quarta-feira, 1 de julho de 2009

Festa, revolução e contracultura



O Maio de 68 é uma manifestação da crise de civilização', diz Edgar Morin

“Ali onde reinava um bem-estar, também havia uma insatisfação profunda”, afirma Edgar Morin, filósofo francês, que analisa as mudanças nas últimas quatro décadas.

Morin também analisa a visão da esquerda em relação aos acontecimentos de Maio de 68 na França. “Do ponto de vista político, produziu-se um fenômeno muito interessante; apesar de que os grupinhos presentes eram marxistas, houve uma diminuição da influência do partido comunista sobre a população e especialmente sobre os jovens. Os comunistas nunca estiveram presentes no movimento de 68 e inclusive o condenaram”.

Por isso, diz Morin, “em nenhum momento pensei que os trotskistas nem os maoístas pudessem tomar as rédeas desse processo; pelo contrário, considerava-os retrógrados”. Ele acredita que a esquerda tradicional da época não entendeu o que se passava.

Segue a íntegra da entrevista que Morin concedeu ao jornalista espanhol J. M. Martí Font e que está publicada no El País, 19-04-2008. A tradução é do Cepat.

Em maio de 1968, Edgar Morin (Paris, 1921) se havia comprometido a substituir um professor e dar algumas aulas na Universidade de Nanterre, então um lugar inóspito da periferia parisiense, em meio a uma paisagem industrial e vizinha a um povoado de barracos. Não podia imaginar que, quando chegou, já havia saltado a faísca. “Quando cheguei havia um caos absoluto; os carros da polícia soavam suas sirenes e um jovem ruivo gesticulava sobre as tarimbas: era Daniel Cohn-Bendit”, explica.

Morin se dispôs a dar sua aula. “Era um anfiteatro que não tinha janelas”, lembra, “e alguns estudantes se aproximaram de mim gritando: ‘Greve, greve!’. Disse-lhe que se queriam fazer greve teriam que submeter o assunto a uma votação. Houve votação e a maioria optou pela aula, assim que comecei. Então, alguns alunos se puseram a gritar: ‘Morin, flic (polícia)!’, cortaram a energia, o microfone e a luz. E não pude dar aula”.

Você não esperava por isso? O que estava acontecendo?

Creio que foi em fevereiro ou em março daquele ano quando dei uma conferência na Itália, em Milão, sobre a internacionalidade das revoltas estudantis, porque o Maio de 468 francês não foi a primeira, pelo contrário, foi a culminação. A questão era a seguinte: como é que em toda uma série de países com sistemas sociais e regimes políticos completamente diferentes estavam se produzindo revoltas de estudantes ao mesmo tempo? Elas aconteciam no mundo ocidental, mas também no Egito, na Polônia, na Checoeslováquia... Evidentemente, o denominador comum era uma revolta contra a autoridade que tinha características diferentes. No leste europeu era contra a ditadura do partido; nos países ocidentais era, ao mesmo tempo contra a ditadura da família, isto é, a autoridade paternal, dos professores da Universidade e do Estado.

E a repressão sexual?

Pode-se dizer que foi um elemento desencadeante de Maio de 68, já que em Nanterre a faísca partiu da proibição de que os rapazes entrassem nos dormitórios das moças. Mas deve-se dizer que não houve reivindicações sexuais. As grandes reivindicações relacionadas ao sexo, o movimento de libertação da mulher ou o movimento de autonomia dos homossexuais, apareceram depois de Maio de 68, como conseqüência. O Maio de 68 francês tem sua origem no movimento de 20 de março em Nanterre, que era um movimento de raízes libertárias. É preciso colocá-lo em relação com o que acontecia na Califórnia desde alguns anos antes, onde a juventude do país mais rico do mundo, os filhos de famílias extremamente prósperas abandonavam a casa paterna para levar uma vida comunitária, mas com uma aspiração ao mesmo tempo para o comunitário e a liberdade. Enfim, duas aspirações que parecem antagônicas, mas que eram vividas conjuntamente.

