quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Amazônia, uma história de destruição



No último sábado (14), a Pública lançou seu primeiro livro-reportagem, Amazônia Pública, com um debate aberto naPraça Roosevelt, em São Paulo.
A reportagem foi publicada pela Agência Pública, 17-12-2013.
Debaixo da lona montada especialmente para levar a Amazônia à praça pública, em São Paulo, especialistas em Amazônia nas áreas de energia, ambiente, comunicação, além de representantes de movimentos e ONGs que atuam na região debateram os dilemas que vive a região – entre a necessidade de preservação, essencial também para a qualidade de vida da população da região, e a pressão pelo desenvolvimento. Um público de cerca de 100 pessoas compareceu ao debate – e todo mundo que passou por lá recebeu um exemplar do livro Amazônia Pública. O livro reúne três séries de reportagens sobre os impactos de grandes empreendimentos na Floresta Nacional de Carajás e no rio Tapajós, no Pará, e no rio Madeira, em Rondônia. Toda a apuração foi feita em campo por seis repórteres.


Antes do debate foram exibidos três vídeos, realizados pelas equipes de reportagem. Depoimentos de pessoas que nasceram ou atuam na Amazônia – como o escritor Milton Hatoum e o cineasta Aurélio Michelis – ambos de Manaus, que falaram sobre sua relação com a cidade e a floresta e expuseram suas expectativas para a região.
Questão energética
O debate começou com a pergunta que se faz desde que os brasileiros tomaram conhecimento da construção da hidrelétrica de Belo Monte – que obteve grande repercussão pelos protestos de ribeirinhos e indígenas do Xingu: Afinal, vale a pena construir hidr elétricas na Amazônia? Quem se beneficia dessa energia não apenas do Xingu, mas do rio Madeira (com as hidrelétricas Jirau e Santo Antônio) e as planejadas no projeto de hidrelétricas do Tapajós, o lindo rio azul de ribeirinhos e mundurukus no Oeste do Pará.
O professor Célio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE/USP), foi taxativo: “É mentira a necessidade de energia elétrica para o desenvolvimento”, disse, acrescentando que não é a pressão pelo consumo das novas classes médias que está pressionando a demanda. Segundo o professor, 30% da energia gerada no país é consumida inteiramente por seis setores da indústria: a siderurgia, a indústria de metais não ferrosos, de ferro-ligas, petroquímica, papel e celulose e cimento. “Nós estamos vivendo no país uma autocracia energética”, disse, referindo-se à prioridade dada a produção de energia em detrimento da preservação de recursos naturais.
Bermann, que há 20 anos trabalha com questões energéticas na Amazônia, apontou alternativas trazidas em um estudo do IEE/USP, que mostra a possibilidade de suprir a demanda da população brasileira por 10 anos com a construção de 66 usinas eólicas de 30 megawatts de potência, bem mais limpa e menos impactante, do ponto de vista do território, do que as hidrelétricas. Além disso, explicou o professor, essas usinas poderiam se localizar próximas às cidades para evitar a per da de potência no transporte da energia por linhas de transmissão.
“[A usina hidrelétrica de] Belo Monte não está sendo construída para gerar energia elétrica. Está sendo construída porque em cinco anos as empresas que hoje dominam o governo vão embolsar R$ 17 bilhões”, disse, referindo-se ao fato de as empreiteiras serem as grandes beneficiárias das obras e grandes doadoras eleitoras. O professor criticou ainda a ausência de consulta preliminar por parte do governo e das empresas à academia – para discutir a necessidade e a melhor maneira de realizar as obras – e às comunidades tradicionais e indígenas, que embora sejam as mais afetadas ainda não têm seu direito de veto assegurado nas discussões sobre estes megaempreendimentos. “As consequências sociais e ambientais são irreversíveis. Mitigação é um belo nome para dizer nada”, afirmou.
Marcelo Salazar, do Instituto Socioambiental (ISA) de Altamira, onde fica a usina de Belo Monte – para ele, “o maior símbolo de “inadimplência socioambiental” – relatou o que está acontecendo na região, onde vive desde 2007. “O que estou vivenciando em Altamira é um verdadeiro rolo compressor. A pressão social parece não ter força”, disse.
