aquelas em que só cabe desferir “golpes de espanador e sátira bem-humorada”?

A ambigüidade da posição de Crítchley reside num estranho non sequitur: se o Estado não deixará de existir, se é impossível acabar com ele (ou com o capitalismo), por que afastar-se dele? Por que não atuar em conjunto com o Estado ou de dentro dele? Por que não aceitar a premissa básica da Terceira Via? Por que limitar-se a uma política que, como afirma Critchley, “questiona o Estado e acusa a ordem estabelecida, não com a finalidade de livrar-se do Estado, por mais que isso possa ser desejável em algum sentido utópico, mas de melhorá-lo ou atenuar os seus efeitos malévolos”?

Essas palavras demonstram, simplesmente, que tanto o Estado liberal-democrático de hoje quanto o sonho de uma política anárquica de “reivindicações infinitas” existem numa relação de mútuo parasitismo: os militantes anárquicos produzem o pensamento ético, enquanto o Estado cumpre o papel de gerir e regular a sociedade. O militante anárquico ético-político de Critchley atua como um superego, bombardeando o Estado de demandas a partir de uma posição confortável. E quanto mais o Estado tenta satisfazer essas demandas, mais culpada é a aparência que ele assume. Nos termos dessa lógica, os agentes anárquicos concentram o seu protesto não contra as ditaduras declaradas, e sim contra a hipocrisia das democracias liberais, acusadas de traição aos princípios que professam.

As grandes manifestações em Washington e Londres contra o ataque americano ao Iraque são um exemplo claro dessa estranha relação simbiótica entre o poder e a resistência. E o resultado paradoxal foi que os dois lados saíram satisfeitos. Os manifestantes salvaram as suas belas almas: deixaram claro que não concordavam com a política governamental em relação ao Iraque. Os ocupantes do poder aceitaram o protesto com toda a calma, e até lucraram com ele: não só as manifestações não prejudicaram em nada a decisão de atacar o Iraque, como ainda serviram para legitimá-la, o que explica, aliás, a reação de George W. Bush diante das manifestações de massa contra a sua visita a Londres: “Estão vendo, é por isso que estamos lutando, para que isso — protestar contra as decisões do governo — seja possível também no Iraque!”

É digno de nota que o caminho pelo qual enveredou Hugo Chávez, a partir de 2006, seja exatamente oposto ao da esquerda pós-moderna. Longe de resistir ao poder do Estado, ele o tomou (primeiro com uma tentativa de golpe e depois democraticamente), usando sem hesitar os aparatos do Estado venezuelano para perseguir os seus objetivos. Além disso, está militarizando os barrios e neles promovendo o treinamento de unidades armadas. E o que mete medo acima de tudo: agora que começa a sentir os efeitos econômicos da “resistência” do capital ao seu governo (a escassez temporária de produtos nos supermercados, subsidiados pelo Estado), anunciou planos para consolidar os 24 partidos que o apóiam numa única agremiação.

Mesmo alguns dos seus aliados se mostram céticos diante da idéia: será que isso não irá acontecer em prejuízo dos movimentos populares que deram ânimo à revolução venezuelana? Essa escolha, embora arriscada, deve ser plenamente apoiada: a dificuldade é fazer o novo partido funcionar não como um típico partido socialista (ou peronista) de Estado, mas como um veículo para a mobilização de novas formas de política (como os comitês de base organizados nas favelas). O que devemos dizer a alguém como Chávez? “Não, não tome o poder do Estado, recue, deixe de lado o Estado e a situação que encontrou?” Chávez é muitas vezes visto como um palhaço — mas será que um recuo como esse não iria reduzi-lo a mais uma versão do subcomandante Marcos, a quem muitos mexicanos de esquerda hoje se referem como o “subcomediante Marcos”? Hoje, são os grandes capitalistas — Bill Gates, as empresas poluidoras, os “caçadores de raposas” — que “resistem” ao Estado.

A lição é que a decisão realmente subversiva não está em insistir em reivindicações “infinitas”, que não podem ser atendidas pelos ocupantes do poder. Como eles sabem que sabemos disso, essa atitude de promover “demandas infinitas” não representa o menor problema para os poderosos: “É ótimo que, com as suas demandas críticas, vocês nos lembrem em que tipo de mundo todos gostaríamos de viver. Infelizmente, vivemos no mundo real, onde temos de nos contentar com o que é possível”.

O que devemos fazer é, pelo contrário, bombardear os ocupantes do poder com demandas estrategicamente bem escolhidas, precisas e finitas, que não possam ter como resposta essa mesma desculpa.







segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Medo e mal são irmãos siameses na modernidade.

Zygmunt Bauman

(Entrevista com Zygmunt Bauman)


O octogenário sociólogo polonês Zygmunt Bauman vive perguntando aos jornalistas se leram o Livro de Jó. Compreensível. Fica bem melhor ler seu mais recente livro, Medo Líquido, se o candidato conhecer o sofrimento do personagem bíblico: Jó era bom e, no entanto, foi punido severamente por Deus. Por quê? Foi também a pergunta daqueles que sobreviveram ao terremoto de Lisboa, em 1755. De repente, a razão iluminista recusou-se a admitir o “ato de Deus” e tudo mudou. Veio a modernidade e com ela o processo de secularização. Depois, o 11 de setembro e, de novo, o medo e a pergunta que não quer calar. O mal, diz Bauman em entrevista ao jornalista Antonio Gonçalves Filho e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2008,, é que só conseguimos dirigir um olhar retrospectivo para as catástrofes. Para enfrentar o “medo líquido” que assola o mundo globalizado, o sociólogo sugere uma mudança radical em nosso comportamento.


O medo e o mal são irmãos siameses, segundo seu livro. Parece que o senhor concorda com Primo Levi quando ele diz que todos nós podemos ser a encarnação do mal. Não se pode esquecer que Bush justificou a invasão do Iraque como uma “guerra contra o mal” e que o ódio do Islã contra o Ocidente é também uma “guerra santa” contra o que os fundamentalistas consideram o mal absoluto. Em que medida essas visões são diferentes?


Fundamentalistas, sejam nascidos no Ocidente ou no Oriente, são divisionistas por definição. Todo fundamentalista concorda com seu inimigo em um ponto: “É o que acredito - e apenas o que eu acredito - o absolutamente certo; todas as outras crenças estão absolutamente erradas.” Os fundamentalistas pertencem à categoria dos que pensam em soluções locais para problemas globais. Ora, problemas globais só podem ser resolvidos de forma global. As soluções exigem tempo, muito tempo, embora nem tanto como em séculos passados. Não conseguimos nem mesmo assumir a tarefa de construir uma rede de instituições globais. Temos um longo caminho montanha acima. Vamos torcer para chegarmos ao topo, porque a outra opção é aterrorizadora.


Eis a entrevista.



O escritor espanhol Juan Goytisolo e o Livro de Jó são mencionados em seu livro. Eles expressam melhor que outros autores e livros o dilema da sociedade pós-moderna, ou “líquida”, como o senhor prefere?

A conclusão a que cheguei, ao tentar entender a ansiedade dos contemporâneos, é a seguinte: o que faz nossos medos particularmente dolorosos, insuportáveis, é a falta de clareza sobre as suas causas. Em outras palavras, o que nos faz sofrer mais do que qualquer outra coisa, envenenando nossos prazeres cotidianos e provocando pesadelos, é a própria incerteza, tanto sobre a condição humana como sobre nossa ignorância. É uma verdade antiga, contida no Livro de Jó e esquecida: ainda que houvesse razões sensíveis para as catástrofes que se abatem sobre nós, seríamos incapazes de compreendê-las, a despeito de nossa sabedoria e lógica. Goytisolo nota que o nosso conhecimento do mal se dá apenas quando olhamos para trás, retrospectivamente. É uma observação aguda a sua, referendada pela quase imperceptível erosão de nossos direitos e liberdades individuais nos tempos que correm. O processo todo só pode ser entendido em retrospecto, quando é tarde demais para restaurar aquilo que está perdido. Nos países que se consideram democráticos as pessoas já se renderam sem resistência: admite-se que “suspeitos” sejam seguidos pela polícia ou mantidos presos sem julgamento, ou ainda que sejam deportados sem provas legais - apenas como “medida de segurança”. A maioria das pessoas aceita essas arbitrariedades, seguras de que atingem apenas uma minoria. Mas o fato é que, desrespeitados os direitos humanos, não há como impedir a avalanche que vem por aí.

O senhor diz que os orientadores de futuros homens-bomba são intelectuais que se aproveitam da ignorância do próximo, mas encerra o livro com esperança numa possível aliança entre intelectuais e pessoas do povo. Esse otimismo é justificável?

Intelectuais são, por definição, seres engajados em criar e difundir cultura. No século 18, o termo cultura era entendido como um esforço para promover, facilitar e acelerar o progresso, social e espiritual. A cultura, assim, entrou para o vocabulário moderno como uma declaração de intenções - de educar, iluminar, melhorar e enobrecer as pessoas do povo, recém-elevadas à categoria de cidadãos do Estado-nação: era, enfim, o casamento da nação emergente, auto-elevada à condição de Estado soberano, com o Estado emergente, que clamava pelo papel de guardião da nação. O projeto do Iluminismo alocou à cultura (entendida como trabalho de cultivo) o status de principal ferramenta na criação do Estado-nação; simultaneamente, elegeu a classe instruída como agente dessa operação. Nesse trânsito entre ambição política e ruminações filosóficas, os dois objetivos do projeto iluminista (explicitamente proclamados ou tacitamente presumidos) cristalizaram-se como disciplina dos súditos do Estado e a solidariedade dos cidadãos. O Estado-nação emergente sentiu-se, então, encorajado pelo crescimento rápido de potenciais trabalhadores-soldados, vistos como propulsores do crescimento de seu poder diferencial. Contudo, os esforços para a construção do Estado-nação, conjugados com o progresso econômico, resultaram no crescimento de “redundantes” (parte da população que precisava ser urgentemente descartada até segunda ordem). O novo Estado-nação foi logo pressionado a buscar espaços fora de suas fronteiras para acomodar esse excesso de pessoas e produtos, incapazes de serem “absorvidos”. A sociedade de hoje é o resultado disso, uma sociedade de consumidores e, como todo o resto, a cultura virou um produto como outro qualquer. A transformação gradual da idéia de cultura, do conceito original iluminista à sua reencarnação líquida, é operada pelas mesmas forças que promovem a emancipação dos mercados das limitações remanescentes de natureza não-econômica - restrições sociais, políticas e éticas, entre outras. Enfim, a cultura ‘líquida’ moderna não tem pessoas para cultivar, mas clientes para seduzir.