Naqueles anos eu já havia estudado os fenômenos relacionados com a adolescência, e descoberto que os jovens, através do rock, através de uma série de coisas, manifestavam uma vontade de autonomia na sociedade através de uma cultura própria. Com esta revolta, a adolescência, que se encontra entre a borbulha da infância e a integração, via-se a domesticação no mundo adulto, expressavam uma aspiração profunda em evidente contradição com o processo de integração na sociedade que lhes era proposta, que consistia na especialização, no ofício, no cronômetro, etc.

Como se viveu esta dialética entre o libertário e o comunitarista?

Há uma aspiração que de fato perpassa toda a história humana, que se expressou na idéia tanto libertária como comunista ou socialista. As primeiras semanas de Maio de 68 são de caráter verdadeiramente espontâneo, porque a ocupação de Censier, de Nanterre e finalmente a Sorbonne, foi uma explosão ao mesmo tempo estudiosa e exaltada, que tinha um componente muito, muito poético. Mas é preciso dizer que progressivamente os pequenos grupos políticos trotskistas, maoístas e outros, não somente quiseram se apropriar do movimento, mas que o parasitaram.

Numa entrevista de 1976, na Magazine Littéraire, você utiliza a expressão: “Os insetos necrófagos devoraram o cadáver”.

Sim, de fato, diziam aos estudantes: seremos nós que realizaremos as aspirações de vocês por meio da revolução proletária. Parasitavam e pensavam responder a estas aspirações por meio do comunismo. Na minha opinião, o Maio de 68 na França teve duas fases: um primeiro momento de espontaneidade, um impulso, que toda a população parisiense viu com simpatia. É preciso dizer também que a total inibição do poder do Estado liberou muita gente de suas doenças psicossomáticas, de suas neuroses. Os consultórios dos psicanalistas e dos psiquiatras se esvaziaram. Mas logo, quando começou a faltar gasolina e se apresentaram os problemas de abastecimento, apareceu a angústia entre a população e rapidamente as pessoas deram as costas ao movimento estudantil.







Que efeitos imediatos teve o Maio de 68?

Depois de Maio, os grupinhos, especialmente os maoístas, acreditaram que se tratava do ensaio geral da revolução. O movimento teve vários efeitos imediatos; por um lado, um relançamento do marxismo como a explicação geral de tudo; por outro, um certo movimento de pessoas jovens que partia para o campo para mudar radicalmente de vida. Mas este segundo movimento se dissolveu rapidamente porque em 1973 estalou uma crise econômica. Até aquele momento os jovens podiam trocar a cidade pelo campo e sabiam que, se voltassem, encontrariam novamente um trabalho. A partir de 1973, já não foi assim.

O outro aspecto, ao meu parecer, é que a civilização ocidental ou burguesa estava muito segura de si mesma até 1968. A tese sociológico-histórica era que a sociedade industrial desenvolvida diminuiria ao máximo as desigualdades, resolveria o problema da pobreza e conseqüentemente generalizaria a boa vida. Era a menos má ou a melhor sociedade possível. Evidentemente, no Leste Europeu se dizia que era o sistema comunista que iria criar um futuro mais radiante.

Havia duas visões radiantes do mundo, ainda que no que concerne ao Leste muito pouca gente acreditava nisso. Mas no Ocidente também começou a ser evidente que ali onde reinava o bem-estar, também havia uma insatisfação profunda. Eu tinha comprovado isso na Califórnia. Me marcou muito o filme No down payment (A mulher do próximo, 1957), de Martin Ritt, que mostrava a profunda infelicidade produzida pela prosperidade econômica.

Maio de 68 marca o fim do sonho da felicidade?

