terça-feira, 12 de junho de 2007

Gurdjieff : Relatos de Belzebu a seus Netos

Uma explicação simples acerca da ideologia:

“- Por favor, querido bem amado avô, explique-me um pouco: como é que estes seres do planeta Terra tomam o efêmero pelo real ?
À pergunta de seu neto, Belzebu respondeu:
- Esta particularidade de seu psiquismo, meu filho, apareceu somente durante os últimos períodos. E isto porque (...) crêem em tudo o que lhes dizem, em vez de crer somente naquilo que eles mesmos poderiam conhecer por judiciosas reflexões; em outros termos, aquilo de que poderiam se convencer pelos resultados de um “debate confrontativo” entre todos os dados já depositados neles (...). Em geral, uma noção nova só se cristaliza na presença desses estranhos seres quando um certo “Senhor Silva” emite sobre alguém ou sobre alguma coisa tal ou qual opinião. E se um “Senhor Souza” fala disso, por sua vez, da mesma maneira, então eles ficam definitivamente persuadidos de que é assim e de que não poderia ser de outra maneira.(...) [Essa estória] prova que neles não se cristaliza jamais convicções “esserais” subjetivas que sejam fruto de sua própria reflexão lógica, mas unicamente “convicções esserais” que dependem da opinião de outros.(...) Eles disso se tornaram culpados por si mesmos, ao estabelecer pouco a pouco condições anormais de existência esseral exterior, que acabaram por formar em sua presença geral o que é hoje seu “deus interior maléfico” e que tem o nome de “auto-tranquilizador”.”
(in "Relatos de Belzebu a seu Neto - Do Todo e de Tudo", G.I.Gurdjieff, Cap. XIII:"Por que, na razão do homem, o imaginário pode ser percebido como real"

Psicanálise aplicada ao estudo da ideologia

Reproduzo abaixo um importante texto acerca da pertinência em se aplicar conceitos psicanalíticos ao estudo da cultura, em especial ao estudo da ideologia. Inserindo-se nesse antigo debate, o texto abaixo, embora um pouco esquemático, pode servir de "roteiro" para o aprofundamento da discussão, trazendo também uma valiosa indicação bibliográfica.

A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica

Miriam Debieux Rosa

Professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e professora titular na Faculdade de Psicologia da PUC-SP.
Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP e PUC-SP.

RESUMO

O presente trabalho pretende fundamentar pesquisas que têm por objetivo desvendar a relação sujeito e fenômenos sócio-culturais e políticos, abordar as mudanças e os impasses da subjetivação na atualidade e estudar os fenômenos sociais. A exposição passa pela problematização da Psicanálise em extensão ou extramuros, que aborda, por via da ética e das concepções da psicanálise, problemáticas que se referem à prática psicanalítica referente aosujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico. Este é um tipo de pesquisa da Psicanálise iniciado por Freud e por ele nomeado de psicanálise aplicada, campo de várias discussões e impasses. Apresentamos as principais dificuldades da área e sua pertinência teórica e conceitual, com base em várias abordagens e dispositivos de análise da articulação sujeito e sociedade propostos por Freud e Lacan, assim como por autores contemporâneos. Discutimos questões metodológicas da pesquisa psicanalítica que inclui inconsciente e interpretação. Por fim, debatemos a indissociabilidade entre pesquisa e intervenção quando se trata de psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise; fenômenos sociais; pesquisa psicanalítica; método psicanalítico; dispositivos psicanalíticos

O presente trabalho pretende apresentar uma contribuição da pesquisa em psicanálise para desvendar a relação sujeito e fenômenos sócio-culturais e políticos. A exposição problematiza a psicanálise extramuros ou em extensão, e propõe dispositivos de análise necessários à fundamentação desse tipo de pesquisa.
A Psicanálise extramuros ou em extensão diz respeito a uma abordagem – por via da ética e das concepções da psicanálise – de problemáticas que envolvem uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico. Consideramos que esse tipo de pesquisa da Psicanálise – iniciado por Freud e por ele nomeado psicanálise aplicada – projeta um campo que vem se tornando palco de várias discussões e impasses. Nota-se que houve um desvio sistemático em enfrentar as dificuldades e possibilidades da Psicanálise extramuros e várias das críticas a ela dirigidas merecem reflexão, uma vez que apontam problemas a serem enfrentados nesse tipo de prática. Neste trabalho, concentro-me em duas delas. A primeira refere-se à prática da aplicação de concepções teóricas e metodológicas a objetos externos ao campo em que foram criados: o campo das descobertas freudianas. A segunda dificuldade é levantada pelo próprio método, uma vez que a psicanálise freudiana não propõe um método a que todos os casos poderiam ser submetidos. Uma das conseqüências problemáticas mais indicadas no caso da aplicação é a generalização, que projeta uma identidade indevida entre o individual e o coletivo. A psicanálise tem como premissa a superação do discurso produzido pela consciência; que é um campo de saber sustentado pela verdade do sujeito, o que não gera certezas ou generalização; e que considera que, no campo de investigação, o pesquisador sofre também os efeitos das descobertas, entre outras questões. Nesse tipo de pesquisa, teme-se incorrer seja na descaracterização e abrangência imprópria dos conceitos – que acarretaria uma psicologização dos fenômenos – seja em abstrações generalizantes, indicativas da fragilidade epistemológica dessa área de pesquisa. Quando entramos no campo do método, outro grupo de questões se põe em cena: a interpretação seria aplicada a material que não provém do inconsciente, visto que não resulta da associação livre, o próprio método de investigação da psicanálise. Como conseqüência, fica comprometida a legitimidade da interpretação, chamada por alguns de selvagem, porque é realizada fora do enquadre cênico que a legitima e fora do momento oportuno, o tempo que escande as sessões. Por fim, questiona-se o seu estatuto como prática da psicanálise, dado que tais pesquisas não engendrariam nenhum efeito ou remanejamento psíquico por parte dos sujeitos envolvidos.
As dificuldades apontadas nos levam a refletir sobre o enquadre necessário para produzir teses, descobertas, “invenções” em psicanálise. Este trabalho pretende arrolar brevemente algumas idéias sobre os problemas destacados, indicando-lhes direções de respostas. Ressaltamos que, sem dúvida, o enfrentamento de novos problemas necessita de uma certa afinação, refinação dos conceitos psicanalíticos, e de uma busca de dispositivos de análise de que seja possível lançar mão na articulação entre sujeito e sociedade.

A “aplicação” da crítica: Psicanálise e/ ou Sociedade?

