I – Dados biográficos
Natural de Karlsruhe, Sloterdijk estudou Filosofia, Filologia Germânica e História em Munique e Hamburgo, tendo concluído tese de mestrado sobre O estruturalismo como hermenêutica política, em 1971. Cinco anos mais tarde, defenderia seu doutorado em Hamburgo, com uma dissertação sobre Literatura e organização sobre experiência de vida.
No fim dos anos 70, Sloterdijk passou dois anos na Índia. Um período de sua vida que deixou conseqüências "irreversíveis", segundo o próprio filósofo:
"Quem fez uma experiência como essa, se torna imune a quaisquer teorias, nas quais a depressão sempre vence".
É considerado um dos mais importantes renovadores do pensamento filosófico da atualidade pelo menos desde a publicação de Kritik der zynischen Vernunft (Crítica da razão cínica), que alcançou sucesso imediato, tornando-se o mais vendido livro de filosofia na Alemanha no último meio século.
Notabilizou-se por defender o retorno a um maior rigor filosófico e, em bom iconoclasta, posiciona-se contra os nivelamentos por baixo reinantes na academia e na vida pública.
Embora Peter Sloterdijk seja, desde 1999, reitor da Escola de Artes e Design de Karlsruhe (Staatliche Hochschule für Gestaltung Karlsruhe), o filósofo e teórico da cultura não é conhecido no país por sua produção acadêmica, mas, acima de tudo, pelas polêmicas desencadeadas por seu discurso político.
Com teses controversas sobre o terrorismo islâmico, "alertas" sobre a Constituição européia e ironia a respeito do "musical" apresentado pelos manifestantes antiglobalização durante o encontro do G8 na Alemanha, Sloterdijk está, com freqüência, presente na mídia de língua alemã.
Seu suposto protesto contra o cinismo, definido como "falsa consciência esclarecida", levou o autor a observações amargas acerca da sociedade de consumo e informação.
A disseminação do computador e a conseqüente dependência do homem deste é outro ponto tocado por Sloterdijk, para quem "comunicação é trabalho escravo".
Filosofia "sem dedo em riste"
O recurso à terminologia semelhante à do repertório nazista fez com que na trajetória do filósofo fosse apontada uma "guinada para a direita", o que em sua autodefesa foi chamado de "agitação da esquerda fascista".
Como se não bastasse, Sloterdijk declarou ainda na época "a morte da Escola de Frankfurt" e anunciou um "acerto de contas com a Teoria Crítica", com o qual Jürgen Habermas "teria se aposentado".
Poucos anos depois, em 2002, o filósofo estrearia em grande estilo um programa na televisão alemã. O Philosophisches Quartett (Quarteto Filosófico), com o qual pretendia supostamente levar adiante "uma filosofia sem dedo em riste".
II - Obras
Em 2004 encerrou sua trilogia Esferas (Sphären), cujos primeiros volumes haviam sido publicados em 1998 e 1999 e onde aborda a relação umbilical do homem com seu meio ambiente (ver comentário ao final desta postagem) e com a qual aspirava decifrar a "história da humanidade".
O primeiro volume Sphären I. Blasen (Esferas. Parte I: Bolhas) foi atacado pela crítica como um amontoado insano de pronunciamentos sobre terrorismo, manipulação genética e cultura pop.
Na seqüência, vieram outros volumes da trilogia, encerrada com Schäume (Espumas) – obra que sugere fundamentos para uma nova "antropologia filosófica".
Em 2005, seria publicado Im Weltinnenraum des Kapitals: Für eine philosophische Theorie der Globalisierung (No Interior do Mundo do Capital: Por uma Teoria Filosófica da Globalização), em que o autor dá continuidade às teorias desenvolvidas na trilogia Esferas e disseca as dimensões do conceito de globalização.
Em Zorn und Zeit (Ira e Tempo), um tratado "político-psicológico", Sloterdijk analisa a cultura ocidental a partir da idéia da ira, considerada pelo autor "o motor real da história".
Iniciado com uma reflexão sobre a Ilíada, de Homero, epopéia constituída em função da ira de Aquiles, o volume se opõe à teoria psicanalítica, ao desconstruir a pulsão de morte, situando Eros no mesmo patamar de Thymos – para os gregos, responsável pelo arrebatamento da ira.