Pode a humanidade ainda ser salva?

O Mundo, aos ohos do establishment norte-americano
(clique na imagem para ampliar)


“A humanidade ainda pode ser salva? Sim, se conseguirmos combinar crescimento com desenvolvimento sustentável, em lugar de enxergar os dois como contraditórios. Mas como isso pode ser feito? Precisaremos de mais conhecimento, mais contenção, menos matéria, mais concretude e mais - não menos - ética e política”, escreve Koïchiro Matsura, economista e diplomata japonês, diretor-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 17-02-2008.

Segundo ele, "a maior transformação de nossas sociedades se dará no campo das atitudes. Como poderemos desmaterializar a produção se continuarmos a ser materialistas? Como poderemos reduzir nosso consumo se nosso consumidor interior devora nosso lado cidadão? A resposta está na educação para o desenvolvimento sustentável”.

“Teremos que "desmaterializar" a economia", sugere o diretor da Unesco. "É provável que seja impossível interromper o crescimento. Teremos, portanto, que reduzir o consumo de recursos naturais e matérias-primas. Esse deslocamento da economia em direção ao imaterial já começou com a revolução que substitui átomos por bits, que é fundamental para a ascensão das novas tecnologias e das sociedades do conhecimento. A desmaterialização do crescimento poderia até mesmo favorecer o desenvolvimento do Sul, se o Norte se comprometesse a desmaterializar um pouco mais do que o Sul por aproximadamente 50 anos”

Koïchiro Matsura constata que "para salvaguardar as 34 zonas ecológicas prioritárias, que cobrem apenas 2,3% da Terra, mas contêm 50% das espécies conhecidas de plantas vasculares e 42% dos mamíferos, aves, répteis e anfíbios, o custo é avaliado em cerca de US$ 50 bilhões, menos de 0,1% do PIB global".

Assim, ele sugere "um contrato natural: tivemos um contrato social, que interliga as pessoas; agora precisamos nos conectar com a natureza. Como já protegemos espécies ameaçadas e parques naturais, devemos pouco a pouco ir reconhecendo que a natureza encarna direitos legítimos. A visão de futuro será uma condição prévia imprescindível à verdadeira democracia do futuro. A ética do futuro fornecerá o vínculo entre crescimento e desenvolvimento sustentável".

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Transcendendo...


"Uma nova perspectiva nas ciências sociais acontece quando um investigador social consegue, de algum modo, ganhar uma perspectiva de fora do sistema que examina. Não é algo fácil de fazer quando estamos acordados e envolvidos no sistema e, provavelmente, apenas um punhado de teóricos sociais tiveram êxito. É algo que fazemos quando adormecidos. E o fazemos sem o menor esforço."


(Montague Ullman em "O Mistério dos sonhos", Ed Record)

Extraído de : http://yogadossonhos.blogspot.com/





quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

As eleições americanas, por Contardo Calligaris







No fundo, as eleições nos Estados Unidos são o melhor seriado do momento. Volto das férias com um caderno de notas sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Escolho algumas.

1) Provavelmente, em novembro, o republicano John McCain enfrentará um dos democratas - Hillary Clinton ou Barack Obama. Segundo as pesquisas atuais, McCain/Clinton seria quase um empate, e Obama ganharia de McCain. Torço pelos democratas, mas modero meu otimismo. O racismo, o machismo e o medo do que é diferente e novo são forças que trabalham na sombra.

Muitos eleitores declaram que votarão em uma mulher ou em um negro sem problema. Mas outra coisa é o que acontece no segredo da cabine eleitoral. O discurso conservador sabe instilar temor na massa da pequena classe média branca: "Mas você quer mesmo eleger uma mulher ou um negro como presidente? Vamos deixar para outra vez?"

Funciona assim: você não tem quase nada a perder, não tem privilégio algum que valha a pena ser defendido, nada que justifique manter as coisas como estão. Mas, justamente, ao votar contra a mudança, você afirma que seu status merece ser protegido, ou seja, você se convence de que conquistou algo na vida que você não pode se arriscar a perder. O que é isso? Nada, apenas essa falsa convicção.

2) Hillary Clinton não é a candidata das mulheres. E Barack Obama não é o candidato dos negros (como foi Jesse Jackson em 1984 e 1988). Quarenta anos após o movimento pelos direitos civis, uma mulher e um negro são candidatos à presidência sem que cor ou gênero sejam estandartes - ou seja, como cidadãos numa sociedade em que cor e gênero seriam "acidentes" que não implicam uma agenda específica. Se isso é verdade, os anos 60 foram a verdadeira revolução bem-sucedida do século passado.

3) Obama, 46, é o único candidato que pertence a uma geração cuja visão do mundo não é o fruto direto nem da Guerra Fria, nem da Guerra do Vietnã, nem da contracultura. É lógico que ele tenha a simpatia da maioria dos jovens. Talvez seja por isso também que sua popularidade atravesse as fronteiras partidárias: Obama não enxerga o mundo como uma luta entre "eles" e "nós".

4) A viabilidade da candidatura de Obama prova a boa saúde do "experimento americano" (que é, entre outras coisas, o projeto de uma sociedade de imigração em que os cidadãos valem pelo que fazem, e não pelo que devem a seus antepassados). Obama é filho de um imigrante africano muçulmano e foi criado inicialmente na religião islâmica; seu segundo nome é Hussein. Alguns, pelos bares e pelas ondas de rádio do país, acham isso um disparate. Mas, para a metade dos americanos, no meio de uma guerra que é, no mínimo, apresentada como cultural, isso não constitui um empecilho. Você imagina, sei lá, os franceses elegendo como presidente, em 1939, um sujeito chamado Adolf, filho de imigrante alemão?

5) Não adianta zapear: as eleições norte-americanas são como a Copa do Mundo. Salvo que mesmo um jogo das eliminatórias, como o "caucus" de um Estado só, ganha a primeira página. É óbvio que, pelo peso geopolítico dos EUA, as eleições norte-americanas acarretam conseqüências mundiais. Mas não é só isso que desperta o interesse da torcida internacional.

Faz um século que a realidade americana parece ser matéria privilegiada de romance ou de filme (aqui está, aliás, o fundamento da dita hegemonia hollywoodiana). A razão é cultural e simples: o mito fundador do "experimento americano" é também a idéia do indivíduo que, ao tentar "fazer a América", é o único artífice de seu destino - bom ou ruim. E esse mito é uma matriz narrativa básica e inesgotável de nossa cultura.

Há os que podem contar suas vidas e os que não conseguem. Mas, de uma certa forma, o americano ideal, homem político ou mendigo perdido nas vinhas da ira, sempre vive sua vida e a conta para si mesmo como romance ou roteiro de aventuras.

As memórias de guerra de McCain serviram de roteiro para um telefilme, de 2005, que concorreu ao Emmy. Obama ganhou o Grammy de melhor álbum falado por seu livro de memórias, em 2005, e acaba de ganhar outro por seu segundo livro (neste ano, ele competia com os ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter). Hillary, verdadeira heroína do caso Lewinski, é autora de uma autobiografia de sucesso. No fundo, as eleições americanas são o melhor seriado do momento.
*

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A cena: lançando sombra sobre o real



Vincent Crapanzano

(professor no CUNY Graduate Center.)


Fonte:



RESUMO

Este artigo explora a relação entre o que se considera como realidade 'objetiva' ou 'suprema' — e digamos — a sua subjetivação: um mundo de sombras, na fronteira da imaginação, que chamo de 'cena'. Sugiro que essas duas 'realidades' são mutuamente implicadas. Argumento que, na medida em que reagimos a (ou criamos) essas cenas que colorem a nossa experiência da realidade objetiva, elas merecem atenção antropológica. Enfatizo a natureza intersubjetiva da própria subjetividade e apresento uma tentativa preliminar de entendimento dos dramas interlocutórios complexos (que ocorrem no ritual, por exemplo, ou na psicanálise) que constituem a cena.

Palavras-chave: Subjetivação, Intersubjetividade, Ritual, Construção da Realidade, Dramas Indiciais

ABSTRACT

The paper explores the relationship between what we take to be objective or paramount reality and, roughly, its subjectification: a shadowy world, edging on the imaginative, which I call the scene. I suggest that the two "realities" are mutually implicated. I argue that insofar as we respond to (as we create) these scenes that color our experiences of objective reality, they demand anthropological consideration. I stress the intersubjective nature of subjectivity itself and offer a preliminary attempt at understanding the complex interlocutory dramas, occurring in ritual, for example, or psychoanalysis, that constitute the scene.

Key words: Subjectification, Intersubjectivity, Ritual, Constructions of Reality, Indexical Dramas


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Ce que je vois existe. Seulement, on ne croit en ce que
l'on voit que parce qu'on voit ce en quoi on croit.

(J.B. Pontalis, Perdre de vue)



Sentado à minha escrivaninha, vejo uma água-forte chamada Crépuscule, do artista francês contemporâneo Gerard Trignac. É a imagem, rica em sombras, de um enorme castelo cercado por um fosso largo sobre o qual se estende maciça ponte. O ponto de vista é o de quem está sob a ponte, e quem observa o quadro pode sentir o imenso peso daquela construção. Atrás de um dos pilares que a sustentam, vislumbra-se a vela branca de um barco iluminada por um raio de luz. De imediato, a gravura faz pensar em Piranesi, embora seja menos dramática que seus trabalhos, mais arrebatada. Apesar de sugerir castelos e torres sombrias, perigos ocultos e o rio da morte, a própria morte, há algo reconfortante no mistério, na aura que do quadro emana. Ao menos, foi o que encontrei nesses tantos anos em que trabalhei sob sua silenciosa vigilância.