Sim. O mundo maravilhoso das estrelas de Hollywood, que deviam ser felizes, também não era real, como pudemos ver depois do suicídio de Marilyn Monroe e outros. A mitologia da felicidade desta sociedade se dissipava. Fiz uma pesquisa sobre a evolução da imprensa feminina depois do 68 e descobri que as mesmas revistas que até então diziam às mulheres que sendo belas e cozinhando bem podiam ser felizes e conservar os seus maridinhos, mudaram a mensagem para lembrar-lhes que envelheciam, que seus filhos saíam de casa e seus maridos as traíam. Minha tese é que os adolescentes, enquanto elo mais fraca da sociedade ainda não integrada, sentem de forma mais intensa as tragédias e as carências da sociedade. O Maio de 68 foi uma revolta que ia além do simples protesto. Malraux a chamou, acertadamente, crise de civilização.

Há um antes e um depois do 68?

Creio que depois de 68 o prestígio do modelo da sociedade industrial desenvolvida diminui, e mais ainda quando, pela primeira vez, aparece uma crise que põe em dúvida sua viabilidade, a crise do petróleo de 1973, que supõe que o desemprego se instale de forma permanente em nossas sociedades. Para não falar das poluições de todo tipo, do estresse das grandes cidades, da pressão da produtividade, da cronometrização e da deteriorização das condições de trabalho.



E as mudanças nos costumes e na moral social?

O que mudou nos costumes? As relações no interior das famílias. Houve uma evolução, através do movimento feminista, que estava na vanguarda. Não é por acaso que, pouco depois, inclusive sob um Governo de direita, Simone Veil conseguisse levar adiante a lei sobre a interrupção da gravidez, uma lei clássica da reivindicação feminista. Houve também a aceitação da diversidade, das diferentes minorias, sexuais, por exemplo. É certo que houve uma certa liberalização dos costumes e este é um dos aspectos mais interessantes de Maio de 68. Por esta razão o chamamos de brecha, como uma via de água na linha de flutuação do grande navio. Eu diria, além disso, que era o que assinalava a via das revoluções futuras, porque em nenhum momento pensei que os trotskistas nem os maoístas pudessem tomar as rédeas desse processo; pelo contrário, considerava-os retrógrados.

Que leitura política faz agora?

Do ponto de vista político, produziu-se um fenômeno muito interessante; apesar de que os grupinhos presentes eram marxistas, houve uma diminuição da influência do partido comunista sobre a população e especialmente sobre os jovens. Os comunistas nunca estiveram presentes no movimento de 68 e inclusive o condenaram. O próprio George Marchais [secretário-geral do PCF] condenou explicitamente Cohn-Bendit, de quem disse que era “um judeu alemão”. Condenaram o aspecto libertário e também, evidentemente, o fato de que se declararam trotskistas e maoístas. Foi o começo da queda da influência comunista.

Olhando de hoje, qual foi o impacto de Maio de 68?

O Maio de 68 deve ser relativizado até certo ponto, mas continua sendo um eletrochoque. Primeiramente, porque foi uma enorme surpresa, e, além disso, porque converteu a França no único país em que o movimento estudantil foi capaz de desencadear uma gigantesca greve operária. Certamente, houve um grande mal-entendido. Na realidade, o movimento estudantil estava se apropriando do papel revolucionário que se atribuía à classe operária, mas foi a classe operária que se aproveitou da situação para conseguir uma série de importantes aumentos de salário e direitos sindicais.

E depois a direita ganhou as eleições.

Voila. A saturação do Maio de 68, o medo...

O que resta do Maio de 68?

Para começar, o acontecimento foi totalmente esquecido, escondido, por várias gerações. É agora, com esta enorme comemoração midiática, que a história ressurge. Não sei o que a juventude pensa sobre o que aconteceu, mas há um fenômeno francês muito particular que os políticos não conseguem entender. A juventude passa de fases estudiosas, aparentemente despolitizadas, nas quais se diria que se ocupam exclusivamente de si mesmos, de seus estudos, ao despertar bruscamente com uma explosão, muitas vezes provocada por um projeto de reformas, de fato, de mini-reformas secundárias e estúpidas, que serve de detonador a uma revolta estudantil.