Paralelamente, vem estabelecendo uma nova correlação entre os pensamentos a priori quase antagônicos de Nietzsche e Heidegger.
Livros publicados em português
Regras para o parque humano:
Levanta o debate sobre o destino do ser humano na época da bioengenharia. O texto foi razão da eclosão de uma das maiores polêmicas político-filosóficas na Europa nos últimos anos (ver abaixo, nesta mesma postagem – A Polêmica)). O desenvolvimento a longo prazo conduzirá a uma reforma genética das características da espécie humana? Uma antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de suas características?
Essas perguntas de respostas complexas estiveram no centro do já famoso discurso de Elmau: um debate sobre a evolução futura da espécie no contexto de "um humanismo que naufragou como escola da domesticação humana", e do qual ninguém poderá se furtar.
Trechos
"Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço, são decididamente pós-literárias, pós-epistolares e, conse-qüentemente, pós-humanistas. Quem considera demasiado dramático o prefixo "pós-" nas formulações acima poderia substituí-lo pelo advérbio "marginalmente" — de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários, epis-tolares e humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais."
"O que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola da domesticação humana? (...) O que domestica o homem, se em todas as experiências prévias com a educação do gênero humano permaneceu obscuro quem — ou o quê — educa os educadores, e para quê? Ou será que a questão sobre o cuidado e formação do ser humano não se deixa mais formular de modo pertinente no campo das meras teorias da domesticação e educação?"
"Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma genética das características da espécie — se uma antropo-tecnologia futura avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à seleção pré-natal — nestas perguntas, ainda que de maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte evolutivo."
O Desprezo das massas:
O fenômeno "luta cultural" em si é o conflito no qual se depara a legitimidade e a origem das diferenças. Discute-se como a metafísica religiosa é intranqüilizada pela pergunta sobre de onde provém o Mal e, da mesma forma, como a sociedade secular se defronta com a questão de como deve alimentar suas diferenças (alteridade). Recorrendo a Nietzsche, Heidegger, Rorty, entre outros, Sloterdijk aborda uma relação problemática por excelência: os intelectuais e as massas.
O desprezo das massas é um ataque que o filósofo desfere contra o senso comum “ilustrado”, dada a asfixia do pensamento em exercícios diletantes das formas, amante de uma álgebra inútil. Partindo de um diálogo com Elias Canetti e seu diagnóstico acerca da agressividade da massa (essa heroína apressada de uma modernidade iludida) contra o talento e a diferença antropológica vertical, e estendendo esse diálogo a Heidegger, Nietzsche, Foucault, Rorty (criticando nesse sua aposta em uma estupidez democrática anti-filosófica), entre outros, Sloterdijk chega mesmo a buscar luzes em alguns momentos da teologia da graça, mais uma vez revelando sua qualidade de não dizer o que é normalmente considerado como de “bom tom” para as “posturas inteligentes modernas”. Aliás, essa tem sido sua tônica: dizer aquilo que a militância das “massas inteligentes” desprezam: “Por essa razão em todo mundo crescem como erva daninha aquelas comissões de ética que, como institutos da destroçada filosofia, querem substituir os sábios.” (p. 99).(comentários de Luiz Felipe Ponde - Departamento de Teologia - PUC-SP)
Trechos
“Só o fato de que a multidão moderna, ativada e subjetivada, passa a ser insistentemente chamada de massa pelos seus porta-vozes e pelos que a desprezam, já aponta para que a ascensão à soberania do maior número possa ser percebida como um processo inacabado, talvez inacabável.” (p. 12)
“A massa não reunida e não reunível na sociedade pós-moderna não possui mais, por essa razão, um sentimento de corpo e espaço próprios; ela não se vê mais confluir e agir, não sente mais sua natureza pulsante; não produz mais um grito conjunto. Distancia-se cada vez mais da possibilidade de passar de suas rotinas práticas e indolentes para um aguçamento revolucionário.” (p. 21)
“Necessariamente aparece duas vezes também o segundo desprezo, ou desprezo composto, uma vez de baixo, como desprezo ofensivo das elites por parte das novas massas flexibilizadas, que fazem de seu modo de vida a medida de todas as coisas e querem libertar-se de seu observador que as despreza; e como desprezo das massas e de seu amplo idioma por meio dos últimos elitistas, que sabem desprezados seus objetivos pela massa e pressentem que na cultura de massas em organização acabou de uma vez por todas aquilo com que se importam.” (p. 70)
“Essa primeira ciência humana engajada não esquece sua missão em tempo algum. Com seriedade metódica e fineza estratégica ela persegue seu objetivo pretendido: se for necessário suprimir a própria essência — por causa das diferenças essenciais a serem negadas —, ela também pagará esse preço.” (p. 87)
No mesmo barco:
Ensaio sobre os delírios da política, do paleolítico até hoje. Ao tratar de mais de 4 mil anos de História, Sloterdijk pode distanciar seu olhar à medida que mergulha nas grandes civilizações da antigüidade, o que lhe permite apreender alguns vícios fundamentais de nossa época. Peter Sloterdijk se insere no debate sobre a hiperpolítica, fulminando com seu estilo ímpar quatro mil anos de história. Ele distancia seu olhar, à medida que mergulha nas grandes civilizações da Antiguidade, o que lhe permite apreender alguns vícios fundamentais de nossa nossa época com extrema perspicácia.