Uma água-forte de Gerard Trignac


Enquanto olho a água-forte de Trignac, penso em sombras e meios-tons as dimensões ensombreadas da existência social e cultural que nós, antropólogos, costumamos encontrar, de um jeito ou de outro, e que tendemos a afastar de nosso trabalho "sério", como se embaraçados pelo mistério, pelo perigo e pela iminência, a proximidade do que presumimos ser o irracional ou, no mínimo, o efêmero. Evidentemente, outras eras se compraziam com o que Shelley chamava de "mundo do imperscrutável". No primeiro de seus grandes poemas, Alastor ou O Espírito da Solidão, ele se dirige à "mãe deste mundo, da Natureza e da Necessidade".

I have watched
Thy shadow and the darkness of thy steps,
And my heart ever gazes on the depth
Of thy deep mysteries. I have made my bed
In charnels and on coffins, where black death
Keeps record of the trophies won from thee,
Hoping to still these obstinate questionings
Of thee and thine, by forcing some lone ghost,
The messenger, to render up the tale
Of what we are (1934: ll.2-28)(1).

Quero ressuscitar a dimensão romântica da antropologia, não porque deseje propor uma antropologia romântica, de modo algum, mas porque gostaria de que nos reconciliássemos com nossa herança romântica e o efeito que ela teve sobre nós, mesmo que apenas por sua insistente rejeição ideológica. Com essa rejeição, tal como com a das raízes religiosas judaico-cristãs de nossa disciplina, que desempenharam um papel tão fundamental no entendimento e na interpretação dos fenômenos que estudamos, freqüentemente perdemos uma dimensão da realidade muito cara àqueles que estudamos (e a nós também, em nossas vidas). Ou, se não a perdemos, se não a ignoramos, suprimimos ou reprimimos, acabamos por reduzi-la de tal maneira a um ou outro paradigma amortecido, que esses mundos de sombras ou experiências perdem toda e qualquer realidade empírica que possam ter e toda e qualquer influência que poderiam exercer sobre o comportamento e os pensamentos daqueles que encontramos em nossos trabalhos de campo.

Andei pensando no modo como tendemos a ignorar (por falta de melhor termo) a "subjetivação" dos contextos presumidamente objetivos que buscamos para explicar os fenômenos que observamos. De um modo preliminar, que requereria consideravelmente mais rigor epistemológico do que posso agora oferecer (se é que poderei algum dia), tentei diferenciar a realidade "objetiva" do que chamo de cena(2). Por "realidade objetiva" quero dizer algo semelhante ao que Alfred Schutz (1970:253 [1979:248-249]) denomina "realidade suprema" ou a realidade do senso comum da vida cotidiana que aceitamos sem questionar. Ela inclui, nos termos fenomenológicos de Schutz, "não só objetos, fatos e eventos físicos ao nosso alcance real e potencial, percebidos como tais através do código de percepção simples, mas também referências de apresentação de ordem inferior, pelas quais os objetos físicos da natureza são transformados em objetos socioculturais". É a "província finita do significado que chamamos de realidade de nossa vida cotidiana" e, como tal, difere dramaticamente de domínios como "o mundo de imaginações e fantasmas ou o mundo da contemplação científica"(3).

Quer entendamos a realidade suprema em termos de coercitividade, como William James poderia ter feito, quer como resistência, como os fenomenologistas fariam, ou mesmo em termos de convenções (socialmente construídas e aceitas ou aceitáveis), estaremos supondo uma certa constância partilhada, ou pelo menos negociável, a partir de diferentes perspectivas (Husserl 1931:129-ss.). Trata-se, em resumo, da realidade de referência primária. Em nosso pressuposto empírico comum ou, se assim preferir o leitor, pragmático, a realidade suprema é despida do fantasioso, daquilo que é temporal ou mesmo espacialmente vinculado ao capricho — esses deslocamentos de atenção que relacionamos a sentimentos, emoções e humores, identificados com o domínio subjetivo e que não passam de elementos decorativos, epifenômenos, ou como diriam alguns, epifenômenos de epifenômenos. Pois é justamente para esses elementos decorativos, para esses epifenômenos, que quero chamar a atenção, pois eles são, a seu próprio e especial modo, uma dimensão significativa e efetiva do mundo em que vivemos, pensamos e agimos.

Não quero, contudo, reduzir a cena ao subjetivo, pois acredito que isso nos desviaria do que considero ser sua base intersubjetiva. Nesse particular, divirjo da concepção usual da fenomenologia centrada na consciência singular ou na intenção e, mesmo, do senso comum. Devo acrescentar, apesar de não poder aqui prosseguir com minha argumentação, que a subjetividade, a despeito de quanto possa parecer minha, é essencialmente intersubjetiva, tanto em um modo mediado pela linguagem, por exemplo, quanto imediatamente, por meio de encontros reais e imaginados com figuras significativas cercadas de sombras. Para mim, ao menos, a cena é aquela aparência, a forma ou refração da situação "objetiva" em que nos encontramos, colorindo-a ou nuançando-a e, com isso, tornando-a diferente daquilo que sabemos que ela é quando nos damos ao trabalho de sobre ela pensar objetivamente.

Embora colorida e intensamente nuançada, é naquela objetividade que reside a cena. De fato, por mais que a realidade objetiva nos pareça perturbadora em sua objetividade, firmeza e constância, ela nos dá uma segurança epistêmica ou mesmo ontológica. Podemos talvez falar da cena — em analogia com a "dupla voz"* — como "dupla visão". Reconhecemos imediatamente o que consideramos ser a realidade objetiva da situação em que nos encontramos, seja qual for a forma pela qual se encare esta objetividade — como realidade empírica em um sentido cruamente lockiano, por exemplo, ou como o produto de um conjunto de convenções sociais e culturais — e como se dê a nossa experiência direta dessa realidade, em toda a sua excentricidade. Retornarei ao modo como a natureza intersubjetiva de nossa experiência da cena facilita essa "dupla visão". Quero aqui destacar o fato de que é o reconhecimento do objetivo que facilita a precipitação da cena e nossa experiência dela, tanto quanto é a realidade objetiva do psicanalista enquanto psicanalista e a do paciente enquanto paciente que facilitam as projeções da transferência e da contratransferência. Da mesma forma que a identidade projetiva do psicanalista ou a do paciente pode tornar-se tão intensa na transferência e na contratransferência que cada uma ou ambas as partes desse encontro possam vir a perder a referência de suas identidades objetivas, há momentos em que a cena pode substituir a realidade objetiva em que reside ou que, pelo menos, emula.



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Ontem, uma de minhas alunas, que está nas últimas etapas de seu trabalho de campo, veio à minha sala. Insegura sobre a possibilidade de ter terminado — "Não fiz todas as entrevistas de que precisava" — e confrontada pelo volume de material desordenado e ainda não assimilado que coletou, estava exausta e confusa. Seus olhos, comumente brilhantes e vivazes, estavam baços e furtivos. Lembro-me de como fiquei chocado na primeira vez em que a vi assim. Foi logo antes de suas provas orais. Como naquela época, ela trouxe ontem para minha sala uma atmosfera sombria tão intensa — escuridão seria uma palavra forte demais que cheguei a olhar para cima para ver se a luz das lâmpadas havia diminuído. Não havia. Então, alguns minutos mais tarde, depois de falar sobre suas dúvidas, seus olhos acenderam-se subitamente quando ela apresentou um papel em que havia feito anotações confusas sobre suas idéias. Esse movimento foi tão abrupto, tão espontâneo, tão repleto de alívio como se ela tivesse, de repente, se lembrado do que havia esquecido por tanto tempo — que minha sala se iluminou. Senti que a luz azulada das lâmpadas fluorescentes ganhara um brilho amarelo, como se fosse incandescente. Conseguimos falar sem dificuldade sobre a pesquisa e, enquanto conversávamos, minha sala, a iluminação, mesmo seu rosto, seus olhos ganharam leveza... No final de nosso encontro, contei-lhe sobre minha noção de cena e minha reação à ansiedade e ao alívio dela. Ela reconheceu que também havia sentido a mudança no "ambiente da sala". Devo acrescentar que esta aluna tem um espírito independente e não esconde seu ceticismo em relação à minha concepção de antropologia(4).

Não há, de fato, nada particularmente extraordinário sobre a minha — a nossa — experiência. Todos vivenciamos mudanças desse tipo, que associamos pessoalmente a mudanças no humor ou, coletivamente, a mudanças na atmosfera5. Elas são freqüentemente descritas em obras literárias. Kate Leslie, a heroína de A Serpente Emplumada, de D. H. Lawrence, lê um dos compridos hinos religiosos de Don Ramón (Don Ramón é, como o leitor recordará, o líder, o profeta em verdade, do movimento nativista mexicano imaginado por Lawrence e que proclama o retorno do deus-sol asteca Quetzalcoatl):

Kate leu aquele comprido folheto diversas vezes, e uma súbita escuridão, como um turbilhão, parecia ter envolvido a manhã. Ela tomou seu café na varanda, e os pesados mamões em suas pilhas pareciam verter como que grandes gotas do brotamento invisível da fonte de vida não-humana. Ela parecia ver esse enorme brotamento e a impulsão do cosmos, progredindo em misteriosa vida. E os homens apenas como pulgões agrupando-se nos brotos tenros, uma aberração ali. Tão monstruosos o desenrolar e a evolução da vida do cosmos, como se até o ferro pudesse crescer qual líquen na profundeza da terra e parar de crescer e começar a perecer. Ferro e pedra entregando a vida, quando chegasse a sua hora d... (Lawrence 1950:256).

