Não é por acaso que, em uma de sua primeiras obras, A Filosofia do Dinheiro (1900), o leitmotif central é a preponderância crescente da quantidade sobre a qualidade, a tendência a dissolver esta naquela, e a substituir tudo o que for determinação específica, individual, qualitativa, pela simples determinação numérica – tendência da qual a dominação cada vez mais esmagadora do dinheiro sobre a vida social é a expressão mais tocante. Graças a esta venalidade universal, não somente todos os objetos, mas também os valores em princípio não quantificáveis, como a honra e a convicção, o talento e a virtude, a beleza e a saúde da alma, se tornam mercadorias, adquirem um “preço de mercado”. A prostituição é a forma suprema desta mercantilização dos valores humanos, forma que manifesta em seu ser a natureza fundamental do dinheiro, sua fria impessoalidade, sua redução do ser humano à condição de simples meio. (2)
O capitalismo, sublinha Simmel, é fundado sobre a transformação do trabalho humeno em mercadoria, em objeto que se opõe ao trabalhador, que se tornou estranho a ele, e que tem suas próprias leis de movimento. Todo o universo da produção capitalista aparece como um cosmos regido por leis internas independentes dos indivíduos e de sua vontade. Estas análises lembram evidentemente a problemática marxista do fetichismo da mercadoria, mas a diferença é que, para Simmel, o fenômeno estudado por Marx não é mais do que “um caso particular” daquilo que constitui a “tragédia da cultura”: a alienação da cultura objetiva em relação à cultura subjetiva, o avanço da cultura das coisas e o declínio da cultura das pessoas (3). Por esse viés, a análise econômica concreta, historicamente determinada, de Marx, é metamorfoseada, ou antes dissolvida em uma visão de mundo trágica, uma psicossociologia a-histórica, uma filosofia da cultura de tendência profundamente metafísica. (4)
Não se pode falar de visão trágica de caráter metafísico sem se referir imediatamente ao poeta e dramaturgo Paul Ernst, que manteve contatos com Simmel entre 1895-1897, e ao qual Lukács vai dedicar em 1910 seu célebre ensaio “Metafísica da Tragédia” (publicado em A Alma e as Formas).
Paul Ernst
Paralelamente às tragédias neo-clássicas sobre temas medievais (Canossa, 1907) ou teutônicas (Brunhild, 1908), que chamaram a atenção e a simpati de Lukács, Paul Ernst escreveu um grande número de ensaios estéticos e literários nos quais se desenvolve toda a problemática romântica anticapitalista: a decomposição dos valores comunitários, a despersonalização e a mecanização crescente da sociedade moderna etc.(5). O tema centra é ainda uma vez a oposição Kultur/Zivilisation:
“Devemos libertar-nos da ligação entre nossas concepções de cultura e as conquistas da civilização. Os bárbaros podem utilizar a eletricidade e navegar no ar; mas somente os homens cultos (Gebieldete) têm sentimentos profundos e pensamentos elevados. A ciência, também, encontra-se atualmente submetida ao compasso da economia. Porém, não é o homem da economia que pode decidir se um povo tem cultura ou não, mas o poeta e o sacerdorte.”
A eviolução ideológica de Paul Ernst desde o fim do século XIX até sua morte (1933) é um intinerário estranho, mas bastante característico das ambigüidades do radicalismo anticapitalista dos intelectuais alemães deste período: e, em 1888, adere ao Partido Social-Democrata e trava uma correspondência político-literária com Friedrich Engels (cuja carta a Paul Ernst de 5 de junho de 1890 sobre a sociologia das obras de Ibsen é célebre); em 1891 adere a uma ala esquerda, semi-anarquista, do PSD alemão conhecida como die Jünger (“os jovens”), composta sobretudo de intelectuais (“uma revolta de estudantes e de literatos”, escreverá Engels) e acaba por deixar o Partido (6). Em 1892, colabora com o “socialista agrário” Rudolf Mayer na redação de uma obra intitulada Der Kapitalismus fin de siécle, mas deixa logo a política para se dedicar às suas atividades literárias. Entre 1908-1911 escreve suas tragédias neoclássicas e faz amizade com Lukács, mantendo com ele uma rica correspondência de 1911 a 1926. Enfim, depois de 1917, encaminha-se mais e mais para uma ideologia político-literária nacionalista e ultraconservadora, da qual a expressão acabada é a obra Kaiserbuch (1923-1928), um hino à glória do Reich alemão na Idade Média (7).