A partir dessa combinação de flash backs e tempo real, Sloterdijk chega à tese de que os homens estão sentados sobre uma bomba-relógio lógica desde a invenção da roda - bomba armada pelo conceito de diversidade e pluralidade da espécie humana, cujo potencial explosivo engendrou nos últimos dois ou três séculos reações em cadeia: fenômeno aliás mais conhecido como "História universal". Apresentando o processo histórico como uma longa sucessão de convívios forçados, Sloterdijk enquadra-os em três etapas: mostra como a partir do pau torto das hordas pré-históricas primeiro foram talhados os antigos povos de caçadores e colhedoras; como depois na época agro-cultural foram empilhados impérios e reinos; e como finalmente na era industrializante uma sociedade tendendo ao tráfego universal elabora um difuso, por vezes desregulado, estado planetário pós-imperial.
O que o leva a refletir sobre a arte do possível em nossa época, que não se deixa mais definir como política, apenas como hiperpolítica - às hiper-hordas da atualidade corresponde apenas, quando muito, uma hiperpolítica. No entanto, esta padece ainda de duas falhas: todas as tentativas de transportar a cidade para o Grande, isto é, para uma sociedade universalizante, levam a totalitarismos e ao sacrifício das pequenas unidades empurradas para becos psicopatológicos. Portanto, qualquer política futura estará sujeita a uma situação onde não somente o Pequeno e o Grande devem ser novamente configurados, mas também o Velho e o Novo.
Se a Europa despertar:
Neste ensaio, Sloterdijk se pergunta se a Europa dilacerada de 1945 poderia ser vista como metáfora de um império moderno e esclarecido. Os desenvolvimentos políticos recentes, inclusive a derrapagem violenta da política externa norte-americana, já haviam sido previstas pelo filósofo alemão. A Europa foi libertada pelos aliados em 1945 da ditadura nazista — e ao mesmo tempo o velho “Império do Centro” foi agarrado pelas tenazes de novas potências mundiais a Oeste e a Leste. Nesta dupla experiência os europeus vivenciaram seu ano zero, até hoje motivo de uma longa e sofrida reflexão que se arrasta por duas gerações.
Peter Sloterdijk avança a tese de que não haverá como pensar a nova Europa dessa virada de milênio se os europeus não voltarem a seus fundamentos histórico-filosóficos e buscarem uma orientação programática assentada numa “mitomotricidade” imperial portadora de mitos fundadores que resultaram nos esplendores culturais, filosóficos e políticos de que a Europa contemporânea se quer herdeira. Nesse sentido, poderá a noção de Nietzsche de “obrigatoriedade da grande política” ser preenchida de um novo conteúdo contemporâneo, após o fim do vácuo no qual a tragou sua trágica safra de totalitarismos e guerras mundiais?
Na edição em português, há uma entrevista de Sloterdijk onde este revê, à luz do 11 de setembro norte-americano e de neo-imperialismos unilaterais, alguns embates expostos no texto original, redigido sob influência das alterações inter-imperiais após o 1989 soviético / europeu.