Como ponto de partida, assumimos que a chamada fragilidade epistemológica na utilização de concepções teóricas e metodológicas aplicadas a objetos externos ao campo em que foram criados pode revelar uma certa carência de fundamentos. É Freud quem primeiro lança a questão, e a trajetória de sua obra, atravessando praticamente todos os campos do saber, é testemunha irrefutável da possibilidade
de uma psicanálise em extensão. É por intermédio de Lacan, contudo, que essa questão é trazida a público, e vamos fazer uso de suas balizas, acrescentando também outros autores, para esboçar um mapa provisório desse campo “extracampos”. Apesar da ênfase dada à Psicanálise como teoria e técnica de tratamento, Freud faz uso recorrente da análise de fenômenos coletivos para compreender processos individuais, além de afirmar textualmente que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, social. Ressaltem-se os seus estudos sobre neurose obsessiva e as relações que estabelece com a religião e os vários textos de sua obra ditos sociais, dos quais destacamos alguns.
Em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), texto fundamental para discutir a entrada do sujeito na cena social, Freud utiliza as idéias de Introdução ao narcisismo (1914) e do Luto e melancolia (1916), para discutir a elaboração do luto articulada à identificação e a transferência do investimento libidinal para outros objetos. Freud recusa a divisão indivíduo-sociedade, a divisão psicologia individual-social, e afirma uma concepção bio-psico-social. Ele demonstra as modificações psíquicas que a influência das instituições impõem ao indivíduo e considera que a entrada na vida social impõe modificações ao sujeito.
No capítulo VII do texto de 1921 – um dos mais importantes sobre o assunto, e sistematicamente destacado desse contexto – a identificação, um fenômeno habitualmente tomado como individual, é trabalhada de forma integrada à formação do ideal do eu e ao funcionamento do sujeito nos grupos e instituições. Apresenta o sintoma compartilhado, que pode ser considerado como precursor do
sintoma social, que fornece a base das identificações histéricas na instituição de moças, fornecendo reforço narcísico de cada uma e do grupo, assim como referenciais para as identificações imaginárias mútuas. Freud assim se expressa: “algumas de suas amigas (...) pegarão a crise, assim por dizer, através de uma infecção mental, e sofrerão, por sua vez, um ataque igual” (Freud, 1921/1972a, p. 135).
Ou seja, refere-se a construções de ideais, que articulam narcisismo e sociedade, e referências que articulam o sujeito no laço social, inserindo-o em todos os âmbitos da cena social. Indica que novas operações se processam no bojo dos enunciados sociais, operações de construção de lugares que indicam a qualidade de pertencimento e reconhecimento do sujeito como membro da sociedade e que dependem das formas, condições e estratégias oferecidas por esse grupo – trata-se de análise política de atribuição de lugares sociais.
Em Mal Estar na Civilização (1929). Freud retoma questões narcísicas e institucionais, visando a relacionar a constituição psíquica e formas de enlaçamentos sociais. Demonstra que a cultura refere-se ao saber e poder que os homens adquiriram para dominar as forças da natureza e adquirir bens para satisfação das necessidades humanas. Com a função de suprir as aspirações humanas de ser protegido e consolado – cuidar do desamparo infantil; constrói organizações que regulamentam a relação dos homens entre si e a repartição dos bens por intermédio de seus dois aspectos: superegóico, com interdições renovadas, narcísico, buscando suprir tais satisfações, baseadas na afirmação de ideais diferenciadores de outras culturas. Nas lacunas desse processo, oferece ilusões.
Mais além das ilusões, o texto do Mal Estar traz o prenúncio de uma civilização violenta e destruidora, e demonstra que o próprio processo civilizador é o agente do fim da espécie humana, visto que a pulsão de morte domina a cultura. Há substituição do poder do indivíduo pela comunidade não por meio de relações de força, mas codificadas em lugares, obrigações e deveres; as proibições não levam em conta o que o homem é capaz de suportar. Assim, o domínio da natureza desencadeia a pulsão de destruição, o desejo narcísico de onipotência, da possibilidade de destruir todos os homens, propiciando mais violência entre eles e gerando inquietação. Para impedir violência generalizada desencadeia-se a culpa. A crueldade do superego passa a ser substituída pela crueldade das instituições que oprimem com coação direta. Nesse ponto, Freud antecede Lacan. Afirmando que quando as estruturas sociais deixam de ser simbólicas revelam suas regras nas expressões encarnadas de seu representantes.
Além disto, a Psicanálise aplicada tornou-se ramo da atividade psicanalítica, como bem lembra Michel Plon (1999) no artigo A face oculta da análise leiga. Em 1907, o autor dedica a coleção, Escritos de Psicanálise Aplicada, à publicação de alguns trabalhos como Gradiva e Uma lembrança de Leonardo da Vinci. Em 1911, é criada outra revista abordando o tema, a Imago, que contém os textos Totem e tabu e Moisés de Michelangelo.
Destacamos esses momentos, entre outros da obra de Freud, para demonstrar que a articulação entre sujeito e sociedade faz parte da trama teórica e clínica da psicanálise, e consideramos com Plon que, apesar das oscilações de Freud quanto à pertinência dessas análises, ele visava, de um lado, desenvolver pontos obscuros em sua teoria e, de outro, testemunhar o seu conhecimento da irredutibilidade epistemológica da Psicanálise a outras ciências, mas também com a finalidade de evitar restringir o seu alcance, ou seja, caminhando na direção oposta das críticas. Recordemos que Freud pensava a psicanálise segundo três aspectos: um método de investigação do inconsciente, uma teoria e técnica de tratamento, mas também um corpo teórico que sistematiza os modos de funcionamento humano, tanto normal como patológico. Um exemplo ilustrativo de que Freud não pretendeu confinar a Psicanálise ao campo da Psicologia Clínica, ou apenas como um tratamento psicoterapêutico, é a frase a ele atribuída quando em viagem aos Estados Unidos: (eles não sabem que) estamos levando a peste. Se fosse uma referência ao tratamento psicanalítico, o que a Psicanálise traria de subversão, de peste? Freud incluiu na construção da psicanálise a investigação dos fenômenos sócio-culturais e políticos. Pretendia desvelar as ilusões presentes na sociedade americana; pretendia contribuir e mesmo conturbar os campos de conhecimento das ciências humanas e sociais e a análise dos fenômenos sociais. Mas não foi o que ocorreu, como demonstra, mais tarde, J. Lacan.
A proposta psicanalítica é retomada por Lacan nos anos 50, que critica a direção dada a seus conceitos, teoria e prática. Quando expulso da Sociedade de Psicanálise francesa em 1964 é acolhido por Althusser, na Escola Normal, onde passa a apresentar seus seminários fora, portanto, do meio psicanalítico. É de então o artigo “Freud e Lacan”, de Althusser, considerado por Evangelista, “antes de mais nada, um texto de luta teórica, um ato político”(Evangelista, 1991, p. 11). Foi escrito para os membros do Partido Comunista Francês, com o objetivo de recusar o que ele chama de camada ideológica de exploração reacionária da psicanálise, e instando o reconhecimento da cientificidade da Psicanálise, oficialmente condenada pelo partido, nos anos 50, como uma ideologia reacionária. Nesse texto, ela alerta para os desvios ocorridos, afirmando que a psicanálise é diferente dos psicanalistas (p. 48). Althusser (1991, p. 71) salienta alguns problemas em aberto: como entender, ao mesmo tempo, a aceitação da teoria freudiana, da tradição didática e do corporativismo das sociedades de psicanálise? Em que medida as origens históricas e condições sócio-econômicas do exercício da Psicanálise não repercutem na teoria e na técnica?
Em que medida o silêncio – recalcamento teórico – com relação a esses problemas não afeta a teoria e prática da psicanálise? Em 1965, na Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan distingue psicanálise como intensão e extensão. A primeira, a doutrina; a segunda, a prática e o recenseamento do campo freudiano, em que inclui a articulação da clínica com ciências afins, incluindo aquilo que do estruturalismo em certas ciências, pode lançar luz sobre a psicanálise (Plon, 1999). Coloca a psicanálise em extensão na dependência da psicanálise em intensão para diferenciá-la de uma sociologia quantitativa. “Repensa a ordem institucional em função de uma primazia atribuída à ordem teórica. E esta ordem teórica ele a deduz da experiência do tratamento enquanto passagem pela castração e pelo mito edipiano”, aponta Roudinesco (1994, p. 476), indicando que a direção para lidar com os eventos sociopolíticos envolve o modo de intricação teoria-prática próprio da psicanálise, gerando uma produção diferenciada da sociologia quantitativa e contribuindo com algo mais próximo à crítica social. Nessa direção, a autora destaca três dispositivos para sua
crítica da sociedade, distribuídos nos registros do simbólico, imaginário e real: o mito edipiano, como o fundador das sociedades modernas; a função da identificação, como presente na Psicologia das Massas e problema para a formação das sociedades de psicanálise; e, por fim, neste século, o advento do sujeito da ciência, fenômeno fundamental, segundo Lacan, cuja irrupção foi mostrada no nazismo. (Roudinesco, 1994, p. 478) Além, de recorrer à Lingüística e à Antropologia, em 1968, Lacan escreve o Seminário 16 - De um Outro ao outro, não publicado, articulando seus conceitos com o pensamento de K. Marx.
Explicita uma homologia entre o conceito de mais de gozar e a mais valia, e sugere a substituição da energética freudiana pela economia política: “em lugar de uma energética de Freud, ponho a economia política”; e afirma ainda: “a dimensão histórica, tal qual presente no materialismo histórico, me parece estritamente conforme as exigências estruturais” (Lacan, 1968 , p.6). O encontro de J. Lacan com essa, leva-o a indicar, no Seminário RSI (1974-1975/1976), K. Marx como o inventor do sintoma. Ele utiliza sua obra em três problemas: o sintoma, relacionado com o fetichismo da mercadoria; o discurso (as relações sociais geradas pelo sistema de produção capitalista), e o gozo (a mais valia). Recentemente, foi Slavoj Zizek (1991) que salientou e discutiu essa articulação; a maioria dos psicanalistas tendo por longo tempo se referido à Psicanálise como tratamento, identificando seu campo unicamente como o campo da psicopatologia.
Logo, as relações com as ciências afins, assim como a articulação entre o sujeito e o campo sociopolítico, ocorreu tanto em Freud como em Lacan, possibilitando tomar a pesquisa de psicanálise em extensão como um dos campos da Psicanálise, dispondo de dispositivos e metodologia para tal tarefa.