Uma mudança no humor escurece a atmosfera em que Kate se encontra. Sua imediata percepção da cena leva, como costuma acontecer, a uma visão que tem talvez tanta realidade quanto a varanda obscurecida, a varanda iluminada pela luz intensa do sol da manhã. Essas mudanças da realidade objetiva da cena para experiências visionárias podem representar um papel importante em nossas vidas criativas ao descortinarem horizontes imaginários — possibilidades que pairam no limite da percepção comum (Crapanzano 2004). Porém, devo acrescentar que elas podem também constranger, mesmo que por negação ou por terror, a realidade suprema. Elas podem chamar a atenção para o artifício, a meu ver, dessa realidade e lançar uma sombra sobre o seu caráter já dado, a sua facticidade.

While daylight held
The sky, the poet — [Alastor] — kept mute conference
With his still soul. At night the passion came
Like the fierce fiend of a distempered dream,
And shook him from his rest, and led him forth
Into the darkness (Shelley 1934: ll.221-226)6.

Na tormentosa escuridão do sonho assombrado pela idéia da morte, apesar de seu esforço, o poeta não pode dar vida alguma à Natureza "vazia". Ele não pode reunir os dois mundos, o despertado e o sonhado, o real e o ideal.

Água-forte de Gerard Trignac



Deixemos Shelley de lado — posso estar fazendo má leitura de sua obra; é preciso notar que a relação entre a "realidade objetiva" e a cena está, ela própria, sujeita não apenas a diferenças culturais e de época, mas também a gêneros e convenções de cada cultura ou período. Não há dúvida de que há sociedades dispostas a abrirem mão da realidade objetiva em troca da cena, mas falar nestes termos generalizadores de mentalité não apenas envolve o risco de incorrer em estereótipos, mas também de ignorar a sutil economia da relação entre os dois e a dinâmica desse encontro. O poeta romântico — Shelley, Novalis ainda mais — pode ceder à idéia de cena pairando sobre a realidade como um sonho, uma sombra ou uma visão em sua poesia, em sua inspiração, mas deve ter experimentado uma dura realidade que resistia a essa concessão ou que o levou, como aconteceu com De Quincy e Coleridge, entre outros, a encontrar uma fuga em sonhos de ópio ou em algum misticismo. Meu argumento é que o modo como reagimos à cena — cedendo, negando ou ignorando — está sujeito ao modo como a situação em que nos encontramos está estruturada [framed] e não, ou pelo menos não tanto, ao caráter ou à disposição. Com controle autoral, Lawrence construiu a reação de Kate ao hino de Don Ramón. De modo menos pessoal, embora igualmente efetivo, se não mais, esse controle — a coreografia da realidade cênica e a pressão de sua suposição — opera no ritual e no teatro.



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Olho para o Crépuscule de Trignac e me vem à mente uma cena de minha tenra infância. Tinha quase quatro anos e estava em uma igreja pela primeira vez. Minha mãe, como vim a saber mais tarde, começou a acreditar que os nazistas venceriam a guerra. Embora ela e meu pai fossem obstinadamente não-religiosos, ela decidiu que minha irmã e eu deveríamos ser batizados — "para constar" — como ela me disse anos depois, consideravelmente embaraçada. Eu nunca havia estado em uma igreja antes e me sentia aterrorizado com a escuridão, o cheiro rançoso de incenso e, sobretudo, com aquele homem a quem me fizeram chamar de padre e de quem desgostei imediatamente depois que me chamou de "meu filho". Eu queria chorar, mas me contive, ainda mais depois que minha irmã, que tinha menos de um ano, rebentou em lágrimas. Fui o primeiro a ser batizado e não me lembro de nada, além do mau hálito do padre, o gosto de sal, cabelos molhados e murmúrios em uma língua que eu não entendia. Acima de tudo, lembro-me do raio de luz que atingiu meus olhos através de um ou dois caixilhos de vidro transparente de um vitral do qual um homem em uma longa veste branca e dourada e um chapéu cônico como o de um bobo — que eu havia visto em uma revista de quadrinhos — olhava para mim ameaçadoramente. Meus olhos foram ofuscados de tal forma que se encheram de lágrimas, e a expressão daquele homem, quem quer que ele fosse, ficava mudando de forma grotesca.

Por alguma razão, o raio de luz que ilumina a vela do barco no fosso da água-forte de Trignac me lembra aquela luz. Fiquei pensando se ela também ofuscaria os olhos de minha irmã. Ela era bem pequena e estava não nos braços da mãe, mas nos de uma das amigas de meu pai, de quem minha mãe não gostava e que me deu uma pequena cruz dourada em uma corrente para que eu a usasse, como uma menina. Depois minha mãe diria que eu não era obrigado a usá-la. Minha irmã teve sorte, porque se protegeu daquela luz por conta da sombra do padre que se curvou sobre ela. Embora eu não me lembre de ele ter colocado um véu branco sobre meu rosto, lembro-me de que ele cobriu o de minha irmã. Tive que apertar os olhos quando saímos da igreja porque tudo estava claro demais.



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Voltarei à dimensão diacrônica — o potencial narrativo — de nossas experiências da cena. Agora quero descrever sua coreografia em um serviço de comunhão que presenciei em uma igreja evangélica conservadora no sul da Califórnia, quando eu pesquisava o fundamentalismo cristão. A igreja era conhecida por seus batismos teatrais, realizados em uma elevada sacada sobre o altar. Aquele serviço de comunhão era um experimento. Mesas, arrumadas para a comunhão, estavam dispostas nas naves por toda a igreja, e aos que comungavam pediam que ministrassem a comunhão uns aos outros. No começo, todos hesitaram, mas quando as luzes diminuíram e o órgão começou a tocar música suave e sedutora — não consegui reconhecer o que era — um par atrás do outro foi levado às mesas. Alguns estavam envergonhados, mas a maioria foi envolvida pela ocasião. Eles se olhavam nos olhos, às vezes chorando, nem sempre era possível dizer se de alegria ou de sofrimento, enquanto ministravam a comunhão uns aos outros. Seus olhares transmitiam não apenas o amor que sentiam mutuamente, por Jesus, mas também — eu senti — histórias pessoais que exigiam perdão.

Tanto para mim, a despeito de mim mesmo, quanto para eles, a atmosfera estava repleta de uma sentimentalidade comovente que transformou a igreja em uma cena de tanta intimidade, de tanto amor — como eles certamente diriam — que a própria igreja parecia desvanecer. Ela se tornou um vasto teatro de comunhão, ao mesmo tempo intensamente pessoal e transcendente. Tanto aqueles que ministravam a comunhão como os que simplesmente observavam foram arrebatados. Fiquei pensando se eu era o único, entre os milhares de membros da congregação, que estava distanciado da cena, menos — eu suspeito — por meu olhar "profissional" do que por embaraço voyeurístico. O experimento foi considerado um enorme sucesso, soube mais tarde, e esperava-se que aumentasse o número de fiéis a freqüentar a igreja.

Que o ritual promove um sentido de comunidade ou, como diria Victor Turner (1969:94-165), de communitas, sempre foi do conhecimento comum muito antes do nascimento da antropologia. A efervescência social que Durkheim viu em seu cerne, ou ao menos no cerne dos rituais primitivos, é mais uma projeção da ressecada mente ocidental, eu suspeito, do que um fato objetivo. Não quero negar que haja rituais cujos desfechos são tão frenéticos que há uma perda da consciência individual e uma submersão no grupo, do tipo que acontece em uma discoteca, eu diria. De fato, testemunhei desfechos como esses entre os Hamadsha, os membros de uma irmandade religiosa marroquina conhecida por seus selvagens ritos de exorcismo, quando no meio da noite, de repente, após horas dançando e entoando cânticos em transe, as luzes apagavam-se e, em um rumoroso silêncio — apenas um oxímoro faria justiça àquele momento — 'A'isha Qandisha, o demônio feminino por eles venerado, fazia sua entrada. Embora eu não possa saber o que os participantes realmente sentiram naqueles momentos, todos se lembram de ver 'A'isha em uma manifestação ou outra (os psicólogos, sem dúvida, diriam que quaisquer que tenham sido as experiências individuais dos participantes, elas foram imediatamente interpretadas no idioma coletivo como uma manifestação do demônio feminino).

Apesar de eu mesmo não ter visto 'A'isha, pude sentir uma presença sombria, que atribuí imediatamente, dado o meu racionalismo (talvez defensivo), à intensa focalização dos participantes do ritual no demônio feminino. Mais tarde, comparei aquela sensação às experiências que todos temos quando, acreditando estar sozinhos, sentimos subitamente a presença de alguém em um cômodo antes de vermos efetivamente a pessoa.

A maior parte dos rituais que presenciei, inclusive muitos atos Hamadsha, ou sobre os quais li, são de fato eventos sem método algum, desprovidos de intensidade dramática. E quando efetivamente acontece esse tipo de dramaticidade, não fica claro se ela produz alguma efervescência. Descrevendo as sessões divinatórias realizadas por curandeiros Azande, Evans-Pritchard (1937) observou que sua dança foi a mais animada apresentação que já havia presenciado e que a música feita pelos curandeiros — uma "conjunção" de gongos e tambores — era inebriante tanto para os que a tocavam quanto para os que a ouviam. "Música, movimentos rítmicos, caretas, vestimentas grotescas, tudo ajudava a criar a atmosfera apropriada para a manifestação de poderes exóticos" (1937:177). Embora o público acompanhasse o espetáculo com interesse, movimentando suas cabeças no ritmo da música e cantando junto com os músicos quando queria, seria um erro, assegura-nos Evans-Pritchard, presumir que a atmosfera era de respeitoso temor. Ao contrário, as pessoas demonstravam jovialidade, conversavam e faziam piadas. Contudo, Evans-Pritchard lembra-nos:

que o público não estava apenas assistindo a uma apresentação de música percussiva, mas também a uma representação ritual de magia. Trata-se de mais do que dança, é uma luta, parte direta e parte simbólica, contra os poderes do mal. O completo significado da sessão como um espetáculo contra a bruxaria pode ser compreendido apenas quando se entende a dança […] Um curandeiro 'dança as questões' (Evans-Pritchard 1937:178).

