Onde há fumaça há fogo
"Para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?", pergunta José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo, em artigo publicado no jornal Valor, 07-07-2009.
Segundo o economista, "não poderá haver efetiva mudança da contabilidade social sem que surja antes, ou simultaneamente, sua correspondente teoria macroeconômica".
Eis o artigo.
Estão à vista dois significativos sinais de fumaça sobre o que poderá ser a renovação do pensamento econômico no Século XXI. Principalmente o relatório "Prosperidade sem crescimento?", da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do governo britânico, lançado no início de abril, às vésperas da cúpula londrina do G-20. Mas também o rascunho das conclusões da comissão criada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy com a missão de propor novas maneiras de medir desempenho econômico e progresso social, em consulta pública desde o início de junho.
Embora suas mensagens não cheguem a ser convergentes, esse par de relatórios ilumina alguns dos mais sérios problemas da ciência econômica. O primeiro se contrapõe ao próprio alicerce da teoria macroeconômica, enquanto o segundo mostra as incongruências do sistema de contabilidade nacional que dela emergiu. Certo, nenhum dos dois traz propostas que já tirem o sono de especialistas das duas áreas. Ao contrário, enfatizam as barreiras epistemológicas e empíricas que ainda precisarão ser ultrapassadas para que possam surgir uma macroeconomia e uma contabilidade adequadas ao desenvolvimento sustentável. Todavia, como diz o velho ditado, onde há fumaça há fogo.
A argumentação do relatório britânico parte da constatação de que o crescimento econômico piora a depleção ecossistêmica absoluta, mesmo quando o consumo de energia e matéria aumenta menos que o produto. Em outras palavras, que não é absoluto o chamado descolamento entre uso de recursos naturais e expansão produtiva, por mais intenso que ele possa ser em termos relativos. Então, para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?
A única resposta positiva a tal pergunta foi dada por um modelo que simulou quatro cenários básicos em que a economia canadense reduziria gradualmente suas taxas de aumento do PIB para atingir, após dois decênios, uma situação sem crescimento (no growth). Situação semelhante àquela que os clássicos haviam chamado de "condição estacionária", e que Herman E. Daly preferiu chamar de "condição estável" (steady state), embora nenhum desses dois rótulos realmente corresponda à ideia de uma sociedade que prospera sem que sua economia aumente, âmago da pesquisa de Peter Victor "Managing Without Growth - Slower by design, not disaster" (Ed. Edward Elger: 2008).
Nos quatro cenários caem pela metade os níveis de desemprego, de pobreza e da relação dívida/PIB. O que varia é o volume de emissões de gases estufa. Sem taxação do carbono, esse volume aumentaria 30% se houvesse mais ênfase em investimento do que em comércio internacional, e 14% na hipótese inversa, com mais comércio e menos investimento. Com carbono tributado, essas elevações se transformariam em quedas de 22% e 31% respectivamente. O que permite inferir que a prosperidade sem crescimento poderia ser um objetivo de médio prazo para os vinte e poucos países centrais que já atingiram padrões de vida comparáveis ao do Canadá.
Claro, não será uma única pesquisa que poderá reduzir a inércia de convicções macroeconômicas consolidadas ao longo dos últimos 70 anos. O que também se aplica às conclusões ainda provisórias e incompletas da Comissão SSF (Stiglitz-Sen-Fitoussi), embora sejam bem menos subversivas do que a proposta de que as nações mais avançadas já procurem prosperar sem crescer. O rascunho rejeita o PIB como agulha magnética da bússola social, mas pretende ser pragmático.
Primeiro propõe cinco providências simultâneas:
a) usar outros indicadores bem estabelecidos na contabilidade nacional, principalmente a Renda Líquida Nacional Disponível em termos reais;
b) melhorar a aferição empírica de atividades-chave, como é o caso dos serviços de saúde e de educação;
c) adotar a perspectiva domiciliar, mais pertinente para padrões de vida;
d) adicionar informação sobre a distribuição de renda e de riqueza aos dados sobre suas evoluções médias; e
e) ampliar o escopo para incluir atividades que ocorrem fora dos mercados, por mais árduo que possa ser o trabalho de lhes imputar valores monetários.
Seguir esses cinco caminhos melhoraria muito a avaliação do desempenho econômico das nações, mas quase nada diria sobre a qualidade de vida que desfrutam suas populações. Para isso, a Comissão SSF reconhece a importância de medidas de caráter subjetivo, mas se inclina pela inevitabilidade de oito critérios objetivos: 1) saúde; 2) educação; 3) condições de trabalho e de vida; 4) influência política e governança; 5) conexões sociais; 6) condições ambientais; 7) insegurança pessoal, com destaques para criminalidade, acidentes e desastres naturais; 8) insegurança econômica, com destaques para desemprego, seguro-saúde, aposentadoria e pensões.
E como não é mais possível que a melhoria da qualidade de vida ignore seus limites ecológicos, a comissão apresentará em seu relatório final um enxuto painel integrado de indicadores (micro-dashboard) capaz de avaliar o excesso de pressão sobre os recursos naturais. Será uma medida ampla de riqueza baseada em estoques, na linha da "poupança genuína", ou "poupança líquida ajustada", proposta no relatório do Banco Mundial "Where is the Wealth of Nations" (2006).
É duvidoso que sejam essas as opções que orientarão o processo que inevitavelmente levará a razoáveis mensurações consorciadas do desenvolvimento e da sustentabilidade ambiental. Mesmo assim, já são suficientes para que se constate a precariedade do PIB e do IDH, além de ressaltarem a ausência de algum indicador legitimado de sustentabilidade ambiental. De resto, não poderá haver efetiva mudança da contabilidade social sem que surja antes, ou simultaneamente, sua correspondente teoria macroeconômica.