Dispositivos de análise da articulação sujeito e sociedade

A característica fundamental da pesquisa psicanalítica nos remete, mais do que ao tema, ao modo de formular as questões. Vejamos mais detalhadamente como alguns autores o fazem. Althusser (1964/1991) considera que cabe à psicanálise elucidar alguns problemas na articulação sujeito e sociedade: pensar a relação da estrutura formal da linguagem com as estruturas concretas de parentesco, as formações ideológicas em que são vividas as funções específicas (paternidade, maternidade, infância); pergunta-se sobre a variação histórica dessas estruturas e como podem afetar a subjetividade – pergunta bastante atual. Pergunta-se também sobre quais as relações da psicanálise com sua condição de aparecimento histórico e quais as suas condições sociais de aplicação.
Birman (1994) afirma que algumas temáticas de outras disciplinas, como o poder, a crença, o valor, a ética, a violência, a cientificidade, assumem certa singularidade quando se lhes imprime um recorte psicanalítico “que retoma estes temas a partir do lugar da função sujeito em psicanálise”. Exemplifica vários pontos, dos quais destacamos a leitura pulsional do poder, “recorte que remete para a oposição guerra e política, entre força e retórica, de maneira a buscar com estas equivalências um diálogo possível da psicanálise com a filosofia política” (p. 10).
Outros temas são também indicados por Plon (1999). Para esse autor, a psicanálise extramuros ou aplicada, como prefere, pode isolar os elementos da subjetividade empregados nas práticas sociais e esclarecer o que dessas práticas enriquece o conhecimento das engrenagens da subjetividade (alemães no nazismo). No campo dos processos políticos, sugere a investigação dos modos de relação transferencial e organização pulsional utilizados para governar; modos de evitação da castração a serviço da boa gestão empresarial. A análise poderá ser feita, também, de acordo com Lacan, pela vertente dos discursos, que produzem uma certa forma de laço social, articulando-os à especificidade do fenômeno, suas
determinações e seus efeitos subjetivos e intersubjetivos. Em Lacan, os laços sociais são laços discursivos; as relações de linguagem entre as pessoas definem as maneiras diferentes de distribuição de gozo. O discurso, um discurso sem palavras mas não sem linguagem, dá conta das relações intersubjetivas. Essas relações constituem-se a partir da circulação de certos elementos que, ao transitarem por diferentes lugares, produzem laços sociais específicos e promovem diferentes efeitos ou sintomas. O sintoma social (Askofasré, 1997) é tese construída aos poucos até RSI, Seminário 22, em 1974/1975. No início dos anos 70, Lacan muda de posição em relação ao sintoma: no Seminário 17, já reelaborando o anterior, o sintoma é referido ao discurso do mestre, como objeção
ao desejo do mestre, desejo de que as coisas funcionem; relaciona discurso do mestre com discurso do inconsciente, esse saber que não pensa, não calcula ou julga, enfim, o trabalhador ideal, e a greve é o paradigma do sintoma, de sinal do que não vai bem no campo do real. Se o real não vai bem, isso impede que as coisas andem, trava a marcha, contraria o desejo do mestre e detém a produção do mais-de-gozar, causa do desejo do capitalista. O que Lacan introduziu como sintoma social não é oposto ao sintoma particular, com uma psicologia individual e outra coletiva; não há relação com uma patologia social, mas descreve uma forma de laço social característica do capitalismo. Diferencia o sintoma social dos sintomas que aparecem no campo social, os fenômenos sociais. O termo sintoma social é polêmico e utilizado de modos diferentes entre os autores. Melman (1992) considera que o sintoma social pode ser concebido como aquilo que está inscrito nas entrelinhas do discurso dominante de uma sociedade em dada época.
Octavio Souza (1991) o considera como aquele que é sustentado por uma fantasia por meio da qual se denota o modo como os sujeitos controlam os ideais, buscando manter distante a castração. É sintoma social, uma vez que, apesar de a fantasia ser a mesma, os sujeitos ocupam vários lugares em sua estruturação. Jorge Volnovich (1993) não adjetiva o sintoma como social mas destaca seu estatuto de mensagem da conflitiva individual, familiar e sócio-política- institucional, mostrando como o sintoma tende a tomar a forma da cultura a que pertence; sintomas refletem uma organização subjetiva que contém uma mensagem e sinaliza processos sociais e particulares de sua forma de advir como sujeito. Um dispositivo útil para a análise da articulação da construção da subjetividade aos laços sociais possíveis em dados grupos sociais é destacar o que os enunciados e a enunciação presentes na cena social sobre referentes fundamentais da organização social e psíquica elucidam sobre o imaginário dos grupos sociais, que atribuem lugares específicos ao sujeito. O imaginário social é, segundo Castorialis (1988), o conjunto de significações, normas e lógicas (dinheiro, sexo, homem, mulher, criança, etc) que determinam o lugar concreto que os indivíduos ocupam na sociedade. Esse conceito permite superar o de ideologia, na medida em que este último, ao definir crenças, também atribui um caráter falso às mesmas, enquanto o imaginário social envolve na própria definição sua índole de criação real e, ao mesmo tempo, de lugar de entrecruzamentos de ideais, cuja substância é tanto histórico-social como político-libidinal. Tais lugares permitem hipotetizar de que forma tais “realidades” interferem no sujeito ou fenômeno em questão. Ressalta-se a idéia de que é a partir de uma certa concepção de lei, paternidade, sexualidade e domínio que alguns são considerados ou excluídos como sujeito humanos, e podem ter acesso à escuta, à palavra, ao gozo, à cidadania (Rosa, 2000). Outro dispositivo é a análise das ilusões contemporâneas, referidas ao contexto de organização social atual, regido pelo discurso neoliberal.
Finalmente, o inconsciente freudiano é incompatível com a ilusão do individual, da autonomia e da independência no homem, uma vez que afirma a dependência simbólica do desejo do Outro, explicitada na forma como teoriza a constituição do sujeito através do processo edípico. Desta forma, constata-se que, se na análise do sintoma deve-se escutar o não-dito do discurso sujeitos, cabe acrescentar a força de determinação dos não-ditos dos enunciados sociais .
Nota-se que a crítica de que a Psicanálise está indo além de seu campo de origem refere-se muito mais a uma direção tomada pelo movimento psicanalítico do que a uma proposta imprópria ou externa a esse campo. Inúmeros são os modos como se pode desenvolver, dentro dos fundamentos éticos e teóricos da psicanálise, uma investigação dos fenômenos sociais, contribuindo para a elucidação de sua eficácia no processo de alienação do sujeito e apontando os laços que possibilitem a sua inclusão como sujeitos do desejo.

Inconsciente e interpretação: o método na pesquisa psicanalítica

Vamos ao segundo grupo de críticas que se referem à impertinência da interpretação fora do tratamento psicanalítico, assim como a seu distanciamento do inconsciente, pondo em dúvida a consistência epistemológica da Psicanálise nesse campo. Quanto à suposta fragilidade epistemológica da Psicanálise, tomamos a inversão que faz J. Lacan (1969-1970/1992a), no Seminário XI, quando inverte a questão A Psicanálise é uma ciência? para a questão O que é uma ciência que inclui a Psicanálise? Destacando uma nova postura epistemológica. Freud considerou impróprias as categorias de racionalidade e objetividade para a compreensão do homem, uma vez que este vive por meio do mundo simbólico da linguagem. Inventou, então, um procedimento para desvelar o sentido da palavra do homem, e dar-lhe voz.
O tratamento psicanalítico destaca a escuta do inconsciente, opera na transferência, com as associações do sujeito; escuta os efeitos do inconsciente, tanto no sujeito, como nos laços que produz, para a produção do saber inconsciente na transferência. Freud inventou um procedimento para que a verdade falasse: revelar os processos inconscientes que produzem os sintomas (realização do desejo), sustentados por uma fantasia, propondo, portanto, a reconstrução da fantasia inconsciente. Freud construiu conhecimento a partir dos impasses da clínica, formulando seu método – como quando chamou os efeitos de amor na relação terapêutica de transferência – e reformulando toda a sua própria teoria diante de novos impasses. O método é a escuta e interpretação do sujeito do desejo, em que o saber está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que se produz na relação que será chamada de transferencial. Nessa medida, o psicanalista escuta o sofrimento e descobre que não deve eliminá-lo, mas criar uma nova posição diante do seu sentido. O sintoma é realização do desejo, o lugar da verdade do sujeito, uma mensagem, um enigma a ser decifrado; nele está o cerne da subjetividade.
O método psicanalítico vai do fenômeno ao conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa. O psicanalista não aplica teorias, não é o especialista da interpretação, nem mesmo da fantasia, posto que não é só aí que o inconsciente se manifesta; o psicanalista deve estar a serviço da questão que se apresenta. A observação dos fenômenos, está em interação com a teoria, produzindo o objeto da pesquisa, não dado a priori, mas produzido na e pela transferência.
A transferência apresenta-se como instrumento e método não restritos apenas à situação de análise. Se partirmos do princípio de que em outras situações (não estritamente analíticas) o método não se aplica, seus fenômenos não resultam da associação livre, temos que admitir que o inconsciente está restrito às manifestações do tratamento psicanalítico, à prática clínica. Ora, tal constatação significa, acima de qualquer consideração, desprezar o fato de que o inconsciente está presente como determinante nas mais variadas manifestações humanas, culturais e sociais. O sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela enunciação que o transcende. A escuta busca, na linguagem, a articulação da libido e do simbólico. Freud já diz isso desde o início de sua obra, quando, para distanciar-se do estritamente patológico, vai do estudo do sintoma e do sonho, e escreve uma Psicopatologia da vida cotidiana, mostrando o inconsciente presente nos acontecimentos da vida diária, nos esquecimentos e chistes, presente, portanto, no diálogo comum. Dentro de sua especificidade, consideramos, com Laplanche e Pontalis, que a legitimidade da prática extensiva da interpretação “pode estender-se às produções humanas para as quais não dispõe de associações livres” (Laplanche & Pontalis, 1971, p. 329). Isto significa que se pode trabalhar a partir da escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas, colhidos em função do tema do pesquisador que, por sua vez, reconstrói sua questão nessa relação.
Esta é a relação teoria e prática em psicanálise. A prática não tem sabedoria própria – ela suscita idéias, a princípio indeterminadas, por via da construção e do trabalho do conceito que nunca acaba de se formar pois, uma vez fixado, despotencializa-se como conceito. É preciso perguntar se a existência de um conceito é necessária, e de que problema constitui a solução. O conceito deve nascer da necessidade própria da trama a que pertence, sem descuidar, em sua formulação, de como este se firma no solo da teoria selecionado para a investigação; os elementos comuns vão sendo destacados desse material, a fim de constituir a questão a ser estudada. Assim, embora a Psicanálise seja uma prática voltada para o singular, o trabalho teórico não pode ser dispensado; pelo contrário, a teoria constrói condições de descobrir os fenômenos sem se ater à mera experiência. É nessa relação que é possível construir, ultrapassar o já dito, construção que não se sustenta em uma linearidade e em que teoria e prática não têm autonomia. Mezan (1999) atribui às observações um valor exemplar, e o interesse em estudá-las consiste em apontar padrões, estruturas e correlações que, uma vez estabelecidas, podem servir de guia para a percepção de algo equivalente no trabalho clínico. Tornam-se ferramentas para a intelecção de relações relevantes entre conteúdos psíquicos, ou entre estes e os mecanismos responsáveis por sua produção.

