quinta-feira, 5 de junho de 2014

Quando ter trabalho não signica sair da pobreza

As cloacas do capitalismo: quando ter trabalho não significa sair da pobreza

 
A pobreza costuma estar associada ao desemprego, mais ainda em um país como a Espanha, com a quarta parte de sua força de trabalho desempregada. É o que reflete o VIII Relatório do Observatório da Realidade Social da Cáritas. No entanto, existe algo não tão óbvio assim: 13% dos trabalhadores estão na linha da pobreza (8,9% no conjunto daUnião Europeia). Um salário ao final do mês já não é garantia de uma vida digna.
A reportagem é de Luis Matías López, publica por Público.es, 02-05-2014. A tradução é do Cepat.

Esse assunto aparece no livro de Barbara Ehrenreich, publicado pela primeira vez em 2001, nos Estados Unidos, e que, traduzido por Carmen Aguilar, é publicado por Capitán Swing: “Por cuatro duros. Como (no) apañárselas en Estados Unidos”. Esta ensaísta e jornalista, dirigente do Partido Social-Democrata norte-americano, protagonizou, durante três meses, uma experiência sociológica destinada a mudar as mentes daqueles que, a partir de posições de privilégio, acreditam que no país das oportunidades só é pobre quem não luta para deixar de sê-lo.
Na atual situação da Espanha, pode parecer supérfluo – se não exótico – tratar da exploração de uma boa parte da força de trabalho nos Estados Unidos, mas há ocasiões em que um espelho exterior reflete a própria imagem. Além disso, fica evidente a basbaquice a respeito do idealizado modelo proveniente do “império”.
Ehrenreich, pertencente a esta casta minoritária de elevados ingressos e trabalho espiritualmente enriquecedor que pode ter caprichos, viajar ao estrangeiro, ter uma moradia confortável, comer em bons restaurantes, poupar para a aposentadoria e cuidar de seu físico em uma academia, adentrou-se no mundo dos trabalhadores não qualificados. Deparou-se com salários miseráveis de 6 a 7 dólares a hora (ou de apenas 2,5 a mais de gorjetas, em muitos restaurantes), condições de trabalho leoninas, chefes insensíveis, precariedade, exigências humilhantes (como testes prévios com perguntas sobre crenças e vida particular ou análises antidrogas) e falta de assistência médica adequada, de maneira que cair enfermo ou sofrer um acidente resulta econômica e mentalmente inadmissível. Foi uma viagem às cloacas do capitalismo no país em que este, mais do que uma ideologia, é uma religião.
A repercussão do livro “Por cuatro duros” foi notável, embora não suficiente para mudar uma situação vergonhosa que, desde então, não fez mais do que piorar. Constituiu um êxito instantâneo, um feito que levou sua autora a ditar conferências por todo o país, recebendo críticas muito favoráveis, que a converteu em alvo de acusações de propagandista do comunismo, por setores mais direitistas e conservadores. O texto se tornou, inclusive, leitura obrigatória em várias universidades, não sem campanhas de protesto e boicotes em algumas delas.
Ehrenreich não descobriu nada que não estivesse à vista de qualquer pessoa que se preocupe em olhar ao redor. Não se tratava de um fenômeno marginal, mas, sim, de algo que atinge um setor significativo da população. Não dizia respeito a um método novo de refletir a injustiça e a desigualdade, em um país em que estas são marcas da casa. Nada que não estivesse refletido na autobiografia de Woody Guthrie ou em “Las uvas de la ira”, de Steinbeck.
No entanto, a paisagem não era, como nesses dois casos, o de uma grande depressão, mas o de “uma época de prosperidade aparentemente ilimitada”. Porque a imersão de Ehrenreich nesse submundo ocorreu em fins do século XX, quando se forjavam fortunas fabulosas sobre bolhas especulativas, arrogava-se o pleno emprego e eram os empresários os que precisavam com urgência de trabalhadores. E, no entanto, precisamente lá onde se rege a suprema lei da oferta e da demanda, isso não se traduziu em uma melhora substancial de salários e de condições trabalhistas e sociais entre os trabalhadores não qualificados.
Se fosse para pensar em uma época semelhante na Espanha, seria a dos anos prévios à atual recessão, 2006 ou 2007, quando o desemprego era relativamente baixo (em torno de 8%), o que facilitava a acolhida massiva de milhões de imigrantes que dominavam o serviço doméstico e os trabalhos mais duros na construção. Aqui, alimentados pelas máfias e a cobiça empresarial, também germinaram os abusos e a exploração. E o pior estava por vir.
A principal conclusão de “Por cuatro duros” é que, nessas condições, a sobrevivência digna era quase impossível. Simplesmente, as contas não fechavam. Como camareira em Flórida, faxineira e cuidadora em uma residência para enfermos de Alzheimer em Maine, ou empregada do Walmart em Minesota, Ehrenreich, já perto dos 60 anos, empenhava-se para dar validade ao seu experimento em viver de seu trabalho e compartilhar com seus companheiros as dificuldades para sobreviver, em estado permanente de angústia.
