terça-feira, 7 de maio de 2013

Déficits democráticos do Brasil

Artigo de José Eli da Veiga



"Incerteza sobre o desenvolvimento e obsolescência do pacto fordista só realçam o principal conflito contemporâneo: choque entre o ainda imprescindível, mas agora fugaz crescimento econômico, e a nova obrigação de maneirar seus impactos sobre a biosfera", escreve José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP – IRI/USP e do Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPÊ em artigo publicado no jornal Valor, 26-03-2013.

Segundo ele, "além de exigir muita governança global (pois mudança climática, erosão de biodiversidade e zonas oceânicas mortas por excesso de nitrogênio não são questões que possam ser combatidas com medidas unilaterais), esse é um desafio que demanda inédita simbiose entre movimentos sociais e projetos políticos".
Eis o artigo.
As pesquisas ainda não revelam, mas tende a ser alta a probabilidade de segundo turno disputado por Eduardo Campos. Nesse caso, ele contará com o grosso dos que tiverem preferido Aécio. Outros cenários são possíveis, mas foi esse o que antecipou a campanha eleitoral, pois é o que embute maior incerteza sobre reeleição. E é esse que leva Dilma a já fazer o diabo no uso das vantagens advindas do controle da máquina federal.

Ao contrário do que não cansam de repetir os mais prejudicados e muitos analistas, o problema não está na antecipação da campanha em si, mas na injustiça imposta pelo arranjo que regula o processo. Se no Brasil houvesse algo semelhante às primárias dos EUA, esses quase dois anos de cam panha seriam extremamente saudáveis. Porém, com a radical exclusão da cidadania na montagem dos palanques, as movimentações dos três principais pretendentes só mostram quanto o Brasil está distante da plenitude democrática.

Ainda pior é a barreira à viabilização de propostas novas, que superem a limitação programática desses três candidatos, muito diferentes no âmbito sócio-geográfico, mas nem um pouco em termos político-históricos. São três artilheiros da socialdemocracia baseados em diversas combinações de camadas sociais e estamentos regionais, mas que só divergem sobre o modo de usar o aparelho estatal na execução de idêntico projeto.

Essa preponderância orgânica do projeto socialdemocrata se justifica pela incomparável proeza histórica que realizou nas nações que mais avançaram. Tão intensa foi a expansão da capacidade produtiva decorrente da simbiose entre movimentos trabalhistas e projetos políticos semelha ntes aos do PT, PSB e PSDB, que boa parte dos seres humanos passou do reino da necessidade ao da afluência, com educação, cultura e opções de vida e escolhas antes inimagináveis. O "Estado de bem-estar social" foi a grande conquista da socialdemocracia, que infelizmente não chegou a beneficiar a grande maioria dos que vivem no Sul.

O problema é que eventual continuidade do mesmo esquema agora esbarra em dois novos obstáculos. Por um lado, ficou patente nas últimas três ou quatro décadas que tão retumbante sucesso passou a solapar os próprios fundamentos biogeofísicos da prosperidade, o que traz muitas dúvidas sobre o futuro do desenvolvimento humano, mesmo nas mais sólidas e ricas democracias do primeiro mundo.

Por outro, também ficou evidente que estão obsoletos os arranjos que haviam garantido recordes de aumento da produtividade, particularmente durante o quarto de século apelidad o de "Era de Ouro" (1948-73), mesmo que ainda possam encontrar sobrevida em democracias periféricas que se tornem emergentes, como o Brasil.

Incerteza sobre o desenvolvimento e obsolescência do pacto fordista só realçam o principal conflito contemporâneo: choque entre o ainda imprescindível, mas agora fugaz crescimento econômico, e a nova obrigação de maneirar seus impactos sobre a biosfera. Além de exigir muita governança global (pois mudança climática, erosão de biodiversidade e zonas oceânicas mortas por excesso de nitrogênio não são questões que possam ser combatidas com medidas unilaterais), esse é um desafio que demanda inédita simbiose entre movimentos sociais e projetos políticos.

O primeiro sintoma do incontornável imperativo histórico de superar o programa socialdemocrata foi o surgimento de agremiações políticas diferenciadas, como o neozelandês The Values Party em 1972, e o britânico Peop le em 1973. Iniciativas que anos depois embarcaram no projeto "verde", seduzidas pelo fenômeno alemão Die Grünen. Todavia, embora agora existam 109 partidos nacionais pertencentes a essa corrente (globalgreens.org), apenas os verdes alemães parecem ter alguma relação simbiótica com movimentos sociais. Todos os demais se meteram no gueto dos que enaltecem valores "pós-materialistas", com perdão pelo uso de tão canhestro jargão sociológico.

A boa notícia é que a mesma ambição de superar a socialdemocracia renasce em iniciativas como o Partido del Futuro na Espanha, e o Movimento 5 Stelle na Itália. Talvez uma segunda onda, desta vez centrada em dimensão da sustentabilidade que é bem mais tangível para a maioria dos cidadãos: a do efetivo funcionamento da democracia. Em vez de caírem na cilada dos que se deixaram reduzir à dimensão ambiental - por mais importante que ela inegavelmente seja - o que esses dois novos partidos mais exigem é democracia de verdade, democracia para valer, ou "democracia, ponto", como dizem os espanhóis.

Quase idêntico ao que surgiu por aqui com a iniciativa de criação da Rede Sustentabilidade, respaldada por substancial parcela de eleitores, como mostrou a votação de Marina Silva (mas não a do PV) em 2010, e reiteram as recentes pesquisas sobre intenções de voto.

Por isso, também só pode ser profundamente antidemocrática qualquer atitude que dificulte a consolidação dessa novidade política que poderá ser equivalente neste século ao que foi a socialdemocracia no século passado.