O que é interessante é que uma vez que a revolta está iniciada, ela proporciona um prazer maravilhoso aos seus protagonistas, porque lhes permite desafiar a autoridade e a polícia. Então, as autoridades lhes fazem caso, recebem-nos nos palácios, e quando o ministro cede e lhes diz: de acordo, vamos atender às reivindicações de vocês, então contestam: não, não. Queremos mais. E tomam a rua e desafiam o mundo adulto e ficam bêbados de felicidade.

Em seguida, a revolta se decompõe porque, por um lado, um certo número de elementos ativistas tenta controlar o movimento e brigam entre si, e o tempo passa e o movimento se desfaz. Mas o importante é que cada um destes episódios consegue que os jovens se politizem, entrem na polis, na sociedade política, no jogo da coisa pública. Um processo muito saudável para a sociedade francesa.

O presidente Nicolas Sarkozy quer acabar com a herança de Maio de 68, mas se apropria de teses como a que você enunciou sobre a política de civilização.

Não, na realidade só se apropriou do termo. Só disse que é preciso mudar da hegemonia do quantitativo para o qualitativo. Mas não abandonou a idéia de que é preciso manter o crescimento econômico acima de tudo, com o que se afasta muito da minha tese. Por outro lado, há uma crise desta idéia universalista em favor dos particularismos. Eu sou um dos últimos dinossauros, neste sentido.



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Você viu Woodstock?

Para o jornalista, escritor e político italiano Furio Colombo, terminada a política com o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a música de Woodstock "era o território amplo, vivo, bem presidido, o mais jovem do mundo, daquilo que restava de esperança".

O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 28-06-2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.





À pergunta que me é frequentemente dirigida: estiveste em Woodstock?, respondo não. Mas, se a pergunta é reformulada de outro modo (“viste Woodstock?”), respondo sim. E esclareço: naquele dia e lugar. Mas então – insistem os interlocutores que sabem de minha longa travessia da América de um lado ao outro e com muitos personagens e intérpretes da época por três décadas – estiveste ou não estiveste? Estive, e vi; mas de outro modo. E, do ponto em que me encontrava pareceu-me ser testemunha de um momento no qual algo muda para sempre. Vi as últimas horas da música dos jovens filhos rebeldes dos EUA. Vi acabar a música dos jovens e nascer o grande business. Vi o povo jovem que impelira aquela música no nascimento a transformar-se – num mágico instante – de povo a público, de protagonista a consumidor, de proprietário a usuário da nova música. Naquele momento, terminada a política com o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a música era o território amplo, vivo, bem presidido, o mais jovem do mundo, daquilo que restava de esperança.



Woodstock é o dia – e a noite e o dia, e o sol e o lodo e a chuva, e os jovens corpos envencilhados e sem defesa – nos quais tudo termina. Acabou a tal ponto que naquelas horas começou a perecer a música. E por décadas (podemos dizer até Obama?) se apagou a política, transferida, entrementes, nas enquetes jornalísticas e nos tribunais de Watergate. Eis o meu testemunho: vi Woodstock de um helicóptero, quando me levaram à festa recém estourada com um repique de guitarras na vasta pradaria povoada por uma multidão que ninguém esperava, um imenso permanecer no nada de garotos e garotas jovens e nus, precipitados em dezenas de milhares, depois em centenas de milhares dentro de seu sonho obstinado no qual música, vida e política (e portanto paz no Vietnã, paz por toda parte) eram a mesma coisa. Quando Joan Baez decidiu estar ali, não era mais possível chegar de auto ao fundo do palco. Não era possível atravessar a pé a multidão dos jovens zumbi, imersa no doce frenesi – mas também impossível interromper – do sonho-alucinação. Ver do helicóptero que saudavam como náufragos aquele vôo (aqueles vôos) que carregavam as suas vozes, os seus amigos, quase sempre coetâneos, com quem – até aquele instante – haviam convivido, era o sinal da grande transformação.