Pesquisa e intervenção psicanalítica

Retorno ao questionamento sobre este tipo de pesquisa, já que não promoveria efeitos no sujeito. Um primeiro ponto a considerar é que pesquisa e intervenção não estão, na psicanálise, em campos distintos. Em pesquisas que envolvem tratamento psicanalítico, a aproximação dos dois termos é evidente. A pesquisa é a escrita do próprio processo, incluindo o pesquisador. No caso da pesquisa de fenômenos sociais cabe-nos uma reflexão sobre o modo de condução das entrevistas e a análise dos discursos envolvidos. Vamos retomar e diferenciar a situação da análise do dispositivo psicanalítico que permite a escuta. Este ficou imaginariamente colado à situação do atendimento clínico individual em consultório, mas deve ser retomado em seu eixo simbólico, evidenciando as condições que tornam possível a produção de um saber (Elia, 2000).
A escuta psicanalítica ocorre na transferência, que envolve tanto o sujeito como o psicanalista. A sua condição é construir um lugar situado como campo transferencial. A escuta psicanalítica implica que o analista suporte a transferência, ou seja, ocupe o lugar de suposto-saber sobre o sujeito – uma estratégia para que o sujeito, supondo que fala para quem sabe sobre ele, fale e possa escutar-se e apropriar-se de seu discurso. Esse campo permite uma relação que estrutura a produção do saber do sujeito, desde que o psicanalista renuncie ao domínio da situação e, pontuando e interpretando, possibilite a produção de efeitos de significação no sujeito: sujeito do desejo, engendrado pela cultura, mas que, em sua condição de dividido, pode transcender o lugar em que é colocado e apontar na direção de seu desejo.
A escuta psicanalítica é, desde Freud, transgressora em relação aos fundamentos da organização social; para se efetivar, implica um rompimento do laço que evita o confronto entre o conhecimento da situação social e o saber do outro como um sujeito desejante. Dessa escuta – principalmente quando o sujeito se revela como tal, como um dizer – não se sai isento: uma tomada de posição ética e política torna-se necessária. As entrevistas ou situações que o psicanalista vai encontrar supõem que escute desse lugar que rompe as barreiras de um sujeito indicado a partir de seus predicados, sujeito psicológico ou sociológico, para resgatar a experiência compartilhada com o outro, escuta como testemunho e resgate da memória. O relato em si não basta, dado que pode ser apenas a repetição automática que se detém em atualizar o traumático. Também não me refiro ao relato que parece feito para saciar a curiosidade do outro, que passa mais por uma exposição do sofrimento para o deleite do outro, ou da exibição pelo grotesco – como se vê, freqüentemente, na televisão. A escuta psicanalítica supõe, retomo aqui, a presença do outro desejante, em tudo o que ela implica de resistência do analista, usada também como um contorno, uma borda organizadora do gozo sem limites. Nas histórias de meninos infratores, por exemplo, não suporto ouvir o relato cru de crimes que cometeram. O relato tem, na resistência do analista, o seu limite, o limite do fantasma que suporta o analista e que o norteia para detectar quando o dizer pode ser compartilhado em experiência de um sujeito na história ou quando é puro gozo no sofrimento, o seu próprio ou o do outro. Quando esse dispositivo se instaura, mesmo nas situações mais adversas, é possível vislumbrar os efeitos de destituição subjetiva e o caráter estruturante e organizador da escuta psicanalítica. (Rosa, 2002).
Outro aspecto a considerar, quando a pesquisa se refere à elucidação dos modos de captura do sujeito nas malhas institucionais, é a função do desconhecimento na formação e manutenção do sintoma e de seu gozo. Aponto apenas o que cabe na relação com a realidade social. Diz Zizek (1996, p. 306): “ideológica é uma realidade social cuja existência implica o não conhecimento de sua essência por parte de seus participantes, ou seja, a sua efetividade implica que os indivíduos não sabem o que fazem”. Indico essa direção para ressaltar que a consistência do
sintoma implica o não-conhecimento do que está em jogo da parte do sujeito, e que esse desvelamento pode ter efeito de dissolução. Ou seja, muitas vezes, a própria revelação das ilusões que sustentam os sintomas pode ter efeitos nos mesmos. Ou pode, ao menos, funcionar – como o discurso da histérica - como denúncia da inconsistência desse Grande Outro-organização social. Além disto, certamente há ainda outros caminhos de mudanças subjetivas fora do estritamente analítico. Lacan (1953/ 1978, p. 124) indica alguns caminhos para apreender o não-dito, assim como para trabalhar na clínica. Elucida a presença do não-dito quando afirma que:
“o inconsciente é esse capítulo da minha história marcado por um branco ou ocupado por uma mentira; é o capítulo censurado.” E acrescenta: “Mas a verdade pode ser reencontrada: freqüentemente já está escrita em Outra parte. Ou seja:
- nos monumentos: meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose onde o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode, sem perda grave, ser destruída;
- nos documentos de arquivos também: e são as recordações de minha infância, impenetráveis como eles, quando eu não conheço a proveniência;
- na evolução semântica: e isto responde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular , assim como ao estilo de minha vida e a meu caráter;
- nas tradições também, e mesmo nas lendas que, sob uma forma heroicizada, veiculam minha história;
- nos rastros, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções, necessárias para emendar o capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e das quais minha exegese restabelecerá o sentido.”
Julien (1997) indica que, quando falta a transmissão privada, esta pode instaurar-se no público, ou seja, que o resgate e a pesquisa estritamente históricos têm seu efeito subjetivo, favorecendo a transmissão. C. Calligaris (1993, p. 192) aponta dois atalhos: a produção de um discurso político com acento sobre a necessidade
de constituição da sociedade civil, que crie condições de convivência que não sejam paranóicas ou narcísicas, e, outro, mais próximo da Psicanálise, que “consiste em levantar o recalque: lembrar a parte de História e Discurso que nós recalcamos, dizê-la – na vida cultural ou deitados no divã”.
Nesta medida, buscamos, dialogando com as críticas apontadas à pesquisa psicanalítica extramuros, indicar alguns aspectos que esta pesquisa pode elucidar, assim como alguns dos dispositivos teóricos e metodológicos possíveis. Ou seja, esperamos ter demonstrado que a psicanálise tem a sua forma específica de analisar a variação histórica e ideológica dos referentes fundamentais e sua relação com o sujeito, e de pesquisar os fenômenos sociais.

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Consciencia Cínica

Reproduzo abaixo um interessante exemplo de análise da "consciência cínica" - no caso, aplicada a estudantes. Claro, qualquer semelhança com situações atuais (não) é mera coincidência. O autor aplica conceitos psicanalíticos e utiliza uma abordagem inspirada em Zizek...
(Publicado em Linguagem & Ensino, Vol. 2, No. 1, 1999 (87-106))


Salvai-os porque eles sabem o que fazem ou da consciência cínica à autonomia no cotidiano escolar

Marcos Gustavo Richter
Universidade Federal de Santa Maria

RESUMO: Partindo de um impasse pedagógico de sala de aula, este artigo começa flagrando a consciência cínica subjacente a essa situação. Passa a analisar suas características e seu modo de funcionamento em termos de uma psicanálise da ideologia e das relações que o cinismo mantém com a forma pós-moderna de consciência. Em seguida sugere a Pedagogia de Projeto como caminho para reverter o processo. Mostra como a forma-sujeito do educando na Pedagogia de Projeto é antagônica às formas típicas do sujeito-histérico e do sujeito-obsessivo. Conclui propondo que as mudanças passem pela busca de um objeto comum de desejo, mediada por um discurso sedutor.

CONSCIÊNCIA CÍNICA

Palavras-chave: Educação, Psicanálise, Pesquisa-Ação.