O que Evans-Pritchard deixa de explorar é o efeito ritual (dramático ou mesmo psicológico) da disjunção entre a seriedade da sessão — o temor que pode inspirar — e a atitude (às vezes) jovial do público. Não parece haver, no evento, efervescência de grupo ou mesmo foco constante. É possível argumentar que haja desvio persistente? Talvez seja a abstração, tão pessoal em sua impessoalidade quanto coletiva, a atitude ritual mais característica. Um dos erros de muitos estudos sobre rituais é, a meu ver, sua derivação da forma e da intenção dramática a partir de um pressuposto desfecho. Como já observei anteriormente (Crapanzano 2004), vários participantes de rituais disseram-me que foi nessas ocasiões que sentiram mais intensamente a solidão.

Com muita freqüência eu — e outros antropólogos — fomos incapazes de distinguir entre um ideal não-realizado e a experiência real na descrição feita pelos participantes de rituais. Lembro-me de tomar parte em um musem Hamadsha, a peregrinação anual, que culmina no encontro dos líderes de duas aldeias rivais: uma delas, Beni Rachid, de status superior à outra, Beni Ouarad7. O líder, ou mizwar, de Beni Ouarad, à frente de milhares de seguidores, montado em um garanhão, chega à entrada de Beni Rachid, onde seu mizwar o espera montado em um garanhão branco, cercado de milhares de seus seguidores. O mizwar de Beni Ouarad desmonta e segue a pé através da aldeia o líder de Beni Rachid, que permanece montado, até o santuário do santo Hamadsha que eles veneram. Os dois oram e retornam, então, à entrada da aldeia. Esse é o ideal, o modo como costumava acontecer, mas me disseram que agora os dois líderes se encontram, um deles tendo desmontado, o outro sobre o cavalo, cumprimentam-se e partem. Segundo o que me explicaram, isso se deve ao fato de não poderem seguir o caminho em meio à multidão espremida de adoradores em transe e frenesi. Na verdade, os dois homens tinham ciúmes das prerrogativas um do outro e acabaram enfrentando-se na justiça em ações fundiárias.

O que pude ver não foi nem o ideal nem a versão "realista". Os dois comandantes encontraram-se no final da aldeia. Não se cumprimentaram. Simplesmente fizeram uma pausa, deram meia-volta e retornaram para suas casas. Quando perguntei aos espectadores o que havia acontecido, eles me asseguraram que não apenas os dois comandantes haviam se saudado, mas também apertado as mãos. Muitos insistiram que o mizwar de Beni Ouarad havia descido do cavalo! Quando insisti com minhas perguntas, eles ficaram tão violentamente irritados que tive que parar. É talvez essa flutuação entre o ideal e o real, a euforia e o senso de insuficiência, que caracterize boa parte da experiência ritual, como argumentei (Crapanzano 1992:260-280) para o caso dos rituais de circuncisão marroquinos e sua eficácia. Um lança uma sombra sobre o outro e vice-versa. O que importa é sua mútua implicação. O ideal não pode ser inteiramente desengajado de sua experiência real, embora eles possam ser, com algum sucesso, diferenciados analiticamente. É por essa razão que eu hesitaria em igualar o ideal à cena. Suas relações com o real têm gramáticas divergentes.



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Muitos estudos sobre rituais, mesmo aqueles que enfatizam a communitas, resistem ao sentido de milagre, de mistério e de estranho que os participantes descrevem, como se, apesar de metafóricos e simbólicos, eles não tivessem nenhum referente real. Embora eu não esteja pessoalmente disposto a aceitar a interpretação do milagre, acredito que temos que perguntar o que está sendo descrito pelo "milagroso", "misterioso" e "sinistro". Antes de atribuirmos a essas interpretações da experiência, ou às suas aproximações nativas, um referencial predeterminado e confortável — ansiedade da castração, digamos, no caso do sinistro; os poderes transcendentais do social, no caso do milagroso ou do misterioso — devemos tentar entender como esses termos e análogos são usados e como eles aparecem no panorama cultural em estudo. O "milagre" sugere na cultura euro-americana uma quebra da cadeia "natural" de eventos que são causalmente unidos tanto de modo mediato quanto imediato. Em verdade, o "milagre" é duplamente milagroso, pois não apenas é milagroso em seus próprios termos, mas também cria milagrosamente uma ruptura em nosso sentido naturalizado de história e torna-se ainda mais extraordinário.

A discussão de Freud (1963) sobre o "sinistro" pode nos servir de modelo, pois embora ele o relacione, em uma de suas manifestações pelo menos, à ansiedade da castração, ele resiste, ou melhor, seu material o força a resistir à postulação de um único referente causal. "Uma experiência sinistra ocorre tanto nas situações em que complexos infantis reprimidos são revividos por alguma impressão, quanto naquelas em que crenças primitivas que superamos parecem mais uma vez confirmadas" (Freud 1963:55). O que é importante em nossa leitura de Freud é o mecanismo que produz o sentido do sinistro: o estranhamente familiar, algo aterrorizante que já é há muito conhecido, mas está esquecido até que ele — o seu efeito — seja ativado por uma impressão no presente. Eu destacaria a paradoxal relação entre contingência e repetição: uma repetição que ao mesmo tempo realça e desarma o contingente.

Freud (1963:50) observa, em outro trecho de seu ensaio, que um "efeito sinistro é muitas vezes produzido facilmente pelo apagamento da distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que havia sido até então considerado imaginário aparece diante de nós em realidade, ou quando um símbolo assume a função e o significado completos da coisa que ele simboliza e assim por diante". Freud relaciona essa "ênfase da realidade psíquica em comparação com a realidade física" aos sentimentos infantis de onipotência e às práticas mágicas. Sua busca por origens endopsíquicas da experiência reflete, evidentemente, o pressuposto histórico culturalmente específico de seu tempo. Eu preferiria destacar a dimensão interpessoal da experiência do sinistro em suas dimensões sincrônica e diacrônica. Em outras palavras, nos termos da situação na qual quem quer que experimente o sinistro se encontre no tempo da experiência e (na medida em que seja evocada de novo) no tempo em que for descrita, e nos termos do passado com-figurado, que insere a si mesmo no presente por meio da lembrança intencional ou não. Uso aqui "com-figurado" para sugerir tanto a articulação do evento passado quanto sua figuração — posso dizer animista? — que proporciona a possibilidade interlocutória.



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Olho ansiosamente para a água-forte de Trignac. Observo o modo como os pilares que sustentam a ponte sobre o fosso estão refletidos às avessas nas águas escuras. Seu reflexo, como um triângulo invertido, uma seta, aponta para baixo, para dentro das profundezas misteriosas da água e tudo o que está no fundo. Isso é destacado por uma vela que, por nenhuma razão aparente, se estende da base do pilar. Iluminado pelo mesmo raio de luz que brilha nas velas do que vejo agora ser o barco da morte, seu reflexo escurece à medida que mergulha nas profundezas do fosso. Quaisquer que sejam as associações pessoais que ele evoque — afogamento, medo de ser engolido — o pilar e a vela e seus reflexos tornam-se subitamente um mapa bastante ameaçador da realidade psíquica (uma versão dela ao menos), na qual a linha entre o pilar e a realidade da vela e seus reflexos, a linha da contigüidade, que os Sufis chamariam de barzakh, é reduzida a uma faixa escurecida que não pode ser identificada nem com a realidade nem com seu reflexo.



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Os Fang do Gabão, que são participantes de um movimento religioso sincrético chamado Bwiti, destacam o papel do assombro ou do miraculoso — akyunge — em seus rituais. Embora usualmente traduzido como milagre, akyunge significa, segundo James Fernandez (1982:436), "tudo o que for feito com tão inigualável habilidade e sutileza no sentido de impressionar e estar além da compreensão comum e da imitação".

Entidades sobrenaturais causam estupor por intervirem na ordem natural das coisas e transgredirem o normal. O Bwiti causa espanto em seus membros por intervir em suas vidas de tal modo que lhes permite superarem a si mesmos e virem a entender o extraordinário, o oculto, o aspecto relativo à morte de cada coisa. E, assim, estarem em comunicação com ela (Fernandez 1982:436).

Os Bwiti Fang estabeleceram seus padrões de prática ritual com base nos do povo vizinho no Gabão, os Metsoga. Fernandez (1982:438) descreve os "assombros" de um obango — uma dança extática dos Metsogo: "tochas que deslizavam de maneira misteriosa pelo terreno, o crescimento aparente de um broto de bananeira até se tornar uma pequena árvore no decorrer de várias horas, o aparecimento instantâneo de um galo a partir de um ovo e a precipitação de um dançarino na fogueira sem ser queimado". Alguns desses efeitos, no dizer de Fernandez, não passavam de prestidigitação, mas outros eram o resultado de extraordinária habilidade e de planejamento.

Era preciso manipular cuidadosamente cabos para fazer com que as lanternas "flutuassem" pelo terreno. Ou no caso de um estranho som vindo do topo de uma árvore próxima: seria um espírito? Um dançarino se fez voluntário para subir na árvore e descobrir. E ele o fez com uma tocha amarrada ao braço. Mas assim que alcançou o topo, foi derrubado; a tocha e o que parecia ser seu corpo caíram com um grito apavorante através das árvores. No momento seguinte, o mesmo homem pulou para fora da câmara secreta [presumivelmente da capela Bwiti] (Fernandez 1982:438).

Espetáculos como esse são apreciados por sua realização artística, mas na medida em que beiram o extraordinário, eles são com facilidade aparentemente tomados por milagres, pelo menos no momento — o ápice — de sua apresentação, ao final de uma cerimônia que se desenrola por toda a noite, o Caminho do Nascimento e da Morte, no qual o ciclo litúrgico-cósmico da crença Bwiti é ensaiado em canção, oração e dança, realçado pelo uso do eboga (um alucinógeno suave). A última parte da cerimônia, o Caminho da Morte, culmina na morte, transformação e ascensão do deus Eyen Zame e na liberação dos ancestrais aprisionados. Esse complexo ritual inclui dois episódios obango altamente dramáticos, separados por períodos menos intensos de canto e dança. Os dois episódios, que têm lugar após a meia-noite e pouco antes do amanhecer, têm o seu apogeu no que os Fang chamam de "um só coração" (nlem mvôre) — uma espécie de confluência. Os participantes do ritual, trazendo velas, seguem a harpa sagrada pela floresta em busca dos espíritos de ancestrais perdidos que ainda não encontraram o caminho para a capela, e são conduzidos de volta para lá, onde se aglomeram em torno do pilar central e do chefe religioso, tornando-se, no dizer de Fernandez, virtualmente um só ser. "Levantando as velas sobre suas cabeças (idealmente, eles deveriam poder fazer apenas uma chama de todas as velas), eles entoam […] agora nos tornamos um só coração" (Fernandez 1982:453-454).

