Transcrevo abaixo uma interessante entrevista realizada com o diretor Eduardo Coutinho.
Curiosamente, a entrevista aborda alguns dos aspectos que discuti com Shaka, em outra postagem deste mesmo Blog.
23/4/2008
‘A linguagem é mais que o autor’.
O longa-metragem Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, mistura de documentário e ficção, que já recebeu prêmios em festivais internacionais, abriu o X Bafici (Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires), na Argentina, que aconteceu de 8 a 20 de abril. “Como produtor, já não me interessam os ‘temas’”, disse. Eduardo Coutinho vem filmando ininterruptamente desde 1968.
Segue a entrevista que Eduardo Coutinho concedeu a Mariano Blejman e que está publicada no jornal argentino Página/12, 09-04-2008.
‘A linguagem é mais que o autor’.
O longa-metragem Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, mistura de documentário e ficção, que já recebeu prêmios em festivais internacionais, abriu o X Bafici (Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires), na Argentina, que aconteceu de 8 a 20 de abril. “Como produtor, já não me interessam os ‘temas’”, disse. Eduardo Coutinho vem filmando ininterruptamente desde 1968.
Segue a entrevista que Eduardo Coutinho concedeu a Mariano Blejman e que está publicada no jornal argentino Página/12, 09-04-2008.
A tradução é do Cepat.
O jogo de espelhos e de caixas chinesas proposto por Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, é um exercício próprio de quem parece ter feito tudo no cinema, mais ainda no mundo documental. É que Coutinho, além de fazer um filme, filma uma espécie de epistemologia do cinema. A extensa obra de Coutinho (16 filmes) serviu como ponto de inflexão cada vez que tomou a câmera. Desde O homem que comprou o mundo (1968), passando por Babilônia 2000 (1999) até Peões (2004), sobre aqueles primeiros companheiros de militância de Lula, chegando até o flamante Jogo de cena, deixa sempre uma marca na maneira de construir relatos.
Nos últimos anos, a figura de Coutinho foi se fazendo cada vez mais cifrado. De qualquer modo, poderia parecer que Jogo de cena (que ganhou vários prêmios em festivais internacionais) seja uma maneira de contrapor-se ao olhar político que assumiu em Peões. “Não me interessam mais os temas”, sentencia o homem-documentário do cinema brasileiro.
Jogo de Cena é, então, uma resposta a Peões?
Não consigo comparar Jogo... com Peões. É uma espécie de processo, que acaba de completar dez anos. Ambos trabalham a palavra de pessoas que, quando falam para o público, têm um personagem. A palavra é essencial, por isso não se vê nunca o exterior, depende muito do conhecimento da língua. É uma combinação: são células ficcionais, as pessoas que falam de sua memória ou de sua vida são moléculas de ficção. Me perguntei por que não tentar fazer um jogo entre as pessoas que falam de sua vida, quer falem do instrumento da ficção ou do esquecimento, e combiná-las com pessoas profissionais que são próprias para sentir as paixões dos outros. De todos os documentários que fiz, Peões foi o que me provocou mais dificuldades. Em Peões não podia fugir de um fato político, porque havia a campanha presidencial de Lula. Mas procurei o que era o mais distante possível da cúpula política. Mas não voltarei a ouvir ninguém: não farei a história da China nem a luta de classes. Tenho um profundo ódio pelas idéias gerais.
Em que momento fechou a idéia de Jogo...?
Creio que estava no inconsciente há muitos anos. Foi expressa em 2005, quando meu produtor, João Moreira Salles, me perguntou como prosseguiria, e lhe disse: “Quero fazer algo com pessoas reais e atores”. O tempo passou, ele aceitou e começamos pelo documentário. Colocamos um aviso no jornal, vieram algumas pessoas, fizemos uma pré-edição, vimos as histórias reais, concordamos em que era interessante que isso fosse interpretado por atrizes e se fizesse um filme com os dois: seria muito mais suportável o drama das mulheres. Havia uma discussão sobre que atriz chamar e convocamos atrizes muito conhecidas, e outras menos.