No segundo semestre de 1997, acadêmicos-estagiários do Curso de Letras da UFSM, cursando a disciplina de Português VIII, procuravam aplicar os ditames da Pesquisa-Ação aos seus alunos de estágio supervisionado. Com o gerenciamento do professor (o autor deste artigo), estudavam as premissas e as estratégias desta abordagem pedagógica, planejavam, em grupos, as aulas comunicativas de língua portuguesa a serem ministradas no estágio, recolhiam os trabalhos dos alunos e as observações feitas em aula, retornavam à disciplina e trocavam idéias sobre o que havia acontecido, redimensionando suas práticas e os pressupostos acerca destas. Um desses acadêmicos, a formanda AM, assessorada pelas demais companheiras de grupo, buscava a forma de resolver um problema que se mostrava recalcitrante nas suas aulas: a maioria dos alunos esquivava-se de participar das atividades propostas pela acadêmica — não obstante o caráter comunicativo e sócio-interacionista dessas práticas. AM relata que, embora tivesse experimentado diversos meios de persuasão para, ao menos, minimizar o problema, não obteve resultados satisfatórios. Diante da situação, o grupo decidiu elaborar um questionário a ser respondido pelos alunos envolvidos e um protocolo de observação do comportamento desses mesmos alunos durante as aulas. Estes instrumentos tinham por objetivo detectar possíveis causas para o impasse. Tendo obtido, sistematizado e comparado os dados, AM e suas colegas detectaram uma flagrante contradição entre as respostas que os alunos forneciam acerca de seus comportamentos, preferências e valores atinentes às aulas, de um lado, e as atitudes reais dos alunos registradas pelo grupo, de outro lado. Aquelas eram surpreendentemente “bemcomportadas”: os alunos gostavam da nova metodologia, consideravamse participativos; já estas revelavam comportamento dispersivo e nãocolaborador.
A impressão que ficava era de que a classe de modo geral procurava manter um “semblante”, uma “máscara” de correspondência às expectativas da professora (AM), como se apenas importasse para os alunos dizerem a ela o que ela gostaria de estar ouvindo sobre as aulas que ministrava, fosse ou não verdade.
Ficou, então, a pergunta para reflexão: por que o estudante diz uma coisa (ou diz que pensa uma coisa) e faz outra bem diferente, até oposta? E, de uma maneira mais ampla: de onde vem a incoerência que atravessa endemicamente a prática pedagógica? O objetivo deste artigo é discutir este problema e sugerir uma alternativa viável para, se não solucioná-lo, ao menos atenuá-lo. Procuraremos equacionar nossos argumentos à luz dos referenciais teóricos da Psicanálise Lacaniana e da Investigação-Ação.
De início, parece oportuno mencionar três fatos acerca dessa contradição entre a prática e o discurso sobre a prática. Primeiro: ela foi observada também na própria Academia. Num caso, entre alguns (não poucos) dos próprios estagiários, no Português VIII, desta vez pelo professor da disciplina; e noutro caso, por uma mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM, a respeito de colegas que cursavam com ela uma mesma disciplina. Vemos, portanto, que não se trata, absolutamente, de um fenômeno restrito à adolescência ou ao ensino fundamental e médio, ocorrendo até mesmo com adultos consumados e bem escolarizados, em programas de estudos avançados. Segundo: ela visivelmente passa a ocorrer a partir do momento em que os indivíduos envolvidos no esquema de ensino-aprendizagem se colocam no papel de alunos ou então em posição subordinada no espaço pedagógico, mostrando que essa incoerência atitudinal está de alguma maneira associada à ocupação desses lugares discursivos.
Não estamos, absolutamente, insinuando, com isso, que a prática exercida pelos professores se isenta de contradições entre o que se diz e o que se faz. Muito pelo contrário, isso ocorre tão amiúde que se torna um obstáculo muito sério para a eficácia dos programas acadêmicos de formação continuada de professores. Para que fique bem claro, o que estamos discutindo aqui é a tendência indesejável ao disfarce, à denegação de ações educacionalmente reprováveis por meio da palavra “bemcomportada” aos olhos daqueles que se colocam na posição e no direito de “fazer cobranças”.
E essa tendência se constata em: alunos cobrados por professores; professores, no papel de alunos (em cursos), cobrados por outros professores; e professores cobrados por superiores hierárquicos ou autoridades educacionais e acadêmicas. Em contraste, os indivíduos envolvidos no processo educativo, quando no exercício da autoridade, não se sentem na obrigação de “agradar” (exceto a quem eventual e arbitrariamente escolham, mas essa é outra questão); afinal, são “meros cumpridores da lei”, doa a quem doer.
Se nos detivermos a examinar a fundo as relações discursivas dentro da esfera educacional; e se ainda nos lembrarmos do caráter inerentemente autoritário dessas mesmas relações, encontraremos, num primeiro momento, alguma justificativa para o que poderíamos considerar uma forma de resistência passiva do aluno à colaboração com o professor (ou do professor para com os recursos humanos hierárquica ou academicamente superiores); e, num segundo momento, possíveis opções de trabalho que contribuam para reverter, ainda que em parte, esse quadro lamentável de acomodação...cínica.
Sim, cínica. Essa é a palavra-chave que qualifica a consciência pedagógica endêmica nos meios educacionais. Zizek (1991, 1992) a emprega para analisar os pressupostos psicanalíticos do discurso autoritário. E, neste primeiro momento, procuraremos elucidar os mecanismos que propiciam a emergência da consciência cínica nesta instância genuinamente autoritária das relações sociais: o espaço escolar. A interface psicanálise-ideologia constituirá o referencial descritivo-explicativo de onde partiremos para, num segundo momento, flagrar o imbricamento da consciência cínica com o fenômeno pedagógico que constitui o núcleo do problema mencionado de início.
Do interior das reflexões de Zizek emerge a discussão do que se configura como um sintoma dos lugares discursivos articuladores da palavra do poder, na ideologia. “Eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem” — eis o sintoma. Trata-se da manifestação de uma patologia social na qual a justificativa verbal para a prática se acha em contradição com a própria prática. O leitor, sem dúvida, pôde ler esse mesmo sintoma no espaço pedagógico — igualmente autoritário e cínico. Zizek, ao discutir o cinismo, opõe esta forma de consciência àquela implicada no conceito marxista de ideologia: uma “ingenuidade constitutiva” (Zizek, 1991, 59), um desconhecimento de suas próprias premissas, instituindo uma clivagem entre o que se faz e a falsa idéia que se tem a respeito, e inclusive levando a aceitar um discurso justificador que inverte valores, implicações, objetivos. A (pretensa) universalidade da ideologia — tanto quanto da forma semioticamente doentia desta última, o mito — esconde que, na verdade, é acionada por uma particularidade (isto é, uma contingência histórica) ligada a interesses de classe.
O que seria, então, a razão cínica, e em que sentido se oporia à forma de consciência “distorcida”? Já de antemão ela se apresenta com um caráter mais perigoso, já que mais resistente à mera discussão reveladora dos avessos da razão. E isto porque agora a ingenuidade não se encontra mais presente naqueles que “sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem”. A violação da congruência entre o discurso moral e a moralidade prática não é mais escamoteada, não mais passa despercebida a ninguém. Tudo transcorre como se houvesse, por parte de quem agencia o discurso do poder ou experimenta o exercício da palavra nesse lugar, uma licença para a prática fora-da-lei, desde que o discurso correspondente permaneça asséptico. É bem a permissão para a incoerência, contanto que o valor da palavra justificadora não se perca — paradoxalmente uma palavra que não justifica nada a não ser a si mesma, um discurso que, pairando por sobre a razão prática, e apesar desta, tem como única função celebrar a não-renúncia à falsa universalidade.
Diferente da carnavalização do poder, que se esgota na mera ridicularização catártica do hiato entre o sujeito do enunciado (o eu-palavra) e o sujeito da enunciação (o eu-existênci/ação), vale dizer, no simples desnudamento da imoralidade e dos excessos do dominador — ridicularização essa que funciona pela remissão dos enunciados ideológicos às suas situações de enunciação — o cinismo de certo modo inverte essa perspectiva. Explicando melhor: se, na carnavalização do poder, a máscara
assumidamente falsa é posta e logo a seguir tirada (lembremos os rituais de coroação-destronamento bufos em praça pública), na consciência cínica, a máscara, uma vez colocada, permanece reconhecida como máscara mas não é tirada; ao contrário, ela se “fixa”, permanecendo a
ponto de se tornar uma espécie de “rosto necessário”. Daí a inversão que o cinismo opera em relação ao procedimento carnavalesco: neste, se a face for coberta com a máscara, esta passa a incomodar e deve ser arrancada; naquele, se a máscara for retirada da face, será esta a incomodar e deve ser novamente recoberta. A consciência cínica, portanto, é a fachada necessária sob a qual as práticas sociais espúrias precisam se apresentar — sob pena de se revelar um rosto informe, perturbador, incompatível com a dignidade humana. Dorian Gray seria exatamente a típica personagem cínica. Se seu verdadeiro rosto se revelar (aquele que vai se plasmando no retrato), o que ocorre ao final do romance, ele morre. Alegoricamente, sua dignidade e sua humanidade morrem.
Talvez o medo de se descobrir essa “fisionomia informe autêntica” no processo de desmascaramento funcione como uma metáfora do fato de que, justamente porque o cínico sobrevive da legitimação do distanciamento entre princípios discursivamente apregoados e atos concretos correspondentes, para a consciência cínica é insuportável a transgressão aberta e declarada da lei; ou, em outras palavras, "alçar-se a transgressão à condição de um princípio ético" (Zizek, op. cit., 60). O que perturba profundamente a razão cínica é a perspectiva de ver brotar da prática “fora da lei” novos hábitos, novas tendências que pudessem vir a se tornar códigos paralelos e legitimados de conduta — códigos estes passíveis até de se converterem em lugares discursivos eticamente alternativos e opositivos aos vigentes.
A razão cínica é mais resistente aos questionamentos exatamente porque a forma tradicional de crítica ideológica, cujo modo típico de funcionamento é a “leitura do avesso”, a dialetização, não funciona neste caso. Não há nada que precise ser posto a descoberto, qualquer revelação mais cedo ou mais tarde resvala num desanimador “diga algo que eu ainda não saiba”.
Torna-se necessário buscar outras premissas de funcionamento da razão cínica, no intuito de vislumbrar pistas para fazer frente a esta forma de consciência cujo perigo é consolidar-se cada vez mais como meio de manipulação não levado a sério; ou também, como instrumento de opressão-exclusão acompanhado de uma confessada apatia verbal. Para tanto, Zizek propõe demonstrar que a própria realidade social é constitutivamente distorcida, impregnada de ilusão.
Na esfera do valor (lato sensu), por exemplo, enquanto que, intelectualmente, o burguês “sabe” que o universal é a extensificação, a generalização de propriedades do particular, ele age às avessas, ou seja, como se as coisas passíveis de investimento de valor fossem a concretização particular de abstrações, de qualidades universais. Essas abstrações aparecem “do nada”, como entidades platônicas sempre-já presentes — quando o que se tem na verdade é a operação de deslocamento de categorias historicamente determinadas para outro lugar estranho, ilegítimo. Tem-se aí o modo típico barthesiano de estrutur/ação do mito. Essa dimensão mítica da realidade social eqüivale, no quadro teórico da psicanálise lacaniana, à fantasia ideológica: seu lugar privilegiado de funcionamento é o registro do Imaginário.
Há, portanto, na consciência cínica, uma dupla distorção. De um lado, a dissociação patológica entre discurso e prática; de outro, a clivagem entre a prática enquanto dimensão social articulada em signos e o real (não a “realidade”, que é sócio-histórico-cultural) como insistência cega, bruta, para além das significações que impregnam as práticas culturais. Para que fique mais claro, examinemos o conceito de signo em termos peirceanos. Um signo, por definição, é algo que se coloca no lugar de outra coisa e vale por essa coisa para alguém (na verdade, isto é rigorosamente correto na Antropossemiose, isto é, no âmbito da realidade cultural humana). Colocar-se no lugar de outra coisa, representá-la, significa exercer os mesmos efeitos que a coisa-ela-mesma exerceria, como um verdadeiro preposto dela. Ocorre que um signo não é capaz de recobrir ou incorporar todas as propriedades de seu objeto, exaustivamente falando; porque, se isso ocorresse, não seria mais um signo, e sim outro objeto idêntico, não mais se falando em “representar”. Sendo assim, o signo revela somente alguns aspectos de seu objeto, deixando os demais “no escuro”. Mas, ao pretender valer pelo objeto inteiro, o signo “quer ser mais do que de fato é capaz de ser”, e assim não só revela o objeto, mas também o falseia. O incompleto se arvora em completo; ou mais sutilmente: o que funciona como se fosse completo, mais cedo ou mais tarde acaba denunciando a própria incompletude Em suma, as práticas sociais, signos-ação, constituem-se numa verdadeira (e intrincada) rede de entidades-como-se: o simulacro passa a ser a própria forma (sígnica, bem entendido) de articular os valores sociais dos objetos e práticas culturais. Vemos, então, que, no cinismo, a ilusão não está do lado do saber (discurso) acerca da prática, e sim no bojo da própria prática — no lugar do “como se” das ações e relações sociais e das formas simbólicas e mercadológicas que as corporifiquem. O estatuto dessa ilusão é inconsciente. As práticas culturais, vistas enquanto códigos introjetados e automatizados (em grande parte fora de nossa deliberação voluntária), tornam-se o próprio quadro identificatório (no nosso imaginário) ao qual nos apegamos, como uma verdadeira “pele psicológica”, da qual não podemos nos desvencilhar como faria um réptil e também não somos capazes de nos “excentrar” (falar e agir de fora dela).
No entanto, há um caminho que permite subverter, ao menos em certo grau, esse mecanismo produtor de ilusão. Sabemos que o investimento de valor, por exemplo, ao fazer o percurso da universalidade para a particularidade, percorre um caminho inverso ao da indução empírica, que vai da particularidade à universalidade. Estamos erroneamente “habituados” a aceitar que as categorias abstratas (cuja forma de legitimação, como vimos anteriormente, é mítica) se achem manifestadas na particularidade das coisas concretas, contingentes. Ora, se a forma não obscurantista de obtenção de conhecimento vai da particularidade para a universalidade, a solução parece consistir em lançar mão de uma teoria da investigação que contemple essa perspectiva. E ela existe. Vai da singularidade (da formulação de uma hipótese) para a particularidade (da dedução das conseqüências acarretadas por essa hipótese) e por fim à universalidade (da indução das propriedades de toda uma classe de fenômenos ou objetos a partir da observação controlada).
Trata-se do percurso proposto pela semiótica peirceana para a obtenção de formas de conhecimento relativamente pouco atingidas por preconceitos e autoritarismo — a saber, abdução, dedução, indução em ciclos de complexidade crescente.
Em outras palavras: a forma de conhecimento capaz de exercer uma contraforça à estruturação cínica da consciência social é justamente aquela que prescreve a categorização indutiva da vivência empírica sob o crivo de uma atitude metodicamente escrutinadora. Esse posicionamento, familiar ao semioticista de linha peirceana, é compartilhado pela investigação- ação educacional emancipatória de Carr e Kemmis (1988) e pela educação dialógica libertadora de Paulo Freire.
O automatismo, a distorção e a interpelação características da lei e presentes na fantasia ideológica (considerada esta a raiz psicanalítica da consciência cínica) vêm ao encontro de uma importante função desta dimensão psíquica: tampar a fenda aberta pelo caráter cego, cruel, gratuito e violento da própria instauração da lei. O fundamento da autoridade é a mera aceitação, o que conduz gradativamente ao hábito de conduta. Não há qualquer justificativa para o poder, externa ao mesmo poder: ele se sustenta no nada, no inefável. A origem da lei fica fora de discussão, e a dissimulação do caráter usurpatório da lei é a condição para que
ela se implemente e seja eficaz, isto é, funcione como mecanismo coercitivo- punitivo. No começo de toda a lei há sempre um certo “fora-dalei”. Esse objeto obsceno da lei, o objeto-causa-do-desejo, se encontra num lugar diferente daquele em que o sujeito desejante está situado — o sujeito dividido entre duas dimensões irreconciliáveis, a do enunciado e a da enunciação. Se, de um lado, o sujeito, ao exercer seu papel de desejante, perde para sempre o objeto-causa-do-desejo, de outro lado, esse mesmo sujeito, ao situar-se no lugar equivalente ao do real bruto, renuncia a desejar. O que implica alienar ao Outro (à letra da lei) a justificação de sua atividade executora cruel: o carrasco exerce sua “legítima”(?!) violência fazendo- se de mero instrumento (não-sujeito) da vontade do Outro, trabalhando para o gozo desse Outro.
Nesse sentido, toda lei se desdobra em uma vontade que interpela os indivíduos (assujeitados pela interpelação) à “responsabilidade” de ter de corresponder ao conceito expresso pela letra da lei, ao mesmo tempo que abriga em seu avesso um real violento, sádico, correspondente à sanção ou exclusão destinadas aos que não se enquadrarem nessa lei. A expressão psicanalítica “Kant com Sade” denota exatamente esse perfil da lei, a saber, inquestionabilidade com violência, o inexorável prescrever- excluir:

“É essa, pois, a divisão entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação da lei: por trás do S1, da lei em sua vertente neutra, pacificadora, solene e sublime, há sempre um lado do objeto que anuncia a malignidade, a maldade e a obscenidade.” (Zizek, 1991, 67)

Podemos, a esta altura, passar à pergunta: que sentido apresenta a consciência cínica para a sociedade pós-liberal burocrática (pósmoderna)?
Segundo Zizek, o totalitarismo contemporâneo institui uma diferença radical na forma social de funcionamento da lei, em comparação com a época considerada “clássica”: o elemento fora-da-lei que se arvora em agente-executor desta última, antes oculto, agora aparece de maneira clara, por meio de um objeto institucional que se apresenta não como o fruto de um arbítrio, e sim como a manifestação de leis “objetivas”. No caso discutido pelo autor — o do partido stalinista — este objeto institucional se apresenta como o corporificador da inevitável necessidade das leis do desenvolvimento histórico. Mas basta que uma série de “leis” ou generalizações científicas — a voz da razão instrumental, técnica — seja invocada para sustentar a “necessidade objetiva” de uma conjuntura histórica, para que o agente do poder se desloque da posição de sujeito desejante e ocupe a posição do objeto-causa-do-desejo (o lugar fora-dalei).
Uma vez efetuado esse deslocamento, o agente do poder, a partir desta perspectiva, esconde seu caráter de sujeito-dividido (que abriga uma contradição entre a palavra que emite para representá-lo e às suas idéias e a prática social que realiza) e, em nome de um Outro despersonalizado (alguma instituição humana abstrata), exerce sua malignidade obscena diante de sujeitos (alijados do poder) histericizados, ou seja, aqueles cuja forma de assujeitamento no discurso consiste em acionar seu desejo incessantemente, em vão. O agente social opressor, no contexto pós-liberal, deliberadamente
renuncia a se apresentar de forma subjetiva. Mas, na verdade, o que ele faz é objetivar e instrumentalizar sua própria posição subjetiva — fato que não aparece aos olhos do sujeito despossuído histericizado ao qual se pretende “aplicar” a lei.
Esse agente social assume, em conseqüência, a máscara de um desprendimento cínico e, simultaneamente, a sólida convicção de ser o mero concretizador de leis históricas ou de tendências objetivas de um mundo (aparentemente) à margem de vontades individuais. Não à toa, o totalitarismo caminha lado a lado com a hegemonia da razão instrumental (Habermas,1983; Carr e Kemmis, 1986).
Dado que a autoridade clássica é a autoridade da performatividade subjetiva — eu, como Senhor poderoso, decido e, em decidindo, assim será —, mais exatamente uma forma irracional de autoridade, na qual o real fora-da-lei irrompe na forma dessa mesma irracionalidade volitiva; com o advento do liberalismo iluminista (fins do século XVIII), busca-se uma alternativa racional para a irrupção do real nas ações e relações sociais. Essa alternativa consiste em alicerçar o exercício da autoridade num “saber” ou “saber-fazer” (competência) evidente, vale dizer, no conhecimento ou na estipulação científica dos fatos sobre os quais esse agenciador do lugar do poder reclama seu domínio. O superego para o qual trabalha esse agente-executor, superego esse encarnador da crueldade canibalesca do real, apresenta-se à consciência social como um recorte pertinente do conjunto de leis objetivas e necessárias a permearem a existência humana. Ou, nas palavras de Zizek, “o semblante de um saber neutro, objetivo, sob o qual se oculta o objeto-agente obsceno de uma Vontade superêuica” (op. cit., 70), a vontade de um superego materno, mais opressivo, arbitrário, devastador, excluidor do que o clássico superego paterno, mais disciplinado, previsível e fiel à letra da lei.
Submisso à vontade do superego materno, pré-edípico, que funciona articulado a uma subjetividade histérica narcísica (no sentido de uma forma patológica de narcisismo), assujeita-se o indivíduo burocrático, pós-moderno. Este, incitado a inflamar-frustrar seus desejos (funcionamento de consciência que o mantém perpetuamente histericizado), é um sujeito que “não leva a sério as regras sociais, aquele que evita a identificação com a ordem social, o não-conformista que está sempre tomando distância...”(id.,ibid., 72). O Grande Outro que interpela o indivíduo contemporâneo como sujeito “desejante e “cioso de seu papel” cada vez mais incorpora os traços de uma Mãe Nutriz, a qual, à margem do efeito castrador da Lei Paterna (cuja função é justamente atuar como regulador unindo o desejo à limitação da lei e disciplinando o gozo) manifesta-se sob um desconcertante despotismo benévolo.
O autor iugoslavo oportunamente comenta:

“Talvez o sinal mais visível dessa transformação seja a substituição da justiça punitiva pela justiça terapêutica: não se é mais culpado (ou seja, responsável), e todo delito deve ser compreendido como resultado das circunstâncias sócio-psicológicas(...) esse culto da expressão autêntica, liberta das regras alienadas, [é] como a forma de manifestação de uma dependência pré-edipiana, como a própria forma da subordinação a um
supereu materno muito mais feroz e caprichoso do que o bom e velho ideal do eu paterno.” (Zizek, op. cit., 72-3)

O pensamento pós-moderno caracteriza-se por esvaziar os mecanismos identificatórios, no imaginário e no simbólico, que sustentam as formações do ego ideal e do ideal do ego, respectivamente. Nas formas não-patológicas de assujeitamento, em que os mecanismos identificatórios são acionados de maneira normal, o sujeito se engata num ponto do Grande Outro, a partir do qual uma auto-imagem pode ser construída, tal que o sujeito se enxerga como alguém digno de ser amado por esse Outro em função daquilo que escolheu ser — caso típico da satisfação auferida pelo cumprimento de um dever, com a renúncia aos próprios interesses imediatos.
Ora, a partir do momento em que a identificação imaginária deixa de ser regida pelo ideal do ego (simbólico), ou seja, por uma grande Lei Ética com poder agregador-disciplinador social, a dimensão subjetiva do indivíduo se reduz à mera vivência imaginária não-direcionada e semlimites.
Esta dimensão é exatamente o lugar pré-edipiano por excelência, onde a forma superegóica materna pode atuar — aquela que não “castiga”, no sentido paterno do termo, mas faz pior, pois impõe o gozo como uma necessidade louca e feroz e pune o “fracasso social” com severidade bem maior (o superego pré-castração leva à exclusão e pune a exclusão, trucidando mais o indivíduo do que se enunciasse a regra e punisse quem não a obedecesse). A sociedade, para poder funcionar deste modo, necessita de criar um “consenso de obsolescência do modo paterno de autoridade”. Mas sai perdendo o sujeito que troca a voz do pai com seu conjunto de regras claras (mesmo arbitrárias) pela voz da “razão instrumental”, muito mais opressiva por ser, no fundo, totalitária —uma vez que o saber técnico com suas premissas é, na verdade, uma forma social de ação no mundo voltada ao interesse de dominar as forças da natureza, não A Forma universal e por excelência de o ser humano organizar todas as dimensões de sua existência (a ciência é um entre outros saberes válidos, não O Saber acima de qualquer outro).
Essa razão instrumental substitui o compromisso moral por um conjunto de “técnicas” para ser bem-sucedido na sociedade ou na vida. Ao não ter correspondido ao conceito de “indivíduo de sucesso”, o membro de um grupo acaba por sentir-se “à margem” do padrão imposto pela razão instrumental. O indivíduo paga o preço de não haver podido instrumentalizar o inefável (?!): a exclusão, com a correspondente marginalização psicológica; e, ironicamente, carrega essas conseqüências como dividendos por ter investido em sua “saúde mental”, eliminando “bloqueios psicológicos” e inibições e buscando a plena gratificação de seus impulsos. Não sem razão, o sujeito pós-moderno é débil, com uma caracterologia equívoca ou ambígua, destinado a não mais que a simples contemplação passiva do espetáculo de uma vida cujo controle lhe escapa, ou melhor, lhe é negado (como sujeito-agente). Isso, se não lhe for “restituído” na forma de simples jogos, entretenimentos e simulações (realidade “virtual”, a impostura da realidade “real”), os simulacros da auto-realização cidadã.
A formação contemporânea do perfil psicológico debilidadepassividade- cinismo — verdadeiramente uma introjeção mental da patologia das relações sociais no sentido puramente vygotskiano do termo — foi alvo do escrutínio de Adorno e Horkheimer, os quais, num artigo já clássico1, analisando a extrema planificação a que os fenômenos culturais se submetem no século XX, deixam entrever nas entrelinhas esse superego materno furiosamente devastador que convida incessantemente o indivíduo a submeter-se aos seus desígnios. Segundo os referidos autores da Escola de Frankfurt, a planificação do macrocosmo e do microcosmo culturais — ou seja, a busca de previsibilidade e domesticação tanto do público quanto do privado — propõe aos indivíduos uma mistificação fundamental: a falsa identidade do universal e do particular, ou seja, faz passar o grande engodo da equivalência entre as formas de inferência universalizante do empirismo inglês e os investimentos de valor platonizantes nos artefatos da publicidade e da indústria cultural. A conseqüência disso, já tivemos oportunidade de mencionar pouco antes: ficam confundidos os critérios de validação tecnocientífica do conhecimento e a manipulação míticoideológica das abstrações com as quais se pretende legitimar (fazer parecerem “naturais”, “necessidades objetivas”) os mecanismos de opressão e exclusão social. E os filósofos ainda acrescentam:

“Mas não se diz que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena.” (Adorno e Horkheimer, 1982, p. 160)

A mídia desenvolve os recursos através dos quais o espetáculo montado para o prazer estético do espectador cria para este a ilusão de que o mundo “lá fora” é o simples prolongamento do que ele vê no cinema (e hoje, no vídeo e em meios que literalmente apagam os limites entre a realidade e o artifício). O ideacional e o real (no sentido comum do termo) não mais se distinguem, nem mais valeria a pena tentar qualquer discriminação entre ambos: o simulacro se instala no próprio cotidiano2, lado a lado com a passivização da percepção e a perigosa atrofia da capacidade crítica. A mente do sujeito contemporâneo, estruturada (vygotskianamente falando) para uma forma estética de processamento, é apta a fazer, desse indivíduo, um não-agente, que só participa da vida social na qualidade de espectador quase-indiferente — um voraz ingurgitador de mensagens que o manipulam de forma amorosamente perversa, como um beijo da mulher-aranha. Com efeito, a rapidez e a aleatoriedade com que surgem à percepção os elementos que compõem os objetos culturais acabam por paralisar a imaginação e o discernimento do consumidor contemporâneo:

“ Aquele que se mostra de tal forma absorvido pelo universo do filme, gestos, imagens, palavras — a ponto de não ser capaz de lhe acrescentar aquilo que lhe tornaria um filme — não estará, necessariamente por isso, no ato da representação, ocupado com os efeitos particulares da fita. (...) Os produtos da indústria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração. Mas cada um destes é um modelo do gigantesco mecanismo econômico que desde o início mantém tudo sob pressão tanto no trabalho, quanto no lazer que lhe é semelhante.” (Id.,ibid., p.165)

