“Vemos
a utilização do instrumento do endividamento público às avessas”,
denuncia Maria Lucia Fattorelli.
Ex auditora fiscal da Receita Federal e presidente do Unafisco
Sindical(Sindicato
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), Fattorelli adverte
que, se o instrumento de endividamento do Estado seria para completar suas
receitas, o que acontece é exatamente o oposto: o pagamento da dívida tem tirado
dos cofres públicos anualmente quase metade de seu orçamento. Em 2011 a dívida
pública absorveu R$708 bilhões, o equivalente a 45% do orçamento da União e em
2012, a previsão orçamentária calcula que tenha sido em torno de 48%. A dívida,
paga por todos os cidadãos brasileiros, já supera o valor de R$3 trilhões.<
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Da onde surgiu essa dívida? A quem ela está sendo
paga? O que o povo brasileiro ganha com isso? Por que ela não para de
crescer? Maria
Lucia Fattorelli, formada em administração e ciências contábeis, ajuda
a responder essas e outras questões. Desde 2000, ela integra o movimento Auditoria
Cidadã, que investiga a dívida brasileira e pressiona pela
realização de uma auditoria oficial, prevista na Constituição Federal mas nunca
realizada. O movimento acaba de lançar um livro de estudos, “A dívida pública em
debate”, com o objetivo de popularizar a discussão a respeito do tema, que, para
eles, “é o nó que amarra o Brasil”.
Maria
Lucia prestou assessoria técnica à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em
2010 e participou da auditoria oficial da dívida do Equador, que foi concluída
em 2008. Com o resultado desse trabalho, que apontou diversas irregularidades, o
presidente Rafael
Correa propôs aos credores pagar 30% do valor previsto para resgatar
todos os títulos.
Fattorelli aponta
que o processo de endividamento foi bastante similar em todos os países
latino-americanos e suspeita que boa parte da dívida brasileira, que surgiu nos
anos 1970, foi simplesmente para financiar a ditadura militar. E mais: salienta
a necessidade de investigar se, como aconteceu no Equador, a dívida brasileira
não tenha prescrito em 1992 e simplesmente sido ressuscitada pelo governo em
conjunto com integrantes do setor financeiro.
“Existe um sistema da dívida”, ressalta: “Esse sistema
atua no modelo político, econômico, no sistema legal e na grande imprensa”.
“Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia”, constata. “É isso que
explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONUnos
classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano”.
A entrevista é de Gabriela
Moncau e publicada na revista Caros
Amigos.
Eis
a entrevista.
A
dívida pública brasileira já supera R$3 trilhões?
Se somarmos a dívida interna, que está em R$2 trilhões
e 637 bilhões, e a dívida externa, que está em U$422 bilhões, superamos os R$3
trilhões.
Você
já chegou a dizer que é melhor falar em dívida pública de maneira geral do que
em dívida externa ou interna. Por quê?
Um livro de economia diz que dívida interna é a aquela
contraída junto aos residentes no país. Se olharmos na página do tesouro
nacional, os dealers são um conjunto de 12 instituições que tem o privilégio de
comprar dívida em primeira mão, logo que o tesouro nacional lança os títulos.
Estão lá o Citibank, o JP Morgan, o Barclays, o Deutsche Bank, o Royal Bank of
Scotland, e por aí afora. Como se pode chamar dívida interna uma dívida que vai
direto para a mão de bancos estrangeiros? Por isso dizemos que o mais correto é
falar em dívida do setor público. Não existe nacionalidade para o dinheiro.
Temos que continuar usando a classificação interna e externa porque na
contabilidade pública está dessa forma, mas é preciso considerar o conjunto, a
dívida é pública.
Qual
a origem da dívida?
Se formos puxar o fio da meada, o Brasil já nasceu
endividado. Quando tivemos nossa independência decretada, tivemos que assumir
uma dívida que Portugal tinha contraído com a Inglaterra. Mas para pegar esse
último ciclo, que é o mesmo que perdura até hoje, ele começou na década de 1970,
durante a ditadura militar. Começa num período de total falta de transparência,
a parte que aparecia era a do tal “milagre econômico”. Assumimos uma série de
empréstimos externos para construir hidrelétricas, siderúrgicas, vários
investimentos de infraestrutura.