Por que chamaram atrizes conhecidas?
A hipótese inicial era chamar apenas atrizes desconhecidas. Mas alguém me disse: “Se o fizerem apenas com atrizes desconhecidas isso quer dizer que o documentário é melhor que a ficção”. Então pensei que teria que ter atrizes que pudessem fazer uma reflexão sobre isso. Não era fazer Hamlet, mas uma pessoa real.
Por que são todas mulheres?
Porque eu não sou mulher. E me interessa o que é do outro. Me interessam porque não sei o que é parir. Além disso, na minha experiência de fazer filmes com pessoas comuns que falam de sua vida, as mulheres são melhores que os homens. A mulher pode contar coisas que os homens não contam. Ainda que as coisas tenham mudado, o homem não confessa que foi enganado por sua mulher. A mulher é melhor como personagem e melhor como público.
Como consegue escutar?
Poderia fazer um tratado de filosofia sobre isso, vem da experiência. O ideal é que alguém consiga ser homem, mulher e criança ao mesmo tempo do ponto de vista psicológico. A capacidade de ter uma certa agressividade do homem... mas o grande ouvinte é o menino de 8 anos que diz por quê? Por quê? É o grande perguntador porque não tem nada garantido, e o por quê? não termina, porque nada está garantido no mundo. Esse tipo de cena onde o menino faz todas as perguntas, não sei... é biológico. Não conheço ninguém que tenha conservado isso até os 20 anos. E em caso positivo, fica internado num asilo de loucos.
De algumas histórias, não se sabe qual é a original...
Talvez haja mais, talvez são três e a verdadeira talvez na está no filme. Não poderia dizer qual é a verdadeira. Eu não pensava tanto: os críticos dizem que alguém não é o dono de sua história, uma história se torna de única em coletiva, e por isso uma atriz pode contar melhor a história de uma mãe que perdeu seu filho do que a mãe que realmente o perdeu. A linguagem é mais que o autor, mas o autor existe. Pode contar melhor o falso ou o verdadeiro, isso é uma coisa que apareceu enquanto fazíamos o filme.
Continua refletindo sobre a relação entre verdade e ficção.
Não parece ter muita importância. Fiz um filme de crise absoluta. Filmei um texto de uma obra de teatro, com um grupo de teatro, durante o processo de criação de uma obra que não será estreada, que não sei que fragmentos serão representados. Não sei o que fazer agora... Quero filmar uma história num elevador, num lugar muito pequeno. O problema é que são filmes muito baratos para se fazer, mas a edição é muito cara, posso ficar seis meses editando.
Além de filmar, parece propor uma epistemologia do cinema, um modo de fazer.
Faz tempo que penso na teoria do cinema para mim e não para os outros. Há uma teoria – quando a penso é igual a sentir –, uma teoria do cinema, do meu cinema, nos filmes que faço.
Há um pensamento por trás.
O problema é que se faz filmes sem pensamento.
A teoria vem depois dos fatos.
A teoria vem durante os fatos. Não quero que os críticos digam que é bom ou ruim. Faz-se coisas que estão aquém e além de seu pensamento. Há um antes e um depois, e uma crítica é capaz de dizer uma coisa que eu não pensei quando a fazia.
De que tipo de cinema não gosta?
O que não me interessa mais como produtor são os “temas”. O que me interessa é como algo é realizado. Não me interessa Michael Moore: há outros que me interessam, os que fazem um filme durante trinta anos, ou todos de costas para as câmeras. Gosto de outra coisa, um filme de John Ford ou de Bergmann não tem nada a ver com isso. Me pode interessar um cinema difícil ou o cinema clássico. Como espectador, estou aberto.
A projeção de Jogo... na abertura do Bafici será uma portinha para estrear seu filme em cinemas comerciais?