Ira e tempo:
O autor reinterpreta o conceito de ira à luz do pensamento ocidental do século XXI. Para Sloterdijk, no lugar de válvula de escape para desejos não realizados, a ira passa a ter valor histórico, sobretudo na construção de um equilíbrio político. No caminho percorrido pelo filósofo conclui-se que é preciso exercitar este equilíbrio sem se esquivar das lutas necessárias e, ao mesmo tempo, não provocar nenhuma luta supérflua. Entre outras coisas, Sloterdijk mostra que reprimir a ira dita produtiva pode gerar efeitos paralisantes.
Crítica da razão cínica: escrita em 1983;
Outras obras:
Der Denker auf der Bühne – Nietzsches Materialismus [O pensador no palco – O materialismo de Nietzsche], 1986;
Weltfremdheit [Desassossego do mundo], 1993;
Der starke Grund, zusammen zu sein. Erinnerungen an die Erfindung des Volkes [O grande motivo de estarmos juntos: anotações sobre a descoberta do povo], 1998;
Luftbeben: An den Quellen des Terrors, [Aeromotos: Nas fontes do terror], 2002.
III - A polêmica de 1999
Em julho de 1999 eclodiu uma polêmica num pitoresco castelo da Baviera como há muito já não se via nestes tempos de horizontes tranqüilos e conflitos pasteurizados. Uma palestra refinada e aparentemente despretensiosa — tomando como ponto de partida o diagnóstico heideggeriano da crise do humanismo e prosseguindo retroativamente pela denúncia nietzscheana da domesticação apequenadora do homem pelo homem até as acintosas recomendações de Platão sobre a arte de pastorear seres humanos — se transformaria no maior debate político-filosófico dos últimos anos a varrer uma Europa em confronto com um fim-de-século tão cheio de indagações e inseguranças quanto o foi seu início.
Para onde nos levará o perigoso fim do humanismo literário enquanto utopia da formação humana? Como nos posicionar frente ao homem re-desenhado, frente às manipulações genéticas que sabemos serão feitas quer se queira ou não? A discussão é fundamental e apenas ensaia seus primeiros passos. Ingressamos no terreno movediço da antropotécnica, como diria Sloterdijk. Uma leitura atenta deste texto tão recente e já célebre — e ele mesmo um revelador exemplo de uma descontextualização simplificadora por uma parte da crítica — nos mostra o autor advogando a necessidade de se definir regras éticas e controles sociais para as aplicações tecnológicas já ao alcance dos grandes conglomerados da bioengenharia e, em especial, para as assustadoras possibi-lidades, já fartamente disponíveis, de seleção pré-natal dos próprios seres humanos.
No texto rebuscado, onde é afirmada a inevitabilidade da manipulação genética, o uso de conceitos como "seleção" e "cultivo" despertou na crítica analogias imediatas com a ideologia nazista, o que fez com que o "discurso de Elmau" (nome do castelo na Baviera, onde o ensaio foi lido por Sloterdijk pela primeira vez) passasse meses a fio sendo debatido tanto na imprensa quanto no meio acadêmico alemão.
Repercussões sobre discurso:
Alguns comentários sobre o discurso de Sloterdijk (ver ainda a postagem intitulada “O Homem Neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos", de autoria de Dany-Robert Dufour, neste Blog):
Bruno Latour
"Acusa-se Peter Sloterdijk de brincar com a eugenia ignorando todo e qualquer perigo, ao passo que ele toma a pluma para impedir seus adversários de minimizá-lo! Belo exemplo de incompreensão... Qual é afinal este perigo? O de não ver que uma guerra mundial começou 'a respeito das variantes da criação do homem'." (Bruno Latour, Le Monde des Débats, novembro de 99)
"Peter Sloterdijk, autor do cultuado Crítica da razão cínica, símbolo de uma geração herdeira da Teoria Crítica, é o pivô de um escândalo que está dividindo a intelectualidade européia (...). Sloterdijk propõe um Conselho de cientistas e filósofos para criar um discutível Parque Genético Humano (Menschenpark), como reservatório para 'salvar e aprimorar a espécie da imbecilidade e brutalização induzida pelos mídias'. Ato contínuo, Jurgen Habermas abriu fogo contra Sloterdijk e a confusão, que promete abalar os alicerces de toda uma área do pensamento, já está na mídia européia." (Jornal do Brasil, Idéias/Livros, 25/9/99)