Só que durante a CPI da dívida buscamos a explicação
para a origem dessa dívida. E os contratos desses investimentos explicam menos
de 20% dos gastos com a dívida daquela época. E os outros 80%? Fica uma
suspeita: será que esse montante, ou pelo menos boa parte dele, foram
compromissos assumidos simplesmente para financiar o próprio processo de
ditadura militar? Estamos inclusive preparando para um contato com a Comissão da
Verdade para incluir em seus trabalhos a investigação sobre o financiamento da
ditadura. Quem bancou todos aqueles agentes internacionais que ficavam aqui?
Quem bancou aquela estrutura de espionagem, todas as viagens? A maior parte
dessa dívida foi junto a bancos privados internacionais. Não foi dívida, por
exemplo, com o FMI [Fundo Monetário Internacional], como muitos brasileiros
pensam.
Inclusive
no governo Lula houve propaganda de que o Brasil pagou tudo o que devia para o
FMI e a ideia de que portanto estaríamos livres de dívida
externa.
Pois é. Isso aí surtiu o efeito político no imaginário
dos brasileiros de que dívida externa é sempre com o FMI. E isso nunca foi fato.
Todo o endividamento da década de 1970 foi principalmente com esses bancos
privados internacionais, que estavam com excesso de liquidez. Ou seja: tinham um
volume muito grande de moeda disponível. Por quê? No dia 15 de agosto de 1971,
um domingo, o presidente Nixon simplesmente comunicou que não existiria mais a
paridade do dólar com o ouro. Isso permitiu que os EUA ligassem a maquininha e
imprimissem qualquer quantidade de dólar que quisessem. A essas alturas, 30 anos
depois de Bretton Woods, o mundo inteiro já tinha absorvido o dólar como moeda
de trocas internacionais.
Isso causou um excesso de liquidez em poder dos
bancos. Esses bancos vieram principalmente aos países da América Latina e
ofereceram empréstimos a taxas muito atraentes, em torno de 5%, no máximo 6% ao
ano. Esses mesmos bancos privados comandavam o FED [Federal Reserve Bank], que é
o Banco Central norte-americano. Ele tem cara de instituição pública, mas o
conselho executivo é composto por 10 ou 12 bancos privados, aqueles mesmos que
eram os credores. Por volta de 1979 essas taxas começaram a se elevar e chegaram
a 20,5% ao ano. Em 1981 já ficou difícil de pagar e em 1982 começou pelo México,
seguiu pela Argentina, Brasil, Peru, todos; entraram em crise.
Tem vários princípios de direito internacional que
amparam uma revisão caso as condições pactuadas sejam transformadas. Muitos
outros princípios foram desrespeitados, como o de conflito de interesse: eram os
mesmos bancos credores que comandavam as instituições que determinavam a
variação da taxa. Mas nenhum país nunca levantou essas questões, isso que é
gravíssimo.
E
o que aconteceu no momento da crise, nos anos 1980?
Nesse momento que vem o FMI, para oferecer um
empréstimo que garantisse o pagamento imediato daquele período. Mas para
garantir esse crédito, o FMI exigiu que cada país fizesse acordos, transferindo
as dívidas com esses brancos privados internacionais para o Banco Central
(BC).
Tanto as dívidas do setor público quanto do setor
privado foram transferidas a cargo do Banco Central. E o mais grave: esse
dinheiro que o BC assinou como devedor nunca veio para o Brasil. Por exemplo, as
empresas A, B, C do setor público e as empresas X, Y, Z do setor privado tinham
dívidas com bancos internacionais. O Banco Central assumiu papel de devedor mas
essas empresas já tinham recebido o dinheiro que pegaram emprestado. Ele passou
a ser devedor mas não recebeu esse dinheiro, ele só assumiu o ônus da dívida.
Isso é muito importante porque é um indício da completa ilegitimidade dessa
dívida. Como é que você tem uma dívida, que foi a transformação de outra dívida
que você nem tem prova dela, e mais, como é que o BC assume uma dívida da qual
ele nunca recebeu dinheiro? E nós é que temos que pagar?
Por
que desde então esse valor não para de crescer?
Por causa das condições extremamente onerosas que
foram impostas nesses acordos. A gente paga um pedaço dos juros, e outro pedaço
é incorporado ao capital. Então foi virando uma bola de neve.