Estava de fato mudando para sempre aquela vida jovem, das margens do Alabama ao enfileirar-se diante dos soldados com baioneta calada, no ano anterior, agosto de 1968, nos meses dias de agosto, nas ruas de Chicago, enquanto a Convenção Democrática, protegida pelo fio calado e pelas tropas, escolhia a guerra e perdia os seus jovens. Eram tantos em Chicago a guiar o grande canto de protesto que nenhuma baioneta tivera a força de extinguir. Aquela multidão de corpos era a própria Woodstock? Jamais o saberemos. Mas, o ir e vir dos helicópteros no céu, que talvez a alguém terá recordado as imagens do Vietnã, assinalaram a separação. Aqui os star, ali o público. Aqui as grandes casas que produzirão os discos com esplêndidas capas; ali os jovens que acreditavam estarem todos juntos, serem todos artistas, todos star, porque igualmente belos e jovens. Mas foram separados e declarados para sempre “consumidores”.



Do palco – que era inacessível e, por força, muito alto acima da multidão, e depois, após o furacão, quando a partida se tornou possível – eu os vi no lodo. Permaneciam exaustos e abraçados, após uma longa marcha cheia de sonhos (ilusões?), de esperas insensatas, de canções que durarão trinta anos, tão belas eram (são) e plenas de um estranho fervor e uma sonoridade que permanece para sempre. Mas, estavam lá, como uma ilustração de Gustave Doré para uma Divina Comédia, porém em cores. A cor dos seus corpos, dos seus jeans, dos seus cabelos, das camisas perdidas longe nas poças, era tudo o que restava daquela década inesquecível de vida, de morte, de espera do grande Messias coletivo que é a vida dos jovens. Por um instante haviam possuído a História. Haviam freado o mundo de negócios e de armas. Todos, por um instante – também em guerra – tiveram que escuta sua música. Depois, basta. O helicóptero, a casa discográfica, a grande distribuição, os registros, os criativos, os “packaging people”, vão se embora nas nuvens.





Fonte: http://unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=13828

Atlas revela perfil agrário do país




A política agrária brasileira nas últimas décadas não alterou a elevada concentração de terras e o modelo agrícola voltado para culturas de exportação, nem melhorou o volume de oportunidades de trabalho no campo, além de ter contribuído para a devastação da floresta amazônica. A conclusão é do geógrafo Eduardo Girardi, autor de um abrangente e detalhado atlas sobre o setor agrário brasileiro, resultado de sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Ciências e Tecnologia, câmpus de Presidente Prudente (FCT).

A reportagem é do Jornal Unesp e reproduzida pela Agência Envolverde, 30-06-2009.

Sustentado por cerca de 300 mapas, o estudo de Girardi aborda a pobreza, o desmatamento, a distribuição da posse fundiária, o agronegócio, os conflitos agrários e a política de assentamentos dos últimos anos. “Através do mapeamento, foi possível identificar a configuração da estrutura agrária e como ela pouco contribui para o desenvolvimento social no campo”, afirma.

A pesquisa constata que os imóveis rurais ocupam quase a metade do território brasileiro. De 1992 a 2003, devido à incorporação de terras públicas a programas de reforma agrária, a área que eles englobam cresceu 35%, passando de 310 milhões para 410 milhões de hectares. O número de propriedades no campo aumentou 47%, de 2,9 milhões para 4,2 milhões.

Concentração

No entanto, essas transformações não reduziram a concentração da posse da terra. Girardi ressalta que tal fenômeno pode ser medido pelo índice de Gini, em que 1,0 é valor máximo da concentração: em 1992, ele era de 0,826, e, em 2003, passou para 0,816.

