Gaia em debate
Terra,
mundo, Pachamama... Há muitas maneiras de nomear nosso planeta, mas
poucas causam mais controvérsia no momento do que o termo Gaia —
uma divindade primordial que, no imaginário dos gregos antigos, regia
os elementos da natureza. Resgatado nos anos 1970 para ilustrar a
hipótese do ambientalista James Lovelock e da bióloga Lynn Margulisde
que o planeta é como um ser vivo que se autorregula, o nome está no
centro de uma reação intelectual à crise climática, à perda da
biodiversidade e à probabilidade de um colapso global.
A reportagem é de Bolívar Torres, publicada pelo jornal O Globo, 13-09-2014.
Gaia ressurge
agora como teoria científica e conceito filosófico, um ponto de partida
privilegiado para se problematizar as relações entre homem, natureza e
tecnologia. Algumas destas propostas estarão em pauta no colóquio “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra”, que acontece a partir de segunda e até sexta-feira na Fundação Casa de Rui Barbosa. Idealizado pela filósofa Déborah Danowski, pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e pelo antropólogo e filósofo francês Bruno Latour,
o evento reúne diversos pensadores brasileiros e estrangeiros para
debater novas maneiras de imaginar e ocupar o espaço do mundo, mesclando
ciências exatas e humanas.
Entre os 29 participantes, há visões divergentes. Para a filósofa belga Isabelle Stengers, que fará a conferência de encerramento do colóquio, Gaia é
uma intrusa, que desafia nossas categorias de pensamento, e com a qual
nem mesmo as grandes potências mundiais podem negociar. Já para a
filósofa francesa Emilie Hache, que participará de uma mesa-redonda na sexta, Gaia coloca de ponta- cabeça o nosso antropocentrismo,
alertando que a espécie humana nunca será mais forte do que o planeta, e
que a coabitação é mais viável do que a dominação. Embora seja
reconhecida pela comunidade científica, a teoria tem detratores — Bruno Latour, que abre o evento com a conferência “O que significa obedecer às ‘ Leis de Gaia’ ao tentar manter o antigo imperativo ‘só se vence a Natureza obedecendo-lhe?’”, já admitiu que foi diversas vezes “aconselhado a não utilizar o termo”, nem a confessar seu interesse pelas ideias de Lovelock.
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Gaia é um dos nomes que vêm sendo convocados em todos os cantos do
mundo para se pensar ontológica e politicamente os modos possíveis de
enfrentamento e de resistência à radical degradação atual das condições
de existência não só dos humanos, mas de uma enorme quantidade de outros
viventes sobre (e sob) a Terra — explica Déborah Danowski.
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A urgência de abordar a questão se dá porque simplesmente não podemos
viver em um mundo 3 ou 4 graus mais quentes que o atual, não há registro
de nada semelhante a isso na história da “civilização”. Entretanto, os
governos mundiais, com os seus timidíssimos e até covardes acordos
internacionais, têm se mostrado incapazes de fazer qualquer coisa a
respeito.
Conexões falhas na universidade
Professor da Divisão de Ecologia Humana da Universidade de Lund (Suécia), o antropólogoAlf Hornborg, que falará terça-feira no evento, confessa ter um certo ceticismo em relação ao nome Gaia,
embora acredite que ele possa ser usado em um sentido mais amplo e
“menos antropomórfico” para nos lembrar que “o sistema Terra e sua
biosfera têm lógicas próprias, indiferentes à espécie humana”.
— Cabe a nós humanos escolher se respeitamos e nos conformamos a esse sistema ( por exemplo, minimizando o uso de combustíveis fósseis)
ou se continuamos a gerar mudanças na biosfera que tornarão difícil a
sobrevivência das nossas espécies — sugere o antropólogo, em entrevista
por e-mail.
Decisiva
para o nosso futuro, a escolha passa, segundo ele, pelo desenlaçamento
das redes que fundem as dimensões materiais do ambiente e os processos
culturais da sociedade. Para Hornborg, autor do livro “The power of the machine: global inequalities of economy, technology, and environment” (O
poder da máquina: desigualdade global da economia, tecnologia e meio
ambiente), já é “evidente” que o que acontece com a biosfera está
estreitamente conectado com aspectos econômicos e culturais, como nosso
padrão de consumo. Apesar de imagens de satélites mostrarem como a
distribuição de infraestrutura tecnológica coincide com a distribuição
de dinheiro no mundo, e apesar de o desenvolvimento ter comprovadas
consequências ambientais, a ecologia, a economia e a engenharia
continuam, na avaliação do antropólogo, separadas nas universidades.