Na década de 1980 várias comissões do Congresso
Nacional discutiram isso. Uma comissão em 1983 que teve um relatório brilhante,
apontou verdadeiros crimes. Não deu em nada. Teve outra comissão em 1987, no
Senado, o relator foi o Fernando Henrique Cardoso. Não deu em nada. Porém, como
resultado de todo esse debate a respeito da dívida, entrou na Constituição
Federal, em 1988, a necessidade de fazer uma auditoria da dívida. E logo depois
foi formada uma comissão para fazê-la. Só que essa comissão enfrentou
gravíssimos problemas políticos e quase não conseguiu trabalhar. O relatório foi
do falecido senador Severo Gomes que fez uma breve análise jurídica dos acordos
da década de 1980, que ele considerou nulas de pleno direito, cláusulas
abusivas. Acho que todo brasileiro deveria ler o relatório dele, é um relatório
curto q ue está disponível na página na internet da Auditoria Cidadã.
É um documento que tem um parágrafo que eu sei quase
de cor: “Esses acordos colocam o Brasil de joelhos sem brios poupados, inerme e
inerte, imolado à irresponsabilidade dos que negociaram em nosso nome e à
cupidez de seus credores. Renúncia de soberania talvez nós tenhamos tido
algumas, mas uma renúncia declarada à soberania do país é a primeira vez que
consta de um documento, faz dele talvez o mais triste da história política do
país”. Mais uma vez não deu em nada e a Constituição não foi cumprida. E a
dívida crescendo.
Existe
a suspeita de que essa dívida já tenha prescrito?
Sim, temos uma suspeita de que em 1992 essa dívida
passou por um processo de prescrição. Porque todos esses acordos da década de
1980 foram firmados em Nova Iorque e a lei regente desses acordos era a lei de
Nova Iorque. Segundo essas leis, as dívidas prescrevem em seis anos. Então, se
eu tenho uma dívida com você e interrompo o pagamento, você tem seis anos para
me acionar. Seja administrativamente, seja judicialmente. Se você não fez nada,
dali a seis anos a dívida morreu, prescreveu. Isso está previsto na lei
norte-americana, chama estatuto de limitações. Se uma parcela deixa de ser paga,
isso provoca a antecipação do vencimento de toda a dívida.
Em 1986, houve uma interrupção de pagamento de juros
daqueles acordos. A partir desse momento começou a contar o prazo de prescrição.
Passaram-se seis anos e não houve nenhuma exigência para que o Brasil efetuasse
esse pagamento. O BC não foi compelido por nenhuma ação administrativa ou
judicial a efetuar o pagamento. Então temos a suspeita de que em 1992 a dívida
prescreveu.
Por
que um governo optaria por ressuscitar uma dívida já
prescrita?
Aí que está. Entra mega corrupção, mensalão é grão de
areia perto disso aí, e uma série de outras coisas. Por que temos uma suspeita
tão forte que isso tenha acontecido no Brasil? Vários documentos que tivemos
acesso no CPI da dívida mencionam um contrato de renúncia que nunca apareceu.
Mas em 1992 houve uma forte pressão no Senado para aprovar uma resolução que
autorizasse uma negociação no exterior. Uma negociação de mais de 60 bilhões de
dólares. A pressão para aprovar isso foi tão forte que esse documento saiu do
Ministério da Fazenda para o Senado e em poucos dias foi aprovado, nesse mesmo
dia já saiu parecer da Procuradoria da Fazenda, foi tudo muito ágil.
Quem participou dessa comissão que fez essa
renegociação em 1992? Foi um contrato feito no Canadá, que nunca apareceu. Um
grupo de várias pessoas do Ministério da Fazenda e do Banco Central participou,
mas três nomes de destaque, que na época não tinham cargo, eram tipo consultores
do setor financeiro: Armínio Fraga, Pedro Malan e Murilo Portugal. Essa
negociação feita em 1992 permitiu que toda essa dívida com bancos privados,
proveniente desses questionáveis acordos da década de 1980, fosse transformada
em títulos, em papéis de dívida negociáveis no setor financeiro, os tais bônus
brady. Essa transformação se concretizou em 1994, período em que, com a eleição
do Fernando Henrique Cardoso, o Pedro Malan virou Ministro da Fazenda, o Murilo
Portugal virou presidente do tesouro e o Armínio Fraga, presidente do Banco
Central . Entendeu?