"Para Sloterdijk, a reação 'horrorizada' de parte da 'boa consciência' humanista contra a engenharia genética não passaria de uma tentativa de silenciar sobre a técnica seletiva, a fim de poder realizá-la exatamente em silêncio: o horror na verdade é cinismo, diz ele, evocando seu livro Critica da razão cínica (1983)." (Luiz Felipe Pondé, Folha de S. Paulo, Mais!, 10/10/99)
"Essa proposta (de uma Assembléia Geral das Ciências do Homem para discutir os limites da biotecnologia e a formulação de um código de conduta) não é tão absurda quanto pretendem os inimigos do filósofo. Ao contrário: são os postulados iniciais de Sloterdijk que podem causar preocupação: morte do humanismo, decisão de se permitir pensar no fim total dos tabus, na exigência de uma plena liberdade, ao contrário da Alemanha da culpabilidade. É nesse sentido que Sloterdijk constitui uma ruptura franca com a filosofia alemã do pós-guerra." (Gilles Lapouge, O Estado de S. Paulo, Cad. 2/Cultura, 17/10/99)
"(O texto) provocou uma verdadeira tempestade pública na Alemanha... Sujeito: o futuro do humanismo e o devir da civilização européia. Perspectivas: nada menos do que o título anuncia: "regras para o parque humano" na época da "antropotecnologia". O Monde des Débats toma portanto a iniciativa de publicar a integralidade de um texto filosófico tão longo quanto árduo, e considerado por seus adversários como explosivo, senão perigoso: é o preço por vezes a se pagar para a honestidade dos debates e das polêmicas." (Le Monde des Débats, outubro de 99)
"Não importa o que tenha acontecido com esta polêmica toda, o importante para mim é que a discussão sobre a antropotecnologia finalmente tenha acontecido." (Depoimento ao editor, Frankfurt, outubro de 99)
IV - A Participação de Sloterdijk no ZKM - Centro de Arte e Tecnologia de Mídia, de Karlsruhe
Peter Sloterdijk esboçou um produto instantâneo ideal para propagar a cultura política do Ocidente em todo o mundo: um Parlamento inflável que pode ser lançado via aérea, a fim de instaurar a democracia com a maior rapidez possível nos "Estados delinqüentes" que tenham acabado de ser subjugados.
O Parlamento com capacidade para 160 deputados pode ser transportado num único contêiner, oferecendo todas as condições necessárias para o processo democrático dentro de apenas 24 horas, excluindo o tempo de vôo. No entanto, sem um empurrãozinho das Forças Aéreas norte-americanas, o sucesso do empreendimento seria impensável. Afinal, ironiza Sloterdijk, os americanos já mostraram "grande êxito no emprego da democracia via aérea".
Bruno Latour
O interesse dos curadores Bruno Latour e Peter Weibel era justamente "encontrar novos caminhos para se refletir sobre política e desenvolver procedimentos que possam levar a uma nova forma de trabalho entre artistas e teóricos".
Em sua contribuição à mostra, Sloterdijk, atribui uma dimensão bélica ao missionarismo ocidental e sua meta de democratizar o mundo. Do ponto de vista do Ocidente, a democracia é algo bom a ser imitado. "E como contaminação funciona bem num mundo denso, a democratização poderia dar certo através de uma infecção mimética", explica Sloterdijk em entrevista ao diário Die Welt.
Porém, a contaminação democrática tem fronteiras e não funciona em todas as partes do mundo, segundo ressalva o filósofo. "O mundo árabe ainda não atingiu o grau de densidade que caracteriza o mundo ocidental. Falta de densidade também é o maior déficit estrutural da África; em conseqüência disso, bons exemplos não se propagam com tanta rapidez, só a Aids mesmo é que galopa."
O gueto do capital
Embora a globalização pareça dar margem à transferência ilimitada de modelos de um espaço cultural para o outro e pareça apontar para a abolição das fronteiras, o que ocorre – segundo Sloterdijk – é justamente o contrário:
"Minha teoria descreve a globalização como um fenômeno de exclusão sem precedentes. O mundo do bem-estar tende a criar um espaço interior bastante hermético, sem levar em conta qualquer homogeneidade regional ou nacional. Eu denomino isso o 'interior do mundo do capital'".