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O ponto de vista do mundo dominante falha em ver essas conexões. Uma
das razões é que temos tendência em distinguir objetos materiais, como
as máquinas, com as relações sociais que os geraram, como a troca
desigual de recursos no mercado mundial. Quando o capital se torna
tecnologia, ele se torna moralmente neutro e inocente. Outro ponto é que
não entendemos as relações entre economia e física. Assim como (o
economista romeno)Nicholas Georgescu- Roegen demonstrou
há mais de 40 anos, a produção de commodities é, na verdade, a
destruição dos recursos. A criação do valor de consumo é, também, a
criação de entropia. Ao contrário do que muitos pensam, isso não é
inevitável. Isso é a consequência do uso generalizado do dinheiro, uma
instituição que precisa ser fundamentalmente repensada.
Segundo Émilie Hache,
mestre de conferência e professora do departamento de Filosofia na
Universidade de Nanterre (Paris), a questão não é se perguntar “por que”
as relações entre ciência, tecnologia e meio ambiente são ignoradas,
mas sim “por quem”. Em seu livro “Ce à quoi nous tenons, propositions
pour un écologie pragmatique” (Aquilo a que damos valor, propostas para
uma ecologia pragmática), Emilie parte
da crise ecológica nos anos 1980 para entender seu sentido científico e
político. O que implica repensar a dimensão moral da ecologia, já que
as ações humanas geraram novas responsabilidades sobre o que será
deixado às gerações futuras.
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Não creio que o “mundo” tenha dificuldades de entender as questões ao
mesmo tempo econômicas e sociais da nossa relação com o meio ambiente —
diz ela. — Mas se aceitarmos esta formulação, diluindo as
responsabilidades, então podemos esperar que a civilização desmorone e
que daqui a um século, ou dois, historiadores se interroguem sobre a
incapacidade do nosso mundo em tomar as medidas necessárias, mesmo tendo
todos os dados científicos para isso.
Egoísmo da espécia humana
Uma visão comum entre a maior parte dos convidados do evento é a de que Gaia exige o fim da visão utilitarista que opõe homem e natureza. Bruno Latour defende
que esta última não pode ser pensada de forma independente das relações
entre os humanos e os não humanos. A natureza não seria um valor em si.
Para Émilie,
porém, o problema está menos na concepção moderna de natureza, a qual
já se tem uma fácil relação crítica, e mais na “dificuldade de
substituí-la, de mudar o imaginário”.
— A natureza está em todos os lugares, no direito, nas normas, na biologia, no social... — enumera Émilie.
— Não é tanto um conceito, mas um operador, que serve a hierarquizar,
desvalorizar e dominar tudo que ele ataca: as mulheres, as pessoas de
cor, os outros seres vivos... A natureza não tem nada a ver com a
ecologia. Precisamos de articulações que abracem as questões ecológicas
em outros problemas: ecologia e feminismo; ecologia e desigualdades
sociais; ecologia e racismo; ecologia e etologias...
Os
pesquisadores ainda tentam entender por que a espécie humana não cria
pontes de colaboração, mesmo diante de uma situação de emergência
climática. Parte dessa dificuldade talvez possa ser atribuída à
prevalência, no século XX, da ideia de que somente o egoísmo e a
competição exerciam um papel na regulação do planeta. Cientista,
pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Antonio Nobre acredita
que a noção implícita de que o processo essencial da seleção natural
embutia em si o “enobrecimento do egoísmo” foi um erro grave, que teria
bloqueado a visão de outros processos essenciais para o funcionamento do
conjunto. Hoje, porém, novas descobertas indicam que, em Gaia, quanto mais rico e complexo um sistema, menor o papel da competição e maior o da colaboração.
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A explicação da seleção natural para a variedade de organismos era sem
dúvida melhor do que as explicações anteriores, mas ela não era idêntica
em tudo o mais com explicações que viriam depois — explica Nobre, que falará na terça-feira sobre “Os fundamentos belíssimos da vida na regulação planetária”.
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Um vasto campo de complexidade, invisível antes do surgimento da
biologia molecular, permaneceu ignorado no auge do desenvolvimento do
darwinismo. E suspeita-se que parte maior da complexidade bioquímica na
base do funcionamento dos sistemas vivos ainda permaneça oculta. Por
exemplo, a explicação mais simples, como aquela na base da teoria da
evolução baseada apenas nos mecanismos demonstrados da seleção natural,
não dá conta de clarificar o papel da vida na regulação do ambiente
planetário. Ademais, existem explicações simplíssimas ilustrando o papel
central da colaboração na evolução de complexidade, que são rejeitadas
apenas porque não batem com o que tornou-se um dogma excludente, o da
competição e da sobrevivência do mais apto.