Essa conversão foi tão absurda que ela foi feita em
Luxemburgo, um paraíso fiscal, porque nenhuma bolsa de valores regular aceitaria
uma conversão desse tipo. Foi uma conversão direta, não foram títulos que o
Brasil ofereceu ao mercado e recebeu dinheiro em troca. Mais uma vez, nenhum
centavo entrou no país. Foi uma troca direta: de papel por papel. E pagando
juros, pagando taxas, pagando comissões, pagando encargos... Por isso a dívida
cresce sem parar. Simplesmente se assume uma dívida, sem que o dinheiro
entre.
É
um endividamento sem nenhuma contrapartida?
Sem contrapartida! Em 1994, converteu em bônus brady,
provavelmente ressuscitaram uma dívida morta – que fique registrado que é uma
suposição que temos, não encontramos ainda documento que comprove. Temos
indícios por conta da menção a um contrato de renúncia em outros documentos e o
paralelo que fazemos com o Equador. Porque todo o processo foi idêntico: a
dívida da década de 1970, os acordos da dívida nas mesmas datas, a entrada do
FMI em 1983, as exigências do FMI, o brady, tudo igual.
Aqui no Brasil esses bônus brady resultantes dessa
conversão foram acatados como moeda na compra das nossas empresas submetidas ao
processo de privatizações. Então, além de assumir uma dívida absurda porque
dinheiro nunca entrou, as nossas empresas ainda foram trocadas por esses papéis
de dívida. E quando esses papéis de dívida externa entram no tesouro, o que o
tesouro fez? Trocou essa dívida por dívida interna. E aí começa a bola de neve
da dívida interna a partir de 1994.
Veio o plano real, com taxas de juros interna
altíssimas. Uma das táticas do plano real foi liberar totalmente as importações
para que o produto importado chegasse aqui bem baratinho e forçasse as
indústrias nacionais a baixar o preço, muitas até quebraram. Só que aquela
avalanche de importados tinha que ser paga. E como ser paga se o Brasil não
produz dólar? O país abriu para o investimento do estrangeiro na compra de
títulos da dívida interna, que paga os maiores juros do mundo. Tudo isso para
controlar a inflação. A dívida interna começou a dobrar a cada mês. Então veja
bem: dívida externa emitida para pagar dívida anterior e dívida interna para
sustentar o plano real.
Com tudo isso, eu pergunto: qual o benefício para a
nação? Pois essa dívida é paga por nós tanto com base nos elevados tributos
embutidos em tudo que consumimos como nos demais impostos (de renda, de casa, de
carro, etc). E cadê os serviços públicos a que temos direito? Como está a
educação, a saúde, o transporte? Uma dívida tem que ter alguma contrapartida que
justifique todo esse esforço dos cidadãos para pagá-la.
A
própria ideia de endividamento público, na teoria, é para completar as receitas
do Estado. Pelo jeito o que acontece é o contrário, os recursos do Estado são só
retirados.
Exatamente. É a utilização do instrumento do
endividamento público às avessas. Endividamento deveria servir para aportar
recursos à nação. Aí sim se justifica. Não, o endividamento público se
transformou num mecanismo de transferência dos recursos públicos para o setor
financeiro privado. A isso cunhamos um termo: existe um sistema da
dívida.
Isso é um sistema, tem princípio, meio e fim. Aqui no
Brasil, quais as principais metas atualmente? Não são de bem estar social, de
pleno emprego, etc. As metas do nosso modelo econômico são superávit primário,
metas de inflação. Quem se beneficia? O sistema da dívida.
Para operar, o sistema da dívida interfere no modelo
político. O poder econômico é que elege a maior parte dos representantes que
estão lá na Câmara, no Senado, nas Assembleias Legislativas. Quem financia as
campanhas de quem vence as eleições? Principalmente bancos e grandes corporações
que tem um pézinho no setor financeiro. Ao eleger, é claro que vão exigir uma
postura na votação das leis, nas medidas, nas licitações. Para operar, esse
sistema garante um aparato de membros do Legislativo e do Executivo que está na
mão deles.
Isso é tão forte que agora na Europa, com a crise,
posso dar exemplo. Na Grécia, o primeiro-ministro anterior, o Papandreou,
resolveu fazer um plebiscito sobre aceitar os empréstimos da troika em troca das
medidas de austeridade. No dia que comentou sobre esse plebiscito, ele foi
obrigado a renunciar. E quem entrou no lugar dele? Um tecnocrata do Goldman
Sachs [Lucas Papademos]. Isso escancara como atua o poder econômico no âmbito
político.