Fiz 16 filmes e nunca foram vendidos a nenhum país. Cabra marcado para morrer (1985) foi vendido à TV e ao cinema, e depois em vídeo e faz 15 anos que ninguém o vê, não é vendido. Mas estou contente por fazer a abertura do Festival, não esperava.
Não tem saído muito nos últimos anos, a que se deve isso?
É uma mistura de “o avião que cai”, “o cigarro que não se pode fumar nele” e um pouco por meu estado de saúde. Além disso, normalmente penso “vou a um festival para fazer o quê?”. Mas faço um trabalho e tenho que falar sobre o que faço, o que não é teoria, e para isso estou disposto.
O jogo de espelhos e de caixas chinesas proposto por Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, é um exercício próprio de quem parece ter feito tudo no cinema, mais ainda no mundo documental. É que Coutinho, além de fazer um filme, filma uma espécie de epistemologia do cinema. A extensa obra de Coutinho (16 filmes) serviu como ponto de inflexão cada vez que tomou a câmera. Desde O homem que comprou o mundo (1968), passando por Babilônia 2000 (1999) até Peões (2004), sobre aqueles primeiros companheiros de militância de Lula, chegando até o flamante Jogo de cena, deixa sempre uma marca na maneira de construir relatos.
Nos últimos anos, a figura de Coutinho foi se fazendo cada vez mais cifrado. De qualquer modo, poderia parecer que Jogo de cena (que ganhou vários prêmios em festivais internacionais) seja uma maneira de contrapor-se ao olhar político que assumiu em Peões. “Não me interessam mais os temas”, sentencia o homem-documentário do cinema brasileiro.
Jogo de Cena é, então, uma resposta a Peões?
Não consigo comparar Jogo... com Peões. É uma espécie de processo, que acaba de completar dez anos. Ambos trabalham a palavra de pessoas que, quando falam para o público, têm um personagem. A palavra é essencial, por isso não se vê nunca o exterior, depende muito do conhecimento da língua. É uma combinação: são células ficcionais, as pessoas que falam de sua memória ou de sua vida são moléculas de ficção. Me perguntei por que não tentar fazer um jogo entre as pessoas que falam de sua vida, quer falem do instrumento da ficção ou do esquecimento, e combiná-las com pessoas profissionais que são próprias para sentir as paixões dos outros. De todos os documentários que fiz, Peões foi o que me provocou mais dificuldades. Em Peões não podia fugir de um fato político, porque havia a campanha presidencial de Lula. Mas procurei o que era o mais distante possível da cúpula política. Mas não voltarei a ouvir ninguém: não farei a história da China nem a luta de classes. Tenho um profundo ódio pelas idéias gerais.
Em que momento fechou a idéia de Jogo...?
Creio que estava no inconsciente há muitos anos. Foi expressa em 2005, quando meu produtor, João Moreira Salles, me perguntou como prosseguiria, e lhe disse: “Quero fazer algo com pessoas reais e atores”. O tempo passou, ele aceitou e começamos pelo documentário. Colocamos um aviso no jornal, vieram algumas pessoas, fizemos uma pré-edição, vimos as histórias reais, concordamos em que era interessante que isso fosse interpretado por atrizes e se fizesse um filme com os dois: seria muito mais suportável o drama das mulheres. Havia uma discussão sobre que atriz chamar e convocamos atrizes muito conhecidas, e outras menos.
Por que chamaram atrizes conhecidas?
A hipótese inicial era chamar apenas atrizes desconhecidas. Mas alguém me disse: “Se o fizerem apenas com atrizes desconhecidas isso quer dizer que o documentário é melhor que a ficção”. Então pensei que teria que ter atrizes que pudessem fazer uma reflexão sobre isso. Não era fazer Hamlet, mas uma pessoa real.
Por que são todas mulheres?