"Para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?", pergunta José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo, em artigo publicado no jornal Valor, 07-07-2009.
Segundo o economista, "não poderá haver efetiva mudança da contabilidade social sem que surja antes, ou simultaneamente, sua correspondente teoria macroeconômica".
Eis o artigo.
Estão à vista dois significativos sinais de fumaça sobre o que poderá ser a renovação do pensamento econômico no Século XXI. Principalmente o relatório "Prosperidade sem crescimento?", da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do governo britânico, lançado no início de abril, às vésperas da cúpula londrina do G-20. Mas também o rascunho das conclusões da comissão criada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy com a missão de propor novas maneiras de medir desempenho econômico e progresso social, em consulta pública desde o início de junho.
Embora suas mensagens não cheguem a ser convergentes, esse par de relatórios ilumina alguns dos mais sérios problemas da ciência econômica. O primeiro se contrapõe ao próprio alicerce da teoria macroeconômica, enquanto o segundo mostra as incongruências do sistema de contabilidade nacional que dela emergiu. Certo, nenhum dos dois traz propostas que já tirem o sono de especialistas das duas áreas. Ao contrário, enfatizam as barreiras epistemológicas e empíricas que ainda precisarão ser ultrapassadas para que possam surgir uma macroeconomia e uma contabilidade adequadas ao desenvolvimento sustentável. Todavia, como diz o velho ditado, onde há fumaça há fogo.
A argumentação do relatório britânico parte da constatação de que o crescimento econômico piora a depleção ecossistêmica absoluta, mesmo quando o consumo de energia e matéria aumenta menos que o produto. Em outras palavras, que não é absoluto o chamado descolamento entre uso de recursos naturais e expansão produtiva, por mais intenso que ele possa ser em termos relativos. Então, para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?
A única resposta positiva a tal pergunta foi dada por um modelo que simulou quatro cenários básicos em que a economia canadense reduziria gradualmente suas taxas de aumento do PIB para atingir, após dois decênios, uma situação sem crescimento (no growth). Situação semelhante àquela que os clássicos haviam chamado de "condição estacionária", e que Herman E. Daly preferiu chamar de "condição estável" (steady state), embora nenhum desses dois rótulos realmente corresponda à ideia de uma sociedade que prospera sem que sua economia aumente, âmago da pesquisa de Peter Victor "Managing Without Growth - Slower by design, not disaster" (Ed. Edward Elger: 2008).
Nos quatro cenários caem pela metade os níveis de desemprego, de pobreza e da relação dívida/PIB. O que varia é o volume de emissões de gases estufa. Sem taxação do carbono, esse volume aumentaria 30% se houvesse mais ênfase em investimento do que em comércio internacional, e 14% na hipótese inversa, com mais comércio e menos investimento. Com carbono tributado, essas elevações se transformariam em quedas de 22% e 31% respectivamente. O que permite inferir que a prosperidade sem crescimento poderia ser um objetivo de médio prazo para os vinte e poucos países centrais que já atingiram padrões de vida comparáveis ao do Canadá.
Claro, não será uma única pesquisa que poderá reduzir a inércia de convicções macroeconômicas consolidadas ao longo dos últimos 70 anos. O que também se aplica às conclusões ainda provisórias e incompletas da Comissão SSF (Stiglitz-Sen-Fitoussi), embora sejam bem menos subversivas do que a proposta de que as nações mais avançadas já procurem prosperar sem crescer. O rascunho rejeita o PIB como agulha magnética da bússola social, mas pretende ser pragmático.
Primeiro propõe cinco providências simultâneas:
a) usar outros indicadores bem estabelecidos na contabilidade nacional, principalmente a Renda Líquida Nacional Disponível em termos reais;
b) melhorar a aferição empírica de atividades-chave, como é o caso dos serviços de saúde e de educação;
c) adotar a perspectiva domiciliar, mais pertinente para padrões de vida;
d) adicionar informação sobre a distribuição de renda e de riqueza aos dados sobre suas evoluções médias; e
e) ampliar o escopo para incluir atividades que ocorrem fora dos mercados, por mais árduo que possa ser o trabalho de lhes imputar valores monetários.
Seguir esses cinco caminhos melhoraria muito a avaliação do desempenho econômico das nações, mas quase nada diria sobre a qualidade de vida que desfrutam suas populações. Para isso, a Comissão SSF reconhece a importância de medidas de caráter subjetivo, mas se inclina pela inevitabilidade de oito critérios objetivos: 1) saúde; 2) educação; 3) condições de trabalho e de vida; 4) influência política e governança; 5) conexões sociais; 6) condições ambientais; 7) insegurança pessoal, com destaques para criminalidade, acidentes e desastres naturais; 8) insegurança econômica, com destaques para desemprego, seguro-saúde, aposentadoria e pensões.
E como não é mais possível que a melhoria da qualidade de vida ignore seus limites ecológicos, a comissão apresentará em seu relatório final um enxuto painel integrado de indicadores (micro-dashboard) capaz de avaliar o excesso de pressão sobre os recursos naturais. Será uma medida ampla de riqueza baseada em estoques, na linha da "poupança genuína", ou "poupança líquida ajustada", proposta no relatório do Banco Mundial "Where is the Wealth of Nations" (2006).
É duvidoso que sejam essas as opções que orientarão o processo que inevitavelmente levará a razoáveis mensurações consorciadas do desenvolvimento e da sustentabilidade ambiental. Mesmo assim, já são suficientes para que se constate a precariedade do PIB e do IDH, além de ressaltarem a ausência de algum indicador legitimado de sustentabilidade ambiental. De resto, não poderá haver efetiva mudança da contabilidade social sem que surja antes, ou simultaneamente, sua correspondente teoria macroeconômica.