Para Fernandez (1982:466-469), os assombros da cerimônia do ritual excitam a imaginação religiosa dos Fang ao confundirem categorias comuns da experiência. "Encontramos nelas [as cerimônias Bwiti dos Fang inspiradas pelas dos Metsogo] uma atmosfera liminar em que os mortos subitamente ganham de novo a vida, animais podem ser homens, brotos subitamente tornam-se árvores maduras, e homens brancos são, de fato, homens negros ou vice-versa. As coisas se confundem, perdem suas categorias — os 'milagres' metsogo tornam as coisas 'assombrosamente ambíguas'". Segundo Fernandez, as confusões semânticas ritualmente induzidas são mais tarde resolvidas, na perspectiva dos Fang, por seus ancestrais, os mortos-vivos. São eles que reclassificam e alinham homens e mulheres segundo seu pertencimento genealógico — no caminho do nascimento e da morte. Embora Fernandez (1982:476-487) relate algumas das visões de iniciados sob a influência do eboga, ele não nos conta como os participantes no Caminho do Nascimento e da Morte descrevem suas experiências durante a cerimônia. Isso fica para a nossa imaginação. Podemos vislumbrar que horas dançando, cantando, ingerindo doses moderadas de um alucinógeno suave, caminhando no meio da noite à luz de velas pela floresta, sempre sombria e cheia de perigos potenciais, encontros (imaginados) com ancestrais mortos possam, todos eles, produzir múltiplas e sempre cambiantes cenas cada vez mais distantes da "realidade suprema."

Indiferente do que se possa dizer sobre o ritual Bwiti, não há dúvida de que ele seja teatral e, como tal, acentue o elemento cênico de tal forma que pareceria ao observador distanciado que a realidade suprema se dissipa. Como isso afeta o panorama Bwiti sobre a vida em geral, sua percepção da vida cotidiana, o reconhecimento do artifício da(s) cena(s), mesmo o da realidade comum, o seu realismo e o modo como configuram e figuram — metaforizam — a cena em e para outras ocasiões, ainda precisa ser determinado. Essas determinações deveriam basear-se não apenas nos relatos experienciais (pois esses sozinhos gerariam talvez uma ênfase exagerada no individualmente subjetivo, em detrimento do intersubjetivo, do interpessoal, do coreografado), mas também e mais formalmente, na maneira como as experiências cênicas são estruturadas e, por conseguinte, estão sujeitas ao regime metapragmático — como a estruturação da cena [framing of the framing], os milagres, governam o modo como a cena é articulada, avaliada e configurada; ou como, em outras palavras, a "experiencialidade" da experiência é constituída.



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Lanço um olhar nervoso para a fortaleza de Trignac. Ela me lembra agora um cenário de ópera. Penso em calabouços, encarceramentos, as cenas de prisão em A Pequena Dorrit, em O Conde de Monte Cristo, escavação de túneis, fuga, a lentidão da fuga... cair na armadilha de uma realidade ou de outra, as ilusões de liberdade, os constrangimentos do realismo, a libertação imaginativa, as ilusões dessa libertação, maya... Todo o mundo é um sonho. Todo o mundo é um palco. É possível escapar do sonho? Ver além do palco? Por que o faríamos? Um de meus alunos, um ator, observou há alguns dias que, quando se está em cena, não é possível ver o público. Ele não passa de sombras, mas pode-se sentir sua presença, isto é, quando não se está inteiramente arrebatado. E mesmo assim...



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Não entrarei na discussão sobre o uso de drogas para produzir uma contra-realidade. Em minha argumentação, qualquer realidade que elas possam produzir fisiologicamente é ainda uma reação imersa na cultura — o produto de um complexo jogo interlocutório. No meu último ano de faculdade em Harvard, para ganhar algum dinheiro, amigos meus participaram de experimentos psicológicos em que lhes era fornecida uma droga — eles não sabiam do que se tratava — e tinham que relatar o que experimentaram. Eles viam luzes, estrelas, "efeitos de luz como a aurora boreal", como disse um deles. Isso era tudo. Eles tinham tomado LSD. O psicólogo era Timothy Leary. Alguns anos mais tarde (se tanto), eles estariam viajando, encontrando seus duplos, banhando-se em êxtase, voando para os céus, descendo aos abismos infernais, experimentando o nirvana, sofrendo os prazeres boschianos do Jardim das Delícias Celestiais, em contato com seus arquétipos. Alguns atravessariam a última fronteira, perderiam seus rumos e nunca voltariam. Para quê? Nunca me esquecerei do dia em que um de meus alunos em Princeton veio à minha sala sob efeito de ácido, desejando, como ele me contou, nunca mais sair daquela viagem. Foi um dia depois dos assassinatos na Kent State University...

Estou indo longe demais? Quebrando as convenções do meu gênero escolhido, prescrito? Espero ter demonstrado meu argumento. A realidade, a realidade suprema, pode ser dolorosa. Assim disse Freud. Os budistas, os hindus também. Platão entendeu a refinada dor da realidade — a realidade, a das Idéias. Estamos condenados, ele pensava (e seu pensamento infiltrou-se, desde então, em nosso pensamento), a um mundo de sombras, refrações de uma realidade que nunca podemos experimentar diretamente, pouco importando quão grande seja o nosso desejo, a nossa disciplina.

Mas por que postulamos uma realidade tão inatingível?

A pergunta é importante, menos por causa de suas implicações idealistas do que pelas empíricas. Por que nós — alguns de nós, ao menos — nos agarramos tão obsessivamente ao que chamamos de realidade empírica? Por que essa realidade se tornou o baluarte de uma disciplina epistemológica que, apesar de sua rejeição por qualquer fundamento ético, é conduzida com tamanho rigor moral — isso, moral — um rigor defensivo?

Lembro-me de uma palestra a que assisti, na época de minha pós-graduação, proferida por um antropólogo cuja identidade não revelarei. Ele passou uma hora descrevendo sua metodologia empírica. Havia morado em uma aldeia onde simplesmente anotava de modo minucioso o que as pessoas faziam, mas sem jamais prestar atenção ao que diziam. Acho que nem chegou a aprender a língua deles, por medo de que isso contaminasse sua objetividade e o compromisso com sua metodologia. Extremo, com certeza, absurdo, mas não deixa de ter ressonância em nossos pressupostos empíricos.

Mais uma vez, sinto-me compelido a reiterar que não estou fazendo a defesa do irracional. Ao contrário, peço apenas uma abertura em nosso empirismo para incluir em sua esfera de ação o irracional — o menos que racional. Não há, no caso em estudo, nada irracional, nem mesmo fictício, sobre a cena. Em sua experiência, em sua descrição, em suas interpretações ou não-interpretações, é algo dado.



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Sempre relutei em reduzir a cena ao meramente subjetivo por duas razões. A primeira é que, dado o regime empírico que estou contestando, não o empirismo em geral, o subjetivo é freqüentemente reduzido a uma categoria de rejeição. A segunda é que o modo como concebemos o subjetivo é individualizado de maneira a excluir os seus fundamentos interlocutórios, interpessoais. Mesmo quando tentamos nos aprofundar em sua estrutura, tendemos a olhar para as causas biográficas (isto é, individualizadas). Ou, sob sua roupagem assim chamada lingüística, para a função formativa da linguagem. Como procurei fazer inicialmente, antes de minha descida retórica ao aparentemente irracional, quero destacar o modo como a cena e mesmo a realidade suprema são construídas. Falamos com excessiva facilidade de construção social da realidade quando deveríamos talvez falar da construção social de cenas e realidade e — o que é ainda mais importante — da construção social do modo como cenas e realidades são relacionadas ou não umas às outras; do modo como elas se hierarquizam — se hierarquia for mesmo a figura apropriada. Outros arranjos são possíveis. Entre eles, incluem-se equações de diferentes cenas e realidades, a rejeição de algumas delas, até sua foraclusão, sua Verwerfung, ou sua obliteração sem deixar sinal. Elas podem estar temporalmente organizadas, digamos, de maneira a oscilarem, em um modo de esconde-esconde ou nos termos da mecânica quântica, entre uma modalidade interpretativa e uma posicional, ou vice-versa.

Concepções construtivistas sociais são sempre um pouco perturbadoras em sua generalidade. Eu gostaria de restringir aqui minha discussão ao modo como as trocas interlocutórias precipitam a cena — e, se não a realidade suprema, sua articulação e avaliação — tanto quanto a relação entre cena e realidade. Como sugeri quando discutia a estruturação e a sua metapragmática da esquematização, a constituição da cena, da realidade e suas relações resultam de um complexo jogo indicial entre interlocutores que, intencionalmente ou não, têm que indexar a si mesmos e a sua relação em um tempo dado. Não há nada particularmente novo sobre essa observação. O que quero destacar, contudo, é que os interlocutores constituindo a si mesmos e aos outros não precisam ser indivíduos com quem alguém se engaje imediata ou mediatamente como, por exemplo, na leitura, mas que eles também podem ser figuras da imaginação ou da memória, beirando o mundo ensombreado do fantasma (em muitas culturas, memória e imaginação são conceitualmente fundidas). Podemos conceber essas duas categorias de interlocutores em termos sincrônicos e diacrônicos ou, se o leitor preferir, em termos de um eixo horizontal e um vertical cuja interseção é o momento experiencial. Dependendo da situação em que alguém se encontra — o modo como é estruturada — os interlocutores imediatos ou mediatos ou os imaginados ou lembrados podem ser dominantes, mas os interlocutores latentes, é minha sugestão, nunca estão inteiramente ausentes ou sem influência na interlocução. Como a focalização nesse ou naquele tipo interlocutório relaciona-se com a constituição e a avaliação da cena e da realidade, é algo a ser determinado caso a caso.