Porque eu não sou mulher. E me interessa o que é do outro. Me interessam porque não sei o que é parir. Além disso, na minha experiência de fazer filmes com pessoas comuns que falam de sua vida, as mulheres são melhores que os homens. A mulher pode contar coisas que os homens não contam. Ainda que as coisas tenham mudado, o homem não confessa que foi enganado por sua mulher. A mulher é melhor como personagem e melhor como público.
Como consegue escutar?
Poderia fazer um tratado de filosofia sobre isso, vem da experiência. O ideal é que alguém consiga ser homem, mulher e criança ao mesmo tempo do ponto de vista psicológico. A capacidade de ter uma certa agressividade do homem... mas o grande ouvinte é o menino de 8 anos que diz por quê? Por quê? É o grande perguntador porque não tem nada garantido, e o por quê? não termina, porque nada está garantido no mundo. Esse tipo de cena onde o menino faz todas as perguntas, não sei... é biológico. Não conheço ninguém que tenha conservado isso até os 20 anos. E em caso positivo, fica internado num asilo de loucos.
De algumas histórias, não se sabe qual é a original...
Talvez haja mais, talvez são três e a verdadeira talvez na está no filme. Não poderia dizer qual é a verdadeira. Eu não pensava tanto: os críticos dizem que alguém não é o dono de sua história, uma história se torna de única em coletiva, e por isso uma atriz pode contar melhor a história de uma mãe que perdeu seu filho do que a mãe que realmente o perdeu. A linguagem é mais que o autor, mas o autor existe. Pode contar melhor o falso ou o verdadeiro, isso é uma coisa que apareceu enquanto fazíamos o filme.
Continua refletindo sobre a relação entre verdade e ficção.
Não parece ter muita importância. Fiz um filme de crise absoluta. Filmei um texto de uma obra de teatro, com um grupo de teatro, durante o processo de criação de uma obra que não será estreada, que não sei que fragmentos serão representados. Não sei o que fazer agora... Quero filmar uma história num elevador, num lugar muito pequeno. O problema é que são filmes muito baratos para se fazer, mas a edição é muito cara, posso ficar seis meses editando.
Além de filmar, parece propor uma epistemologia do cinema, um modo de fazer.
Faz tempo que penso na teoria do cinema para mim e não para os outros. Há uma teoria – quando a penso é igual a sentir –, uma teoria do cinema, do meu cinema, nos filmes que faço.
Há um pensamento por trás.
O problema é que se faz filmes sem pensamento.
A teoria vem depois dos fatos.
A teoria vem durante os fatos. Não quero que os críticos digam que é bom ou ruim. Faz-se coisas que estão aquém e além de seu pensamento. Há um antes e um depois, e uma crítica é capaz de dizer uma coisa que eu não pensei quando a fazia.
De que tipo de cinema não gosta?
O que não me interessa mais como produtor são os “temas”. O que me interessa é como algo é realizado. Não me interessa Michael Moore: há outros que me interessam, os que fazem um filme durante trinta anos, ou todos de costas para as câmeras. Gosto de outra coisa, um filme de John Ford ou de Bergmann não tem nada a ver com isso. Me pode interessar um cinema difícil ou o cinema clássico. Como espectador, estou aberto.
A projeção de Jogo... na abertura do Bafici será uma portinha para estrear seu filme em cinemas comerciais?
Fiz 16 filmes e nunca foram vendidos a nenhum país. Cabra marcado para morrer (1985) foi vendido à TV e ao cinema, e depois em vídeo e faz 15 anos que ninguém o vê, não é vendido. Mas estou contente por fazer a abertura do Festival, não esperava.
Não tem saído muito nos últimos anos, a que se deve isso?
É uma mistura de “o avião que cai”, “o cigarro que não se pode fumar nele” e um pouco por meu estado de saúde. Além disso, normalmente penso “vou a um festival para fazer o quê?”. Mas faço um trabalho e tenho que falar sobre o que faço, o que não é teoria, e para isso estou disposto.