O sistema da dívida garante também um aparato legal
que privilegia seu pagamento em detrimento de todos os outros gastos sociais.
Aqui no Brasil para isso foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal. É claro
que todo mundo quer que o setor público tenha responsabilidade fiscal, agora se
você for ler essa lei, você vê que ela privilegia o pagamento da dívida sobre
todos os outros pagamentos. Vamos supor que diante de uma calamidade no Estado o
governador escolha não pagar a dívida naquele mês, para atender as vítimas da
tal tragédia. Ele não tem essa opção. Se fizer isso, a Lei de Responsabilidade
Fiscal aplica o Código Penal, criminaliza o gestor público que não priorizar o
pagamento da dívida. Isso tudo é modus operandi do sistema da dívida. E é assim
no mundo inteiro.
Também
houve durante o governo Lula medidas provisórias privilegiando o pagamento da
dívida?
Em 2008, com a desculpa da crise. A medida provisória
(MP) dizia que toda a sobra no orçamento de qualquer rubrica que não for gasto
durante o ano, no final do ano pode passar o rodo e pagar a dívida. Por que não
tem uma norma assim para a educação? Tudo o que não for gasto, reverte no fim do
ano para a educação. Existe uma norma assim para a dívida. Foi a MP 435 e depois
a MP 450.
O poder econômico opera também na grande mídia. A
grande imprensa não publicou nem uma linha sobre a CPI da dívida. A maioria da
população não fica sabendo. Então o poder econômico atua principalmente no
modelo econômico, político, no sistema legal e na grande imprensa. Não é peixe
pequeno, não. Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia. É isso que
explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONU nos
classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano.
Quais
foram as principais constatações da CPI?
O primeiro mérito dessa CPI é o fato de ter sido
resultado da luta social. Segundo, a CPI permitiu o acesso a muitos documentos
que nós brasileiros nunca tivemos acesso. As constatações mais importantes foram
essas, como o fato de 80% da origem da dívida não ter sido explicada, mais de
90% da dívida ser com bancos privados internacionais, que o FMI nunca foi nosso
principal credor.
Que engodo foi o povo achar que quando a dívida com o
FMI foi paga, não havia mais dívida. A dívida com o FMI sempre teve dois preços:
o financeiro e o político. O preço financeiro sempre foi muito baixinho. Quando
o Lula pagou era 4% de juros ao ano. O FMI faz isso porque o preço político é
muito alto. Ele exige simplesmente acesso a todas as informações que ele quiser,
a tempo e a hora, e vincula essa ajuda econômica ao direito de indicar como vai
ser a política adotada pelo país, e monitorar tais medidas. Então o que o Lula
fez? Pagou a dívida financeira de 4% antecipadamente – e diga-se de passagem,
para pagar a dívida com o FMI foram emitidos títulos da dívida interna, que na
época pagavam juros de 19,3%. Então não pagamos a dívida. Ela meramente mudou de
mãos, deixamos de dever ao FMI para dever aos detentores dos títulos da dívida
interna.
Então financeiramente foi um dano. E politicamente: no
dia do pagamento ao FMI, o Palocci, que era ministro da Fazenda, publicou na
página do Ministério uma declaração formal. Uma carta dizendo que o pagamento
não significava a desvinculação ao inciso tal do estatuto do FMI, ou seja, todo
o direito do FMI de monitorar a economia, ter acesso aos dados, etc.,
prevalecia.
A partir de 2005, o tesouro nacional começou a
resgatar antecipadamente títulos da dívida externa, e pagando ágil. É
inacreditável, pagar uma conta antes do vencimento e ao invés de pedir desconto,
paga ágil.
Por
que o tesouro nacional pagou antecipadamente?
Conseguimos aprovar requerimento na CPI para perguntar
por quê. O que explica isso é o fato da dívida brasileira estar sendo regida
pelo Benchmark. É uma marcação de mercado. E um dos itens desse bendito
Benchmark é a satisfação do investidor. Então, o Brasil emitiu títulos da dívida
externa em dólar, quando o dólar valia R$4. Depois o dólar caiu para R$1,50. O
investidor que comprou esses títulos ficou frustrado. Então o Brasil resgatou
com ágil, para manter a satisfação do investidor. Tem condição? Isso foi uma das
importantes descobertas da CPI.