A situação se evidencia também nas diferenças entre as áreas destinadas às pequenas, médias e grandes propriedades. Em 2003, os pequenos imóveis, com tamanho médio abaixo de 200 hectares, representavam 92% do total de propriedades, mas ocupavam apenas 28% da área agrária. As propriedades de médio porte, de 200 a 2 mil hectares, respondiam por 6% do total de imóveis e 36% da área. Já aquelas acima de 2 mil hectares, embora não chegassem a 1% do total, ocupavam 35% da área do setor.

“Das novas terras incorporadas na estrutura fundiária brasileira, de 1992 a 2003, o porcentual das pequenas propriedades cresceu pouco, para 93% do total dos imóveis e para 34% da área; já as médias e grandes, somadas, atingiram 7% do total de imóveis e 66% da área”, comenta Girardi.

O geógrafo explica que, se a taxa de crescimento do número de imóveis for superior à taxa de crescimento de sua área, ocorre uma evolução desconcentradora das propriedades rurais; no caso contrário, há concentração. “A partir da interpretação dos dados, verificamos que a evolução no Sul foi desconcentradora, no Sudeste e Nordeste foi equilibrada, e no Norte e Centro-Oeste foi concentradora”, esclarece.

A partir das informações do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Girardi também assinala que, em 1998, cerca de 75,4 milhões de hectares de terras exploráveis não tinham nenhuma atividade produtiva - o correspondente a 23% da área agricultável do País. Das terras não exploradas, 45% se localizavam na Região Norte, 24% no Nordeste, 26% no Centro-Oeste, 2% no Sudeste e 1,9% no Sul.

Modelo agrário

O estudo mostra, ainda, que o atual modelo agrário não tem contribuído para criar empregos e fixar o homem no campo. Nos últimos dez anos, cerca de 1,5 milhão de pessoas deixaram as atividades agropecuárias. De acordo com o Censo Agropecuário 2006 do IBGE, 16 milhões de pessoas estavam então ocupadas nos estabelecimentos agropecuários. As pequenas propriedades rurais empregavam 87% do total de postos de trabalho no campo, enquanto as grandes ficavam com apenas 2,5%.

Comentando as conclusões do atlas, o economista José Gilberto de Souza, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV), câmpus de Jaboticabal, lembra que, em 2008, o setor sucroalcooleiro recebeu cerca de R$ 6,5 bilhões do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Porém, os dados revelam a redução do número de trabalhadores por hectare nessas áreas.

Girardi enfatiza que os investimentos confirmam um direcionamento da agricultura brasileira para o agronegócio. “A alta produtividade está concentrada no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, em contraste com a estagnação do Norte e Nordeste, onde grande parte dos imóveis não dispõe sequer de tratores”, observa. O geógrafo lembra que a concentração da estrutura fundiária no Brasil está inserida no modelo de desenvolvimento exportador.

Em 2006, dos US$ 46 bilhões do superávit total da balança comercial (que envolve a relação entre exportações e importações), US$ 42 bilhões foram obtidos pelo setor agropecuário. Cerca de 80% das exportações agropecuárias brasileiras são de apenas nove produtos (soja, carnes, cana-de-açúcar, café, couro, fumo, laranja, produtos florestais e algodão), que ocupam 74% de toda área plantada no País. “Enquanto isso, em 2004, cerca de 15 milhões de brasileiros com carência alimentar viviam no campo”, aponta Girardi.

Para Souza, o modelo agrário baseado na concentração fundiária precisa ser revertido. “A reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar devem estar inseridos em uma estratégia vinculada à produção alimentar”, acrescenta.



Ocupações e assentamentos

Como reação a esse modelo, Girardi assinala que trabalhadores rurais sem oportunidades ocupam áreas para ter uma opção de renda e vida. O Atlas mostra que, de 1988 a 2006, houve cerca de sete mil ocupações de terras no Brasil, com mais de um milhão de famílias envolvidas, que se concentraram no centro-sul, leste e nordeste do País. “Essas são as áreas onde a reforma agrária tem sentido, pois desconcentra as terras e otimiza a sua utilização”, argumenta Girardi.