Salazar explicou que além dos impactos às comunidades próximas às obras da hidrelétrica, o empreendimento gera conflitos que reverberam por uma área bem maior do que a da usina, propriamente dita. Ele destacou o aumento de extração ilegal de madeira na região e, do lado urbano, o encarecimento do custo de vida e o alarmante crescimento da violência na cidade. “Uma em cada três pessoas tem um parente ou conhecido que foi assassinado”, revelou.
Salazar também criticou a postura do governo em relação às comunidades indígenas. “O governo não aplica recursos para a Funai e usa a Eletrobrás e a Eletronorte para fazer a política indigenista na região”, disse, referindo-se às compensações financeiras que as empresas devem pagar pelos impactos causados à população indígena e que deveriam ser mediadas pelo órgão encarregado de protegê-la.
Mineiração no sul do Pará
Danilo Chammas, advogado da Rede Justiça nos Trilhos, lembrou os impactos que mega empreendimentos causam a comunidades tradicionais e quilombolas. É o caso do projeto de Carajás, da mineradora Vale, no sudeste do Pará e oeste do Maranhão. Segundo ele, “uma pessoa morre por mês atropelada nos trilhos da Estrada de Ferro Carajás”. A ferrovia leva o minério de ferro extraído nas minas em Carajás ao porto de São Luís e daí à exportação, em grande parte direcionada para a China, e está sendo duplicada para escoar o aumento da produção de minério da floresta: a companhia pretende dobrar a extração quando o projeto – em implantação – estiver concluído. A obra tem financiamento do BNDES que liberou a primeira parcela do investimento mesmo quando a obra foi embargada na Justiça pelos movimentos sociais de direitos humanos, CIMI e Fundação Palmares.
De acordo com Chammas, Carajás é uma região em permanente conflito há pelo menos 30 anos – justamente por abrigar o maior empreendimento de minério de ferro do mundo. “Isso dentro de uma floresta nacional. O que é uma contradição”, falou.
“É realmente um negócio da China. O custo da tonelada [de minério de ferro] é de US$ 22 até o porto e dali, US$ 100, sem contar com o custo da transporte”, explicou, reafirmando que o minério de ferro extraído em Carajás é o mais barato do mundo. Chammas destacou que os problemas sociais permanecem sem solução na região, por falta de empenho da companhia Vale e do governo. Também lembrou a atuação agressiva da Vale, que chegou a infiltrar e espionar lideranças dos movimentos sociais que exigem responsabilidade social e ambiental por parte da companhia. “Somos os mais espionados”, disse Danilo.
Como a imprensa cobre a Amazônia?
A jornalista Elaize Farias, de Manaus, co-fundadora do portal Amazônia Real, falou sobre a cobertura da Amazônia pela mídia, não raro vista como “exótica” e deslocada do resto do país. “É preciso fazer a conexão da Amazônia com outras regiões. Estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro não sabem da relação da Amazônia com outras regiões. Não se sabe, por exemplo, que a madeira extraída ilegalmente vem para os pólos moveleiros de São Paulo e de Minas Gerais ”, destacou.
Nilo D’Ávila, do Greenpeace, que falou das políticas públicas em vigor para a Amazônia, também reforçou a importância de analisar os projetos e políticas para a região levando em conta não apenas o contexto nacional, mas continental da floresta, que se expande pelos territórios do Peru, Equador, Bolívia. O ativista também criticou o debate pouco transparente do Código da Mineiração, colocado para votação em regime de urgência, sem a participação da população, embora fundamental para decidir o futuro dos nossos recursos naturais do ponto de vista econômico, ambiental e social, especialmente por envolver projetos de mineração de em terras indígenas.
Entre pessimistas e otimistas, os debatedores vêem 2014 como um ano decisivo para a reação popular a megaempreendimentos na região. É o ano em que deve sair, por exemplo, a licença de operação para a usina deBelo Monte e a de instalação duas hidrelétricas do Tapajós. Para Marcelo Salazar, do ISA, “precisamos nos inspirar nesses movimentos de ruas e reinventar as formas de manifestação”. E, como observou o professor Célio Bermann, disseminar info rmação de qualidade para disseminar o debate.