Outra importante descoberta: como são definidas as
taxas de juros Selic. São definidas pelo Banco Central não com base em fórmula
matemática ou qualquer processo científico, mas com base em reuniões realizadas
com especialistas do mercado financeiro que vão lá dizer a indicação do patamar
em que as taxas de juros deveriam estar para não significar um risco
inflacionário. Um tremendo conflito de interesses, porque quem se beneficia das
taxas de juros? Por isso no início da crise que as taxas começaram a subir
loucamente, você pensa “Peraí. Em período de recessão, de desaceleração, para
que subir juros? Qual o risco de inflação? Não tem nenhuma lógica”. E não tem
nenhuma lógica mesmo, o mercado financeiro queria compensar no tesouro perdas
nas operações de risco que estavam fazendo. É inacreditável.
Em
relação à crise econômica mundial, você acha que existe chance de o Brasil
seguir o mesmo caminho dos países europeus que estão quebrando? Existe uma
sensação geral de que a crise não nos afetou, não nos afetará. O que você espera
para 2013?
A crise já está aqui. Está aqui desde a década de 1980
e de certa forma, a gente vem se acostumando com todos esses planos de ajuste,
essas medidas de privilégio da dívida em detrimento ao social, com todo esse
desrespeito profundo ao cidadão que está financiando o Estado sem o devido
retorno.
Agora, esse último aspecto da crise que estourou em
2008 nos Estados Unidos e se transferiu para a Europa, tem fundamento
principalmente na extrema financeirização mundial. O que é isso? Os bancos
passaram a criar papéis a partir da década de 1990. Simplesmente criar os
chamados derivativos, que são meras apostas. E passaram a comercializar esses
derivativos no mundo inteiro, não tem limite. Isso entrou em colapso quando a
ganância foi grande demais, a especulação do mercado imobiliário norte-americano
grande demais, houve uma interrupção nessa corrente e caiu tudo, igual um
dominó.
Por que o Brasil não foi atingido no primeiríssimo
momento por essa crise específica? Porque aqui no Brasil as regras, inclusive do
funcionamento do mercado financeiro, não permitiam esse tipo de negociação. Além
disso, no mercado financeiro mundial se bancos do nível do Citibank, do
Barclays, do Chase, do Bank of America, etc., estavam oferecendo derivativos,
quem ia comprar derivativo dos bancos brasileiros? Então os bancos brasileiros
não estavam dependurados nessa onda dos derivativos, que foi a causa da crise lá
fora.
Por isso essa onda não nos atingiu tanto no primeiro
momento, mas atingiu. E atingiu inclusive empresas brasileiras como a Sadia, a
Aracruz, que tinham feito investimentos de alto risco nesses derivativos e foram
salvas pelo BNDES, o Luciano Coutinho confessa isso no livro dele. Bilhões de
reais foram repassados pelo BNDES a essas empresas. Além dessas empresas que
foram salvas, houve queda de arrecadação, fuga de capitais e uma série de
medidas com a desculpa da crise, inclusive aquelas MPs que eu
mencionei.
Bom, o que nos provoca desespero? A partir daí,
começaram a fazer modificações legais para permitir que os bancos brasileiros
atuem com derivativos e começamos a criar fundos financeiros para absorver
derivativos.
É
repetir o mesmo processo que aconteceu nos EUA?
Isso, é abrir os braços e pedir “crise, venha para
nós”. Isso aí provocou um impacto direto no oferecimento de crédito, porque
essas operações geram uma lucratividade tão grande – pensa bem, é vender papel
do nada – que com tantos recursos os bancos oferecem crédito. Está todo mundo
endividado, os próprios bancos estão empurrando crédito na sociedade.
Eu não tenho dúvida de que pode piorar muito. Mas acho
que vão deixar para estourar depois da copa e dos jogos olímpicos, para dizer
que foi a dívida desses mega eventos. Mas já estamos em recessão. Olha o
crescimento do PIB. Com muito boa vontade chegou a 1%. O que existe é muita
propaganda. Como é que o país está muito bem? Com esse estado de violência, com
essa decadência na saúde pública, na educação? Está bem para
quem?