Processos indiciais nunca são simples atos ostensivos que apontam ou provocam um único elemento em uma realidade constituída um contexto. Além do argumento bastante óbvio de que, ao se indexar um elemento contextual, também se indexa o contexto em que aquele elemento ocorre, como se fosse, digamos, um contexto em que tal elemento pode ocorrer. Ou eles podem, de maneira irônica, cômica, transgressiva, jogar com a "inadequação" ou com a "surpresa" contextual. Lembro-me de como minha filha, aos três anos de idade, começou a rir quando, sem pensar, pus uma cenoura que eu estava comendo em um copo de vinho vazio para liberar minhas mãos para brincar com o cachorro. Ironia, jogo e transgressão chamam a atenção para a complexidade da dinâmica pragmática e metapragmática, cuja análise está além do escopo deste artigo (ver Crapanzano 2003).

A indexação de todo elemento e, por conseguinte, seu contexto é minimamente uma dupla indexação, pois não apenas ela aponta para o que é — o elemento contextualizante, o contexto — mas também para o que não é. Esse jogo hegeliano com a negação é tão inevitável, ao menos do ponto de vista comunicacional, a ponto de ser sem sentido na maior parte das circunstâncias, isto é, a menos que o próprio negado seja destacado como freqüentemente o é em jogos de palavras. Todavia, seja por negação, seja por afirmação positiva, indicadores podem, como sugeri, apontar simultaneamente para a realidade suprema e uma ou mais cenas "coincidentes". Ao fazê-lo, os indicadores também "definem" a relação entre a cena e a realidade. Ao menos nessas sociedades que privilegiam o realismo, seu realismo, parece possível que esse privilegiar mascare o modo como a indexação dessa realidade também indexa a cena. Quando a cena, porém, é o foco da indexação, parece possível que a indexação da realidade seja mais evidente. É óbvio que essas hipóteses requerem confirmação. O que está claro — e o que tentei demonstrar em minha discussão do ritual — é que há momentos em que a indexação da cena pode mascarar de tal modo a indexação da realidade suprema que aquela realidade se esvai.



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Até aqui destaquei o jogo de indexação entre realidade ou realidades e cena ou cenas do ponto de vista de uma única posição discursiva, a do ser falante ou pensante, mas nenhuma posição discursiva, como o destaque na interlocução sugere, é jamais sui generis. É sempre o resultado de complexas dinâmicas interlocutórias que nascem pelo discurso ou pela conversação. Elas incluem o jogo da indexação ou, talvez de modo mais acurado, a luta (exceto nas situações mais convencionais) entre interlocutores diferentemente posicionados, incluindo tanto os reais quanto os lembrados e os imaginados. Esse jogo é, como costumo argumentar (Crapanzano 1992), governado por um conjunto de convenções determinantes (ou metapragmáticas) às quais me referi como o Terceiro, ele próprio um foco de luta interlocutória (Crapanzano 1992: introdução, capítulos 3 e 4). Em termos simples, qualquer interlocução sempre envolve uma negociação para definir o modo como a interlocução será esquematizada, quais convenções discursivas prevalecerão e quais procedimentos hermenêuticos e axiológicos serão apropriados para a interpretação e a avaliação. É nesse nível metapragmático — esse estruturar da estrutura [frame] — que o poder, seja no sentido entranhado de Foucault, seja em um outro mais institucionalmente centrado, como no marxismo, insinua-se mais efetiva e cegamente no discurso e sua precipitação da realidade, a cena, e em sua mútua relação8. Para que qualquer comunicação seja bem-sucedida, há sempre uma acomodação — uma aceitação da estrutura, convenções e hermenêutica e axiologia relevantes — para a ocasião. É claro que essa aceitação não precisa ser genuína. Ela pode ser prática, política ou simplesmente hipócrita. Apenas o ingênuo aceita a acomodação sem suspeitar. Sempre se esconde atrás de cada interlocução a opacidade — a mente — do outro que lança sua sombra na interlocução9.

Há momentos, contudo, em que as partes da interlocução se abandonam nem tanto uma à outra, mas ao mundo intersubjetivo que elas co-criaram. Pelo menos desde o trabalho de Winnicott (1982:104-110) sobre o espaço potencial e a área intermediária da experiência — grosso modo o espaço transicional entre a realidade interior e a exterior — teóricos das relações de objeto na psicanálise têm se preocupado com a dinâmica do espaço-tempo na sessão psicanalítica. Entre os mais importantes está Thomas H. Ogden (1999), que explora o espaço intersubjetivo criado durante a hora psicanalítica, ao qual se refere como um "terceiro analítico intersubjetivo" ou, simplesmente, um "terceiro"10. Ogden (1999:462) argumenta que o pensamento psicanalítico contemporâneo "simplesmente não pode mais falar do analista e do analisando como sujeitos separados que tomam um ao outro por objetos". Eles estão submetidos, pelo menos durante a sessão analítica, a um engajamento intersubjetivo (ou dialético) tão forte que o engajamento torna-se (experiencialmente) uma terceira subjetividade que eles têm que considerar tanto de dentro quanto de fora. "O intersubjetivo e o individualmente subjetivo criam, negam e preservam um ao outro" (1999:463).

Acredito que, no consultório, uma dimensão maior da vida psicológica do analista com o paciente assume a forma de um devaneio concernente aos detalhes cotidianos de sua própria vida... Esses devaneios não são apenas reflexões da falta de atenção, do auto-envolvimento narcísico, de conflitos emocionais não resolvidos e congêneres. Ao contrário, essa atividade psicológica representa formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em sensação) dadas à experiência não-articulada (e, muitas vezes, ainda não sentida) do analisando enquanto estão tomando forma na intersubjetividade do par analítico (isto é, no terceiro analítico) (Ogden 1999:476).

Ogden (1999:487) destaca a dimensão inconsciente do terceiro intersubjetivo co-criado. Ele enfatiza o modo como o analista subitamente focalizará um objeto comum que ele havia ignorado, por exemplo, o carimbo de mala direta no envelope de uma carta que ele pensava ser confidencial. Ele reconhece que a relação co-criativa é duplamente assimétrica, pois: a) "a exploração do mundo do objeto interno inconsciente e de formas de relação com o mundo externo do analisando" é privilegiada; b) os dois participantes experimentam o terceiro a partir de suas divergentes perspectivas, personalidades, modos de ajuste a seus respectivos mundos, o seu mundo.

Ogden restringe sua discussão à sessão analítica, mas eu argumentaria que somos freqüentemente tão intersubjetivamente cativados que temos que considerar (não há dúvida de que com menos auto-reflexão crítica que o psicanalista) essa ou aquela figuração experiencial da intersubjetividade. Dois exemplos que vêm imediatamente à mente: o primeiro diz respeito àqueles emaranhados de ódio e amargor de longa data, do tipo que Strindberg descreve em "A Dança da Morte"; o segundo refere-se àqueles momentos de encantamento amoroso em que os amantes sentem-se como um só ser, mas têm mesmo assim que se separar. Há ainda toda a sorte de condições patológicas que podem ser entendidas em termos de atração intersubjetiva, a mais óbvia delas sendo a folie à deux, mas teríamos que incluir "perturbações familiares" que atam os membros de uma família uns aos outros de tal modo que eles não podem se libertar ou o fazem precariamente. Todos esses exemplos, bem como os momentos rituais que discuti aqui, são estruturados diferentemente da sessão psicanalítica. As demandas intersubjetivas são passíveis de serem tão intensas que a diferenciação subjetiva pode perder o seu rumo. É certo que ouvi psicanalistas falarem de raros momentos em que perceberam que eles e seus pacientes sentiram-se realmente como um só ser, "como se eles partilhassem uma única consciência". Esses momentos são raros e não cultivados nas sociedades ocidentais, onde são usualmente considerados como ilusórios, mas recebem maior crédito em outras sociedades, como vimos no conceito de "um só coração" dos Bwiti, quando os participantes do ritual se aglomeram erguendo suas velas para formarem uma só chama.

Como parte de minha recente pesquisa sobre os Harkis, os argelinos que se aliaram aos franceses durante a Guerra de Independência da Argélia, visitei um dos mais notórios campos em que aqueles que conseguiam escapar do massacre após a independência foram encarcerados11.

Mohammed B. crescera em um dos mais notórios desses campos — um camp de forestage isolado nas montanhas, perto de Carcassone — que ele visita pelo menos uma vez por ano "para se lembrar". Hoje, com exceção dos poucos hippies alemães que acampam ali, a aldeia está abandonada, os casebres de pedra em ruínas e a praça da entrada cheia de carros abandonados e pneus velhos. Apenas a casa do comandante do campo, agora seu chalé de caça, que preside a vista da aldeia, está conservada. Mohammed estava ansioso para me mostrar o campo. Na longa viagem de carro até lá, falamos dos Harkis, de mercenários, da economia francesa, de política e, inevitavelmente, da guerra no Iraque. À medida que nos aproximávamos do campo, Mohammed começou a ficar reflexivo, perdido, imagino, em memórias. Fiquei chocado ao ver quão isolado era o campo. Em vários momentos, ele me pediu para parar e tirar fotos da aldeia e dos arredores e, quando eu o fazia, ele me contava, como se fosse seu dever, sobre um amigo, um pied noir, que ficou tão tocado com as condições desumanas que não conseguiu mais tirar fotos. Fiz o que Mohammed me havia pedido — não gosto particularmente de tirar fotos. Senti-me manipulado. Fiquei indignado e, contudo, cheio de compreensão para com a ambivalência de Mohammed.