Fica bem claro que, em um sistema econômico nestes moldes, o sentimento ético e cooperativo passa a ser substituído pela paródia da solidariedade: ri-se até mesmo da frustração, como se o “eu” ou o “outro” se projetassem num grande palco e não mais dissessem respeito aos sujeitos. O cinismo já se instalou e seus efeitos maléficos se fazem sentir. Eis o mecanismo perverso: a ação insidiosa de um superego que dá a ilusão de satisfazer sem limites e leva os indivíduos a renunciarem com alegria ao crescimento psicológico, “dispensados da fadiga da individuação” (id.,ibid., p. 193). Um superego dissimuladamente materno, que “não pode parecer que renuncia à ameaça de castração” (p.179) e cujo efeito é bloquear justamente o caminho pelo qual o sujeito pode se tornar agente e autônomo: a união entre o desejo e a lei.
Baldino (1993) discute a consciência cínica em termos do semblante que se acredita deva ter a escolarização — a aparência que esconde contradições sérias, equacionadas a partir do que se denomina “contrato didático”, conjunto de pressupostos éticos estipulados acerca dos papéis de aluno e de professor no ambiente escolar, bem como do que se considera ou não negociável nesse mesmo ambiente. O contrato didático, além de deixar mais ou menos tácito o que um professor deve esperar de um aluno e vice-versa, estipula as formas como o saber escolar progride: âmbito, cronologia e controle da natureza e da progressão desse saber. Em princípio, estas coisas todas deveriam ser negociáveis, pois estamos falando de um contrato. Mas tudo se passa, na realidade, de tal forma que “Na linguagem em que ocorre a negociação, os interesses dos alunos e do professor convergem sobre um ponto: fazer crer que a negociação não existe (Baldino, op. cit., 3)
O discurso pedagógico se desenvolve numa língua em que, sob significantes “universais” (dar matéria, dar nota, fazer revisão, etc.) se dissimula sempre uma língua particular, diferente de turma para turma, de professor para professor, de época para época. Um “faz-de-conta” domina o contrato didático, desde que não se fale “escancaradamente” desse faz-de-conta. E assim ingressamos num terreno já familiar para o leitor desde o início da presente discussão: a consciência cínica que atravessa e impregna o fazer pedagógico. Que fazer para atenuar esse faz-de-conta, esse posicionar-se num lugar imaginário onde o Outro demonstra sua aprovação, ao mesmo tempo em que se fecham os olhos para o caráter contraditório da prática que paralelamente acompanha esse semblante discursivo? Baldino sugere a metodologia da Assimilação Solidária: a avaliação é feita não sobre um desempenho do aluno indicativo de informação assimilada, e sim sobre a quantidade de trabalho realizado (em pequenos grupos) com conteúdos da disciplina, o qual é controlado por um questionamento que os membros do grupo fazem entre si. Para uma disciplina não-aplicada — Cálculo, no caso do autor — a sugestão parece excelente. Mas ao passarmos à área de Comunicação, em que o desempenho vale tanto ou até mais que o metaconhecimento, propomos outro tipo de encaminhamento, ainda sem trair os fundamentos da psicanálise lacaniana.
Trata-se da idéia, implicada no fenômeno (freudiano) de castração, de o sujeito se tornar capaz de unir o desejo à lei, o impulso criador ao limite e direcionamento das regras. Não há emergência do significante unário (a individuação), socialmente falando, exceto a partir do lugar do Outro, do código, da lei. É a partir do que a cultura estipula como limites e direções para o desejo investido que o sujeito pode migrar da posição histérica (ou obsessiva) para a de mestria — embora sempre na condição de incompleto, faltoso. Pedagogicamente, isto significa unir interesse (desejo) e esforço
(vontade) em direção a uma meta de maneira disciplinada (lei), meta essa considerada legítima dentro da cultura que fornece o código ao sujeito. A estratégia que permite ao sujeito operacionalizar este trajeto no espaço pedagógico é a Pedagogia de Projeto, fundamentada nos princípios da investigação científica peirceana e da investigação-ação educativa e, na sua versão centrada em atividades comunicativas, também na teoria da atividade verbal de Leontiev (apud Koch, 1997). Para Peirce (apud Bacha,1997), a forma verdadeiramente científica, e portanto não obscurantista, de chegar à verdade (ainda que histórica e relativa) consiste em seguir ciclicamente os três passos fundamentais seguintes:
· Abdução: vislumbrar hipóteses para determinados tipos de fenômenos, com base em algum conhecimento prévio acerca do fato intrigante — processo este em grande parte regido pelo acaso: as idéias aparecem de forma um tanto gratuita na mente, e podem até ser desencadeadas por meio de tentativa-e-erro.
· Dedução: inferir as conseqüências que necessariamente se seguem à hipótese retida pelo investigador, caso esta se comprove.
· Indução: pôr à prova experimental/observacionalmente, em condições controladas, a hipótese, tentando provocar o surgimento de conseqüências, para saber se elas correspondem fielmente ao que o investigador havia antes deduzido. Estas etapas podem ser realizadas individualmente, mas o conhecimento obtido deve ser compartilhado pelos pares, a fim de que um olhar do grupo de investigadores atuantes possa contribuir para validar e refinar as conclusões obtidas. A investigação-ação segue um trajeto cíclico-espiralado composto de quatro etapas básicas, que devem ser integralmente realizadas por um grupo investigativo, jamais por um indivíduo apenas:
· Planejamento: dado um problema (ligado ao contexto) que afeta o grupo, e geradas/selecionadas hipóteses para explicar esse problema, estruturar uma ação global (com suas eventuais sub-etapas) que, conforme se espera, tenha influência concreta sobre os fatores desencadeantes do problema, atenuando-os ou removendo-os (estado final este que constitui o objetivo ou conjunto de objetivos da ação a implementar).
· Ação: executar a ação (ou conjunto de ações) no contexto e nas condições estipuladas, mas com a suficiente flexibilidade para alterar algum elemento da ação durante a execução, se houver necessidade.
· Observação: observar com objetividade os resultados da ação ou conjunto de ações realizadas, colhendo os dados relevantes de maneira organizada.
· Reflexão: submeter as observações sistematizadas, à luz da hipótese de ação e dos conhecimentos prévios, ao crivo do pensamento crítico, para averiguar até que ponto os objetivos estipulados foram ou não atingidos, e até que ponto — retomando em seguida um novo ciclo, e assim por diante.
A teoria da atividade verbal, que, na verdade, não alimenta pretensões educativas e sim descritivas, postula que

“A linguagem é uma forma de atividade, e, assim sendo, deve ser encarada como uma atividade em geral, e, mais especificamente, como uma atividade humana. Como tal, toda atividade verbal possui, além da motivação, um conjunto de operações que são próprias do sistema lingüístico e que representam a articulação das ações individuais em que se estrutura a atividade, e um objetivo final que, como o motivo inicial, como o motivo inicial, tem um caráter basicamente lingüístico.” (Koch, 1997, 14, grifos da autora)

Essa atividade se desdobra em três aspectos:
· motivação (equivalente ao problema da IA);
· finalidade (equivalente ao objetivo da IA); e
· realização (execução, através de meios sociais, os signos, de uma atividade lingüística planejada, com possíveis modificações do roteiro no decurso dessa realização — equivalente à ação da IA). Só duas coisas da IA não estão aqui presentes: o caráter grupal da necessidade movente e a coleta sistemática dos resultados da interação.
A Pedagogia de Projeto nasceu no início do século como um desenvolvimento da doutrina educacional de John Dewey (1980), que defendeu uma pedagogia baseada na união entre interesse e esforço orientado e disciplinado. O autor argumentava que o malogro da educação poderia ser explicado como a dissociação entre essas duas instâncias, levando o aluno a não assumir sua prática e fazer de conta que realizava as atividades prescritas pelo professor. Se o eu da criança e a tarefa a
realizar estivessem em relação de incompatibilidade, as ações pedagógicas não passariam de atividades irrefletidas e sem valor formativo, dispersas e fantasiosas.

“Interesse verdadeiro é o resultado que acompanha a identificação do “eu” com um objeto ou idéia, indispensável à completa expressão de uma atividade que o próprio “eu” iniciou. “ (Dewey, 1980, p.158, grifos do autor)

Ou seja, na falta de uma verdadeira motivação, ou o aluno fica perdendo seu tempo com exercícios mecanicistas e sem propósito claro, ou inebria a mente com a sensação e a imaginação gratuita. E isto exatamente é o grande problema da formação escolar pós-moderna: a gratificação excessiva do pulsão sensorial do aluno, sem a disciplina de propósitos tal que o aluno a assuma de dentro para fora. O autor, então, propõe que o educador contribua para expandir construtivamente as forças da criança:

“Agir adequadamente na direção desses impulsos envolverá, naturalmente, da parte da criança, seriedade, concentração, clareza de propósitos e de planos. Assim se formarão hábitos de persistência e de tenacidade a serviço de objetivos cujo valor será por ela compreendido e sentido. (...) Interesse, em conclusão, significa atividade unificada, integrada.”
(Dewey, 1980, 158-9, grifo do autor)


Numa perspectiva psicanalítica, vale dizer: lei sem desejo é a patologia da obsessão, que, na educação, corresponde à atitude servil, ao conservadorismo tenaz, à ausência de criatividade. Por outro lado, desejo sem lei (ou melhor, sem nomeação) é a patologia da histeria, que, para um aluno, equivale a um estado psicológico caracterizado por confusão mental desembocando em atividades sem um propósito exato, ou talvez repletas de “senões”.
Já o desejo unido à lei, ou seja, ao nome (Nome-do-Pai), enseja o percurso rumo à mestria. O aluno que encontra significado prático no que faz e sabe negociar e seguir regras em função de motivações internas, ao mesmo tempo que se instrui, aprende a analisar, julgar, cooperar, enfim, trabalhar de forma responsável e significativa para o bem comum. A Pedagogia de Projeto é uma resposta possível ao problema de, ao mesmo tempo, atenuar a consciência cínica e levar, via desenvolvimento global da pessoa do educando, à conquista da cidadania e à construção de uma nova sociedade. Mas essa situação não se enraíza por decreto. Tanto que, no início deste artigo, havíamos mencionado uma situação pedagógica em que se procurou trabalhar na perspectiva da Pedagogia de Projeto e houve resistência passiva cínica por parte de um segmento da classe (para lembrar, os estagiários do Português VIII do Curso de Letras). O mesmo havia ocorrido com os alunos de 2º grau da acadêmica AM quando esta tentou implementar a metodologia comunicativa, centrada no aluno. Então, falta mais um ingrediente na nossa fórmula. E qual seria?
Resposta: “rasgar” o antigo contrato didático e adotar o novo...de comum acordo! Devemos ter em mente que o nosso ambiente educativo cria nos alunos (e nos professores), ao longo dos anos, uma série de hábitos de conduta em classe, alguns conscientes, outros inconscientes. E não nos desfazemos deles num estalar de dedos. Peirce dizia que a formação de novos hábitos passa pelo abandono de velhos hábitos, assim que decidamos fazê-lo em função da força que certas idéias, consideradas certas, adquiram na nossa mente. É necessário, portanto, que tanto o professor quanto os alunos adquiram, de dentro para fora, a convicção de que a mentalidade constitutiva do contrato didático “cínico” deve ser substituída por uma nova. Acreditamos, com base na leitura que fazemos
da doutrina de Freire à luz da psicanálise e com respaldo em nossa própria experiência, que essa disposição para mudar pode ser facilitada ou catalisada por determinado tipo de fantasia sustentadora da nova prática: a saber, que ambos os lugares da interlocução pedagógica — aluno e professor — imaginem-se compartilhando do “mesmo” objeto de desejo. Na verdade, pode-se dizer que os discursos do educador pernambucano não têm apenas uma verdade fulcradora; têm igualmente uma sedução fantasmática que opera em nível do imaginário. Se compartilharmos do “mesmo” objeto de desejo de Freire, nos sentiremos convidados a comungar do caminho que ele propõe trilhar. Essa lição o autor não nos dá com a explicitude com que comunica outras. Mas é possível lê-la nas suas entrelinhas. E experimentar, como professores (e alunos), essa estratégia do discurso sedutor — verdadeiro desafio apaixonante — em nosso ambiente profissional.


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