Em seu livro Im Weltinnenraum des Kapitals: Für eine philosophische Theorie der Globalisierung (No Interior do Mundo do Capital: Por uma Teoria Filosófica da Globalização), Sloterdijk descreve a criação de um complexo de conforto, um espaço interior com fronteiras invisíveis, mas intransponíveis para quem está de fora. Ou seja: uma ilha habitada por um bilhão e meio de pessoas, flutuando num mar povoado por uma população três vezes maior.
Nem as nações mais jovens escapam deste modelo: "Hoje a Índia deve ser uma zona de prosperidade com 200 milhões de pessoa, flutuando num oceano gigantesco onde grassa a miséria de mundo agrário arcaico. Na China, a reforma capitalista do comunismo deve ter beneficiado 400 milhões de pessoas, deixando 800 ou 900 milhões na mais absoluta falta de perspectiva", ressalta Sloterdijk ao Die Welt.
Mas o prognóstico de Sloterdijk para as ilhas de prosperidade do Ocidente também não é dos mais otimistas: "A era dos grandes alívios está acabando. Por um bom tempo se misturou o gás do riso da segurança social à atmosfera da Europa Ocidental. Hoje ainda continuamos a respirar ares de consumismo, sem os quais dificilmente se poderia impulsionar uma conjuntura. Remuneração sem empenho e segurança sem luta foram os ingredientes existenciais da Europa durante meio século. Foi isso que ajudou a determinar o clima. Mas agora as pessoas vão ter que sofrer para aprender que as coisas vão ter que funcionar com mais empenho próprio e menos gás do riso".
V - Sobre a trilogia Esferas
(texto extraído do Blog: http://brigadasinternacionais.blogspot.com/2007/09/peter-sloterdijksem-domcilio-fixo.html ):
O que Peter Sloterdijk pretende não é nem condenar, nem idolatrar, mas propor-nos um reconhecimento do monstruoso como monstruoso e uma capacidade para o pensarmos.Parece que Peter Sloterdijk está destinado à provocação. De certo modo, se o não fizer, desilude os seus ouvintes e leitores. É por isso que a sua comunicação na Baviera, num colóquio consagrado a Heidegger, em Julho de 1999, foi mais uma vez objecto de reacções violentas e debates apaixonados.
Mas o próprio texto já o tinha programado. O autor começa logo de entrada por observar que grande parte do modernismo estético e filosófico até aos anos 60 (dos expressionistas de 1920 aos existencialistas de 1950 - e poderíamos falar nos bataillianos e blanchotianos dos anos 60 e nos revolucionários de 68) se definiu por um acentuado desprezo pelas situações médias. Não foi o historiador britânico Eric Hobsbawm que definiu parte do século como uma "idade dos extremos"? Os extremos têm um pensador privilegiado: Nietzsche. Ora é curiosamente esse mesmo Nietzsche que faz a transição entre um modernismo dos extremos e um espírito pós-moderno que se situa claramente no campo oposto. Como escreve de um modo muito pertinente Peter Sloterdijk, "as premissas históricas do pensamento no fim do século XX recomeçaram a transformar-se de um modo fundamental. Sob o nome de código de 'pós-modernidade', instalou-se, pelo menos desde há duas décadas, um estado de consciência pós-extremista, no qual reaparece um pensamento das situações médias. (...) O resultado destas reflexões pós-radicais, pós-marxistas, pós-apocalípticas, neo-cépticas, neo-morais, etc., desemboca no presente numa situação social cada vez mais impregnada pelos mitos e rituais da comunicação, do consumo, da rentabilidade acrescida, e da mobilidade - um novo Eldorado das situações médias. Neste clima neo-medíocre, a propensão e a capacidade para nos reapropriarmos dos fragmentos do extremismo declinam de novo - em regra geral, hoje, é preciso fazer o desvio pela biografia ou por outros modos derivativos da escrita se queremos entender alguma coisa destes radicalismos fracassados." Mas se esta "miniaturização deve ser entendida como um tributo quase natural à normalização" ("a democracia implica por si mesma um triunfo das situações médias"), este pensamento "não está em sintonia com os acontecimentos maiores da nossa época, e perde a capacidade para apreender as realidades imensas do processo de civilização".