Às vezes, com lágrimas nos olhos, ele me mostrava o estábulo onde ele, a mãe e os irmãos moraram, a escola a que foi mandado, o terreno onde brincava, o poço... Fui tomado pelo pensamento de que tudo aquilo que passava por sua mente eu não tinha como saber, mas que eu sabia de algum modo. Na volta, paramos para almoçar. Mohammed bebeu muito vinho, ficou taciturno e, de volta ao carro, cochilou. Foi um sono obliterante, pensei. Quando ele acordou, ficou sentado em silêncio, mexendo de tempos em tempos em seu telefone celular, esperando, imagino, por um telefonema que o tirasse da implosão do mundo de sua memória. Eu também fiquei na esperança de que ele tocasse. Finalmente, após mais ou menos uma hora, Mohammed virou-se para mim e disse que, se não fosse por sua mãe — que sempre insistia em olhar positivamente para o futuro — ele cometeria suicídio. Mas ele não podia desapontá-la (Ela é, de fato, uma mulher notável que conseguiu não apenas sobreviver ao horror de ver o marido degolado diante dela e à subseqüente vida no campo, mas também encontrou um emprego que lhe permitiu criar e educar os seus três filhos). Fiquei aturdido pelas palavras de Mohammed, menos em razão do que ele havia dito, mas pelo fato de que eu estava pensando que ele tinha pensamentos suicidas enquanto estava sentado ao meu lado. Não pude dizer coisa alguma. Não havia o que dizer. O carro tornou-se uma espécie de prisão. Eu queria fugir. Felizmente, o telefone celular de Mohammed tocou. Era um de seus clientes. Ele é mestre-de-obras.

Água-forte de Gerard Trignac

Todo antropólogo teve experiências como essas. Temos uma relação assimétrica com nossos informantes. Privilegiam-se suas palavras. Ogden poderia dizer que fui tomado por algo como o terceiro intersubjetivo, mas embora eu tenha experimentado uma proximidade cativante, quem sabe até uma fusão com os pensamentos de Mohammed naquele momento, hesito em me referir àquela proximidade, àquela possível fusão como o terceiro. O entendimento de Ogden surge da própria experiência. Ele mesmo fala de estar ao mesmo tempo dentro e fora do terceiro intersubjetivo. Sua teoria reflete — e mistifica inevitavelmente — a experiência. Se assim entender o leitor, é um sintoma da experiência. Ele não pode nem atingir a distância necessária para observá-la de fora, nem pode refletir sobre o jogo da indexação — a luta — que está acontecendo enquanto ele o experimenta sem perturbar, até mesmo destruir, a própria experiência. Há sempre um limite para a nossa consciência autoduplicadora e triplicadora. Dada a construção intersubjetiva da autoconsciência que estou advogando, eu teria que perguntar, em todo caso, como uma consciência putativa da intersubjetividade, sua atratividade, relaciona-se com a subjetividade intersubjetivamente constituída. Não podemos nos deixar seduzir pela interpretação no rumo de uma onisciência pontual.



***



Olho pela última vez para a fortaleza de Trignac e percebo, de repente, que nunca me perguntei quem lá habita. Há janelas, mas elas estão na penumbra. Não consigo ver nelas mais do que posso ver na mente de outrem. Há alguém olhando para mim? Para alguém que observa o quadro? Minha sala mergulha na escuridão. É o fim de uma tarde de inverno — anoitecer, crépuscule.



Notas

(1)

Eu observei
Tua sombra e a escuridão de teus passos,
E meu coração só vê as profundezas
De teus mistérios fundos.
Eu me deito sobre ossos, ataúdes onde a morte
Esconde os troféus que ganhou de ti
Na ânsia de calar tenazes perguntas
Sobre ti, constrangendo algum espírito
Solitário, mensageiro, a dizer
Quem somos nós (1934: ll.2-28).

(2) Como se verificará, meu uso do termo "cena" não deve ser confundido com a metáfora teatral de Erving Goffman (1959). O estilo próprio de empirismo de Goffman exclui precisamente o que quero dizer por "cena". Nas palestras em que baseei este artigo, com o objetivo de diferenciar minha noção de cena das normalmente usadas pelos sociólogos, usei o termo francês scène, mas no fim das contas isso apenas parecia uma pretensiosa manipulação de palavras. Ressalte-se que o uso do vernáculo acarreta a perda da referência imediata à tradução de Lacan para a expressão freudiana der andere Schauplatz como scène: a cena do sonho.

(3) É importante observar que Schutz reconhece sua dívida para com a noção de "subuniversos" de William James. A realidade suprema de Schutz corresponde grosso modo ao "mundo do sentido" de James. Conferir, deste autor, o ensaio The psychology of belief (s/d.:1028-1030).

(4) Já discuti o conceito de cena com alguns psicanalistas. Embora eles sejam sensíveis enquanto grupo a mudanças de humor e de caráter de seus pacientes e de si mesmos, tiveram uma reação de surpresa quando lhes perguntei sobre mudanças no sentido de realidade imediata durante as sessões de psicanálise. Simplesmente, os seus consultórios eram o contexto. Porém, após pensarem sobre o assunto, começaram a se lembrar de mudanças como estas. Quando os pacientes estavam deprimidos, eles diziam que o consultório parecia mais escuro e menor. Muitos falaram em luz azulada. Já em casos de mania, com a euforia do paciente, o consultório iluminava-se e muitos mencionavam a luz amarela. Alguns sentiam que o cômodo ficava mais espaçoso; outros sentiam claustrofobia. Raiva e agressão foram associados com vermelho. Objetos também mudavam. De repente, tornavam-se conscientes de como o estofamento de um sofá estava gasto, ou da poeira na cúpula de um abajur que nunca antes haviam notado. Uma analista disse que um pequeno quadro diante dela, em estilo muito abstrato, que costumava ser para ela uma espécie de ponto de reflexão enquanto escutava seus pacientes, tornava-se maior ou menor dependendo da ocasião. Ela não soube dizer por que nem quando.

(5) Embora não haja dúvida de que o humor e a atmosfera desempenhem um papel importante na descrição, para não falar da constituição da cena, não quero reduzi-la a isso. Ambos são, como observa Charles Altieri (2003:54), englobantes. Humores referem-se a experiências interiores; atmosfera, a experiências exteriores. Humores difundem-se e não se ligam, como explica Altieri (2003:54), a objetos específicos: "Nos humores, os afetos parecem estar intimamente relacionados a um estado geral do sujeito. Mas essa relação persiste em não ser algo para o qual se possa estabelecer uma narrativa, talvez porque humores pareçam uma entidade completa, sem começo e sem fim, mas apenas extensão, duração e esvaecimento... Humores são sintéticos e imperialistas, absorvendo detalhes em vez de se conformarem a aparências específicas (2003:54)". Altieri insiste em que, como os humores se difundem, o sujeito intencional não é particularmente importante. "Decerto nos sentimos envolvidos como sujeitos, mas não organizamos as cenas em termos de nossos interesses específicos ou perspectivas enquanto sujeitos. Ao contrário, a subjetividade flutua, variando entre um sentido da própria participação e um sentido de se estar envolvido em estados de espírito que todo sujeito pode alcançar, uma vez que estados de espírito parecem existir independentemente de perspectivas práticas" (2003:54). Eles absorvem a agência para o transpessoal. Embora a atmosfera possa ser diferenciada dos humores em termos de seu foco exterior, eles podem metaforizar um ao outro, como quando minha aluna se referiu à mudança de humor na sala. Tanto humor quanto atmosfera são diferentes do que quero dizer com "cena". Este é um conceito "objetivista", definido em termos de elementos e eventos específicos e que tem grande potencial narrativo e teatral. Não quero, contudo, elaborar essas diferenças, já que as distinções entre humor, atmosfera e cena são inevitavelmente confusas.

(6)

Com o céu seguro pela luz do dia
O poeta [Alastor] consultava em silêncio
A alma inerte. À noite, a paixão vinha,
Tal inimigo cruel em sonho aflito
Arrancou-o do descanso e o conduziu
À escuridão (Shelley 1934: ll.221-226).

(7) Para uma descrição mais detalhada dos rituais e das peregrinações Hamadsha, ver Crapanzano 1973, especialmente pp.115-118.

(8) Não pretendo sugerir que não haja nenhuma realidade "dura" lá fora mas, ao contrário, que a realidade, aquilo a que os fenomenólogos se referem como resistência, é originada e recebe forma articulada e valor desencadeados pelo discurso.

(9) Veja minha discussão sobre diálogos de sombras, aqueles diálogos interiores que cada participante dialógico tem silenciosamente consigo mesmo enquanto a troca dialógica com o outro, com outros, transcorre (Crapanzano 1992:213-ss.).

(10) Ogden (1999:464) toma o cuidado de diferenciar sua noção do terceiro do "nome do pai" (nom du père) de Lacan, que Ogden entende como um "meio-termo" entre símbolo e simbolizado, entre o si mesmo e as circunstâncias em que ele se encontra, criando um "espaço em que o sujeito interpretante, auto-reflexivo e simbolizante é gerado". Eu acrescentaria que o terceiro de Ogden tampouco é equivalente ao meu uso do termo como metapragmaticamente autorizado. Embora próximo ao nome do pai de Lacan, o Terceiro, como eu o uso, está em outro nível de abstração, que pode ser simbolizado pelo "nome do pai" como também pode sê-lo pela "Lei", ou encarnado pelo pai ou, nesse sentido, uma figura totêmica ou deus. Quero evitar a implicação psicogenética do termo lacaniano.

(11) Dos aproximadamente 250 mil Harkis, entre 100 e 150 mil foram mutilados e assassinados pela população argelina, em geral no tempo da independência. Apesar da tentativa de De Gaulle para evitar a fuga dos Harkis para a França, por volta de 20 mil famílias conseguiram fazê-lo e foram imediatamente colocadas em campos, alguns por períodos que chegaram a 16 anos.



Referências bibliográficas

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Recebido em 12 de agosto de 2005
Aprovado em 29 de agosto de 2005
Tradução: Rodrigo Maffei Libonati



* [N.T.] A expressão original "double voicing" remete ao conceito de Bakhtin de um duplo nível de alocução, na linguagem literária.