Nem sequer um segundo trabalho, em tempo parcial, permitia-lhe algo parecido a uma vida sem angústias, que fosse para além de chegar ao final do mês com a língua de fora. O aluguel costumava atingir 50% de sua renda, e isso vivendo em alojamentos, apartamentos e lugares fedorentos, inóspitos e afastados, em busca da moradia mais barata possível, com a dificuldade acrescida pela ausência de transporte público decente, o que a obrigava a utilizar um automóvel e a assumir os gastos que isso acarretava.
A precariedade, a pobreza, a frustração, as más condições de trabalho, o pluriemprego e a alimentação inadequada acabavam sendo a realidade, anulando inclusive a capacidade de se rebelar. Em certas ocasiões, Ehrenreich tentava fazer seus companheiros (mulheres em sua maioria) reagirem, mas não podia ir muito longe. A sua experiência era para escrever um livro, um intervalo antes de voltar para a sua vida confortável de antes. Ela podia se permitir assumir riscos impunemente, enquanto que para eles era a única vida que tinham, e ainda temiam que fosse pior.
Estavam indefesos diante de empresas que, cheias de hipocrisia, fomentavam a falta de solidariedade, já a partir da fase de seleção, com perguntas como: ‘Você entregaria um companheiro que perceba que está fazendo algo inadequado?’ Ou seja: ‘Denunciar-lhe-ia, caso gaste o tempo conversando, coma coisas da cozinha do restaurante ou furte algumas meias? E se a resposta era não, já podiam ir buscar emprego em outro lugar.
A militância nos sindicatos era desestimulada de forma grosseira. Na fase de treinamento e doutrinamento, explicava-se aos novos trabalhadores que os sindicatos já não tinham nada para lhes oferecer. “O Walmart está em alta, os sindicatos em decadência. Avaliem vocês próprios (...) Pensem no que perderiam em um sindicato. Em primeiro lugar, o seu dinheiro, em razão das contribuições. Em segundo, sua voz. Por último, salários e benefícios, que estariam em jogo na mesa de negociação”. Desta maneira, era melhor que deixassem de bagunça, que desfrutassem do fato de terem conseguido “um grandioso posto de trabalho” na maior vendedora varejista do globo, e que praticassem o “patriotismo de empresa”, inclusive com catárticos vivas ao chefe! Isso, sim, com um trabalho penoso, esgotador, alienante, estressante e por 7 miseráveis dólares por hora. Um passaporte para a pobreza e a marginalidade, em concorrência com o trabalho quase escravo em países do Terceiro Mundo, em que se fabrica a maior parte dos objetos que depois se vendem a preços acessíveis, mas regados com muito suor e exploração.
“As nações civilizadas”, destaca Ehrenreich, “compensavam a falta de salários justos proporcionando serviços públicos relativamente generosos como o seguro de saúde, creches gratuitas, ou subvencionadas, alojamentos subvencionados e transporte público eficiente. Porém, os Estados Unidos, com toda a sua riqueza, deixam os cidadãos a mercê de si mesmo”, o que no caso dos trabalhadores não qualificados significa, com frequência, lançá-los na pobreza e na marginalidade.
Contudo, caso se ascenda dos 20% mais baixo para os 20% mais alto, “entra-se em um mundo mágico, onde as necessidades estão satisfeitas e os problemas resolvidos quase sem esforço”. Nessa faixa estavam (e aí continuam), diz a autora, advogados, executivos, juízes, escritores, editores e, claro, os políticos responsáveis pelas decisões que atingem a vida dos mais pobres – desde a cobertura de saúde até o salário mínimo -, e nem sequer são capazes de ver as excrescências incompatíveis com o mito do “american way of life”.
Esses trabalhadores pobres “são de fato os grandes filantropos da sociedade norte-americana. Deixam de cuidar de seus filhos para que os filhos de outros estejam bem cuidados, vivem em alojamentos abaixo da habitabilidade para que outras casas estejam reluzentes e perfeitas. Passam privações para que a inflação se mantenha baixa e o preço das ações em alta (...). Ser membro da classe trabalhadora pobre é ser um doador anônimo, um benfeitor de nome desconhecido para todos os demais”.
A realidade que “Por cuatro duros” demonstra é a dos Estados Unidos no final do século XX. Desde então, as coisas não melhoraram por lá. Pelo contrário: o Estado cada vez mais abandonou os que menos têm. Contudo, agora, olhem para os arredores, neste outro lado do Atlântico. Aqui o panorama é tão diferente? Com seis milhões de desempregados, uma profunda desvalorização salarial e os contratos degradantes convertidos em norma, a precariedade que é a antessala da pobreza se estende sem parar. Não apenas entre os trabalhadores não qualificados, mas também entre os que têm um curso universitário, porque isso já não é garantia suficiente de que não cairá no buraco. E, enquanto isso, a desigualdade dispara: um recente relatório da OCDE destaca que a distância entre ricos e pobres se ampliou de forma espetacular na Espanha em razão do impacto da crise. Entre 2007 e 2010, a renda dos 10% mais ricos diminuiu em menos de 1% ao ano, ao passo que entre os 10% mais pobres, a queda foi de 14% ao ano.
Neste país, a vergonha e injustiça estão tão à vista que não é necessário que alguém como Ehrenreich se infiltre no reino do abuso, da exploração e da precariedade para descobrirmos o aspecto mais sinistro de um capitalismo que atua descaradamente.