Eis a questão central: quais são os acontecimentos fundamentais da nossa época? E, face a eles, como conseguir, segundo a lição de Heidegger, resistir à "banalização do monstruoso"?É aqui que surge a palavra-chave: o homem é um produto; e só pode ser compreendido a partir do seu modo de produção. É aqui portanto que começa o escândalo Sloterdijk. Porque ele vai saltar a pés juntos sobre a perspectiva humanista (o homem como sujeito de si próprio) para estabelecer uma relação entre o homem no seu confronto com o "divino", e, depois, numa progressiva viragem ateológica, entre o homem no seu confronto com o "monstruoso" - porque, nos nossos dias, "o monstruoso instalou-se no lugar do divino".
O que nos coloca face a uma "antropotécnica", e perante a seguinte perspectiva: "uma parte do género humano actual, sob a direcção da fracção euro-americana, tentou, com a sua entrada numa era altamente tecnológica, um procedimento sobre si mesmo e contra si mesmo cujo móbil é uma nova definição do ser humano", o que faz que "as condições de produção do ser humano começam hoje a constituir-se de uma maneira mais formal, mais técnica e mais explícita do que nunca". Se em 1945, com Hiroshima, tivemos um apocalipse físico, em 1997, tivemos, com a divulgação pública das experiências de clonagem, um apocalipse biológico. Mas a nossa época é de tal modo tentada pelas situações médias que "o apocalipse do homem tornou-se algo de quotidiano".
O que Sloterdijk pretende não é nem condenar, nem idolatrar, mas propor-nos um reconhecimento do monstruoso como monstruoso e uma capacidade para o pensarmos. Para isso precisamos de aceitar duas coisas: primeira, que o homem é um produto, e um produto em aberto; segunda, que o produtor desse produto não é nem Deus, nem o próprio homem (nem teologia, nem humanismo). Então quem produz? Há nesta pergunta um pressuposto que convém pôr em relevo: pressupõe-se que o produtor está acima do produzido. Ora (e esta proposta teórica de Sloterdijk aproxima-o de Negri e Hardt) o que devemos dizer é que o produtor é imanente ao próprio produzido, que "o homem é o produto de uma produção que ela própria não é o homem, que não é conduzida pelo homem de um modo intencional, e o que não será já o-que-viria-a-ser antes de o vir a ser. Trata-se portanto de descrever um mecanismo antropogenético, e explicar, a partir dele, que ele procede de um modo decididamente pré-humano e não-humano, e que em nenhuma circunstância pode ser confundido com a acção de um sujeito produtor, seja divino, seja humano".
Isto implica uma nova problemática do Ser e do espaço, a afirmação de um conceito a que Sloterdijk chama de "dimensional" e a análise de uma condição tensiva do dimensional. Agora a tensão faz-se entre a relação-com-o-mais-longínquo, isto é, a clareira e o êxtase, e um-ser-cada-vez-mais-junto-de si, isto é , a ideia da casa do Ser. A esta nova noção do espaço (que se sobrepõe à temporalidade) Sloterdijk chama "esferas", definindo-as como "entre-mundos": nem um enclausuramento no cárcere ambiental, nem o terror de uma permanente abertura ao Exterior, mas uma situação de suspensão tensiva entre mundos e entre aberturas. E no processo de formação das esferas será possível encontrar quatro tipos de mecanismos: a insulação; a supressão dos corpos, a neotenia e a transposição (como é óbvio, ditos assim , estes termos valem o que valem: o que interessa são as longas análises do modo como tais mecanismos funcionam).
Numa perspectiva histórica, o homem deve tornar-se totalmente doméstico antes de iniciar o processo de se tornar totalmente extático. É aqui que se pode falar em "domesticação do Ser" a partir das antropotécnicas primárias: técnicas de educação, linguagens, códigos, rituais, regras de parentesco, normas de casamento, etc.. Só que a biotecnologia contemporânea cria antropotécnicas secundárias e é aqui que a casa do Ser começa a soterrar-se sob o peso dos seus próprios andaimes: "A palavra e a escrita, na era dos códigos digitais e das transcrições genéticas, já não têm um sentido que seja de um modo ou de outro doméstico. As composições da técnica desenvolvem-se fora de qualquer hipótese de transposição e não suscitam nem aclimatações nem efeitos de domínio da exterioridade. Pelo contrário, aumentam o volume do exterior e do nunca assimilável". O homem parece cada vez mais condenado à errância - como um ser sem domicílio fixo.
Fontes:
http://brigadasinternacionais.blogspot.com/2007/09/peter-sloterdijksem-domcilio-fixo.html