Mentira e denocracia



Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 08-12-13.
Eis o artigo.

John Mearsheimer, especialista em questões bélicas e diplomáticas, publicou em 2011 o livro Por Que os Líderes Mentem - Toda a Verdade sobre as Mentiras na Política Internacional. Ele comenta as práticas do governo americano após os ataques ao World Trade Center. Para Mearsheimer, a Casa Branca mentiu ao alegar a existência das armas de destruição em massa no Iraque, ao dizer que Saddam Hussein colaborava com Osama bin Laden, ao proclamar que o ditador iraquiano estava implicado nos ataques às torres gêmeas, ao anunciar negociação pacifica quando a invasão do Iraque estava pronta. Mearsheimer não é jacobino ("liberal"), sua posição tem forma conservadora.
Após apresentar o que nomeia mentiras de George W. Bush, ele as justifica. Dada a anarquia imperante na vida internacional (conhecida desde Tucídides, Maquiavel, Hobbes e Hegel), todos os Estados estão sozinhos se precisam defender a hegemonia. Sem aliado seguro não há quem obrigue uma potência a seguir a ordem kantiana de jamais mentir.
Afirma o autor que a mentira "é ação positiva, articulada para enganar a plateia alvo". A definição copia a de Santo Agostinho: mentir é "dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar" (De Mendacio). A mentira, comenta uma analista, "é boa se ajuda a superar situações sociais ou políticas"(Diana Margarit). Da "nobre mentira" platônica (A República, 414b-c) aos nossos dias, o tema integra a razão de Estado. Frederico II, diz Hegel na Filosofia do Direito, perguntou em 1778 se "é permitido enganar um povo". Mas Hegel tem uma resposta maquiavélica: a plebe "engana a si mesma". O governante, se for eminente, conhece o verdadeiro e o falso, tem o direito de usá-los para garantir o Estado contra os ignaros.
Tempos atrás surgiu nos Estados Unidos o romance, escrito por um anônimo, intitulado Primary Colors (que resultou no filme Segredos do Poder). A trama é narrada pelo integrante de uma campanha presidencial. O candidato, tudo indica, seria Bill Clinton. O autor diz em prefácio que sua ob ra é pura fantasia. Mas os detalhes do enredo são confirmados pelas notícias. Após algum tempo surgiu o nome do autor, trata-se de Joe Klein, experiente jornalista político, profundo conhecedor dos bastidores partidários.
A campanha presidencial narrada segue receita antiga para ganhar eleições: mover os semeadores de boatos contra os adversários (os spin doctors), usar truques e fraudes virulentas.
O mais importante reside na ambígua ética do candidato (Jack Stanton), que se imagina um mocinho, mas usa os meios dos bandidos para vencer. Na batalha pelas urnas, os "perversos" inimigos fabricam um elo extraconjugal do político. Detalhe: o fato é verdadeiro, mas para convencer os eleitores seria preciso "aprimorar a prova". Daí, eles unem trechos de várias conversas gravadas, as quais, por si mesmas, nada diziam sobre as alcovas do político. Para refutar o truque os marqueteiros de Stanton colam falas de uma entrevista televisionada e a passam ao público. Mostram, assim, que houve fraude na montagem, mas eludem o trato entre candidato e amante. Relações homoafetivas do adversário são expostas sem clemência. Vale tudo no belicismo eleitoral.
Quando um membro da sua campanha quer deixá-lo, "Clinton/Stanton" arrazoa: "Dois terços do que fazemos é repreensível. Sorrimos, escutamos - podem crescer calos em nossas orelhas de tanto ouvir. Fazemos nossos patéticos pequenos favores. Falamos para eles o que desejam ouvir e quando lhes falamos algo que não querem ouvir, usualmente é porque calculamos exatamente o que desejam escutar. Temos uma eternidade de sorrisos falsos. É o preço pago por nós para liderar. Você não acha que Abraham Lincoln foi uma prostituta antes de ser presidente? Você entende, como eu, que há muita gente no jogo que nunca pensa nas pessoas mas só quer vencer?".
Comenta um filósofo: "Primary Colors analisa as rotas onde a democracia e seus ideais são erodidos e forçados por uma elite política e pela cultura midiática, em campanhas imersas na sujeira e na contra-sujeira, na corrupção e na tentação de dizer ao eleitorado o que ele deseja ouvir" (Jon Hesk, em Deception and Democracy in Classical Athens).
Voltemos ao maquiavélico Hegel (a massa engana a si mesma). É suspeito o prazer suscitado quando as carnes podres de um ou outro partido são expostas em boatos dos spin doctors e marqueteiros. O escândalo dura pouco tempo, sendo trocado pelo seguinte, e assim por diante. A vítima real das denúncias encontra-se na instituição política, corroída e impotente. Sem a fé pública, ela não mais oferece a segurança basilar da existência cidadã. Eleições, em casos assim, marcam a morte da vida democrática, não seu vigor.
Vivemos a guerra eleitoral de 2014. No mundo e no Brasil domina a propaganda mendaz (cf. Dennis W. Johnson, No Place for Amateurs: How Political Consultants Are Reshaping American Democracy). Se, como diz Mearsheimer, mentiras podem ser aceitas em plano internacional, na vida interna dos povos elas dissolvem a sociedade. Quando os poderes mentem para as plateias, difamam adversários e batem contritos no peito, o regime democrático fenece.
Spin doctors, na imprensa e na internet, espalham calúnias e medos. Eles vampirizam os sonhos da plebe. Tudo está programado para destruir os inimigos, no governo e nos recantos oposicionistas, e para rebaixar a cidadania. Lucram os oligarcas que pescam em águas turvas, mas quem lhes serve de instrumento vai para a cadeia.
Quando lembramos a tese de George Orwell, pervertida com sarcasmo em Primary Colors - "Se a liberdade tem algum sentido, ela significa o direito de dizer ao povo o que ele não quer ouvir" -, temos a consciência de que já ultrapassamos os limites da escravidão, apelido que damos a uma suposta e melancólica democracia.