Entre 1988 e 2006, os programas de reforma agrária criaram 7.666 assentamentos - áreas destinadas a pequenos agricultores -, em 64,5 milhões de hectares, beneficiando cerca de 900 mil famílias. Eles se concentraram, em sua maioria, na Região Norte, junto à fronteira agropecuária. Apenas na Amazônia Legal, foram assentadas 62% das famílias, sendo que nas Regiões Sul e Sudeste, apenas 28%. “As famílias foram assentadas na região amazônica, em grande parte em terras públicas, sem a infra-estrutura necessária de transporte, serviços de saúde, educação e assistência técnica”, aponta o pesquisador.

Outra análise do trabalho de Girardi ilumina a violência no campo. Nos últimos 20 anos, 1,1 mil trabalhadores rurais foram assassinados e cerca de 19 mil famílias foram retiradas de áreas ocupadas. “Por fazer parte da fronteira agropecuária, o leste do Pará e o norte do Maranhão foram as regiões com maior concentração dos conflitos, afirma.

Cooperativismo

O professor Roberto Rodrigues, da FCAV e ex-ministro do governo Lula, considera que a agricultura brasileira não deve se sustentar a partir de “obras de caridade”, em que se converteu, segundo ele, a política de assentamentos rurais. Rodrigues defende o modelo de cooperativas de agricultores com vocação e conhecimento para a cultura agrícola. “Neste modelo, ganham os agricultores, o governo e a população, que terá produtos de melhor qualidade”, avalia.

Rodrigues destaca que a terra representa apenas 15% do valor de um empreendimento agrário. “A agricultura precisa de crédito, conhecimento técnico e infra-estrutura de escoamento da produção”, afirma. Ele discorda do argumento de que não haveria apoio ao pequeno produtor. “O governo tem aumentado significativamente o crédito para a agricultura familiar, implantou o seguro gratuito de safra e a produção vinculada à distribuição de cestas básicas pelas prefeituras próximas”, enfatiza.

Banco de dados

O Atlas agrário servirá como um banco de dados para consulta pública e suporte para pesquisas acadêmicas. Uma versão impressa deverá ser publicada até o final do ano, mas o material pode ser acessado no site do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera).

Com apoio da Fapesp, Girardi utilizou dados de IBGE, Incra, Comissão Pastoral da Terra, Ministério do Trabalho e Emprego, INPE e FAO (Food and Agriculture Organization).

Para o orientador da tese, o professor Bernardo Mançano Fernandes, o Atlas é o mais completo sobre o tema produzido até hoje no Brasil. “É um marco do estado da arte do conhecimento de tudo que foi estudado no Nera que servirá de referência aos estudiosos de diversas áreas do conhecimento e na elaboração de políticas públicas”, aponta.

Política para setor estimulou desmatamento

Nos últimos 11 anos, cerca de 54 milhões de hectares da floresta amazônica foram desmatados, conforme dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial). No mesmo período, na região, a atividade agropecuária se expandiu sobre 23 milhões de hectares, dos quais 45% de pastagens.

Para Girardi, a política agrária das últimas décadas,favorável ao agronegócio e ao latifúndio, foi a responsávelpelo forte desmatamento ocorrido nos nove Estados da Amazônia Legal. “Apesar dos assentamentos instalados na região contribuírem com o desflorestamento, a maior parte dele foi feito por particulares”,diz.

A ocupação da Amazônia começou durante o regime militar, para não se realizar a reforma agrária nas Regiões Sul e Sudeste. “Essa estratégia não mudou com a redemocratização do País”, observa.

Para Girardi, a ocupação de novos espaços da Amazônia é desnecessária, pois as terras já desmatadas que não foram devidamente exploradas, em 2007, somavam 86,7 milhões de hectares na Amazônia Legal. “Isso sem considerar a necessária mudança do sistema técnico-produtivo da agropecuária, que utiliza grandes extensões de terras”, analisa.



Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=23561