Entretanto, mesmo em sua fase reacionária, o anticapitalismo permanece no centro do pensamento de Paul Ernst; em um ensaio redigido em 1926, ele olha com nostalgia o mundo “orgânico” destruído pelo capitalismo e pela indústria, e denuncia o universo dominado pelo capital como uma “barbárie absurda” (sinnlose Barbarei).
É interessante notar que em 1926 (ou 1927), Lukács escreveu-lhe uma carta a propósito deste artigo, a última de sua correspondência, na qual o militante bolchevique encontra ainda um terreno comum com o poeta conservador:
“qualquer que seja a divergência entre nossas concepções, há uma possibilidade de discussão, se ao menos nós valorizamos o capitalismo de maneira semelhante. Penso que você está errado sobre praticamente todas as questões, mas, pelo menos, não está do outro lado da barricada.”
Notas
1 Lukács, em artigo à memória de Simmel, escrito em 1919, rende-lhe ardorosa homenagem: “Era tão excessivamente atraente para aqueles que estavam, em verdade, filosoficamente inclinados à nova geração, que quase não há quem não tenha estado submetido, durante mais ou menos longo tempo, à magia de seu pensamento”. Gyorgy Lukács, “Georg Simmel”, in Pester Loyd, n. 230, 2 de outubro de 1918.
2 Georg Simmel, Philosophie des Geldes, 1920, p.414: “Sente-se na própria essência do dinheiro algo da essência da prostituição. A indiferença com que se presta a qualquer uso; a infidelidade com que se separa de cada sujeito, porque não está verdadeiramente ligado a nenhum; a objetividade que exclui todo sentimento que lhe é próprio para ser um simples meio, tudo isto suscita uma fatal analogia entre ele e a prostituição.”
3 Este tema está desenvolvido sobretudo em importante artigo de Simmel de 1912, “Der Begriff und die Tragödie der Kultur”, in Logos, t.II, 1911-1912., p.20: “O caráter fetichista que Marx atribui aos objetos econômicos na época da produção mercantil, não é mais que um caso especialmente modificado do destino universal de nossos conteúdos culturais. Tais conteúdos estão submetidos a um paradoxo: são criados por sujeitos e destinados a sujeitos, mas continuam sob a forma transitória da objetividade..., uma lógica de desenvolvimento imanente, que os aliena em sua origem e em seu fim...Esta é a verdadeira tragédia da cultura...Designamos como uma fatalidade trágica o seguinte fato: que as forças destruidoras dirigidas contra um ser nascem precisamente do fundo do mesmo ser.”
4 O próprio Simmel definiu explicitamente sua relação metodológica com o marxismo no prefácio de Philosophie dês Geldes: “Construir por baixo do marxismo um fundamento (Stockwerk) que conserve o valor explicativo da compreensão da vida econômica entre as causas da cultura espiritual, mas que reconheça nessas mesmas formas econômicas o resultado de valorações e correntes mais profundas, de pressuposições psicológicas e até metafísicas.”
5 “Quando Schiller escrevia seus poemas, ninguém sabia nada sobre o atual estado de aburguesamento e mecanização do mundo; mas Schiller havia-os pressentido...”
6 Entre esses literatos figurava o notável escritor anarco-utopista Gustav Landauer, futuro dirigente da República dos Conselhos da Baviera, assassinado pela contra-revolução em 1919.
7 É curioso que Lukács, que em sua Brève Histoire de la Litterature Allemande (1944) distribui generosamente, à esquerda e à direita, o qualificativo de “precursor do fascismo” (por exemplo, a Reiner Maria Rilke etc), evite cuidadosamente mencionar Pau Ernst: é por esquecimento, mortificação ou indulgência para com o velho amigo ?
Fonte: Michel Löwy, "Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários" - pags. 35-39