Reproduzo abaixo um interessante exemplo de análise da "consciência cínica" - no caso, aplicada a estudantes. Claro, qualquer semelhança com situações atuais (não) é mera coincidência. O autor aplica conceitos psicanalíticos e utiliza uma abordagem inspirada em Zizek...
(Publicado em Linguagem & Ensino, Vol. 2, No. 1, 1999 (87-106))
Salvai-os porque eles sabem o que fazem ou da consciência cínica à autonomia no cotidiano escolar
Marcos Gustavo Richter
Universidade Federal de Santa Maria
RESUMO: Partindo de um impasse pedagógico de sala de aula, este artigo começa flagrando a consciência cínica subjacente a essa situação. Passa a analisar suas características e seu modo de funcionamento em termos de uma psicanálise da ideologia e das relações que o cinismo mantém com a forma pós-moderna de consciência. Em seguida sugere a Pedagogia de Projeto como caminho para reverter o processo. Mostra como a forma-sujeito do educando na Pedagogia de Projeto é antagônica às formas típicas do sujeito-histérico e do sujeito-obsessivo. Conclui propondo que as mudanças passem pela busca de um objeto comum de desejo, mediada por um discurso sedutor.
CONSCIÊNCIA CÍNICA
Palavras-chave: Educação, Psicanálise, Pesquisa-Ação.
No segundo semestre de 1997, acadêmicos-estagiários do Curso de Letras da UFSM, cursando a disciplina de Português VIII, procuravam aplicar os ditames da Pesquisa-Ação aos seus alunos de estágio supervisionado. Com o gerenciamento do professor (o autor deste artigo), estudavam as premissas e as estratégias desta abordagem pedagógica, planejavam, em grupos, as aulas comunicativas de língua portuguesa a serem ministradas no estágio, recolhiam os trabalhos dos alunos e as observações feitas em aula, retornavam à disciplina e trocavam idéias sobre o que havia acontecido, redimensionando suas práticas e os pressupostos acerca destas. Um desses acadêmicos, a formanda AM, assessorada pelas demais companheiras de grupo, buscava a forma de resolver um problema que se mostrava recalcitrante nas suas aulas: a maioria dos alunos esquivava-se de participar das atividades propostas pela acadêmica — não obstante o caráter comunicativo e sócio-interacionista dessas práticas. AM relata que, embora tivesse experimentado diversos meios de persuasão para, ao menos, minimizar o problema, não obteve resultados satisfatórios. Diante da situação, o grupo decidiu elaborar um questionário a ser respondido pelos alunos envolvidos e um protocolo de observação do comportamento desses mesmos alunos durante as aulas. Estes instrumentos tinham por objetivo detectar possíveis causas para o impasse. Tendo obtido, sistematizado e comparado os dados, AM e suas colegas detectaram uma flagrante contradição entre as respostas que os alunos forneciam acerca de seus comportamentos, preferências e valores atinentes às aulas, de um lado, e as atitudes reais dos alunos registradas pelo grupo, de outro lado. Aquelas eram surpreendentemente “bemcomportadas”: os alunos gostavam da nova metodologia, consideravamse participativos; já estas revelavam comportamento dispersivo e nãocolaborador.
A impressão que ficava era de que a classe de modo geral procurava manter um “semblante”, uma “máscara” de correspondência às expectativas da professora (AM), como se apenas importasse para os alunos dizerem a ela o que ela gostaria de estar ouvindo sobre as aulas que ministrava, fosse ou não verdade.
Ficou, então, a pergunta para reflexão: por que o estudante diz uma coisa (ou diz que pensa uma coisa) e faz outra bem diferente, até oposta? E, de uma maneira mais ampla: de onde vem a incoerência que atravessa endemicamente a prática pedagógica? O objetivo deste artigo é discutir este problema e sugerir uma alternativa viável para, se não solucioná-lo, ao menos atenuá-lo. Procuraremos equacionar nossos argumentos à luz dos referenciais teóricos da Psicanálise Lacaniana e da Investigação-Ação.
De início, parece oportuno mencionar três fatos acerca dessa contradição entre a prática e o discurso sobre a prática. Primeiro: ela foi observada também na própria Academia. Num caso, entre alguns (não poucos) dos próprios estagiários, no Português VIII, desta vez pelo professor da disciplina; e noutro caso, por uma mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM, a respeito de colegas que cursavam com ela uma mesma disciplina. Vemos, portanto, que não se trata, absolutamente, de um fenômeno restrito à adolescência ou ao ensino fundamental e médio, ocorrendo até mesmo com adultos consumados e bem escolarizados, em programas de estudos avançados. Segundo: ela visivelmente passa a ocorrer a partir do momento em que os indivíduos envolvidos no esquema de ensino-aprendizagem se colocam no papel de alunos ou então em posição subordinada no espaço pedagógico, mostrando que essa incoerência atitudinal está de alguma maneira associada à ocupação desses lugares discursivos.
Não estamos, absolutamente, insinuando, com isso, que a prática exercida pelos professores se isenta de contradições entre o que se diz e o que se faz. Muito pelo contrário, isso ocorre tão amiúde que se torna um obstáculo muito sério para a eficácia dos programas acadêmicos de formação continuada de professores. Para que fique bem claro, o que estamos discutindo aqui é a tendência indesejável ao disfarce, à denegação de ações educacionalmente reprováveis por meio da palavra “bemcomportada” aos olhos daqueles que se colocam na posição e no direito de “fazer cobranças”.
E essa tendência se constata em: alunos cobrados por professores; professores, no papel de alunos (em cursos), cobrados por outros professores; e professores cobrados por superiores hierárquicos ou autoridades educacionais e acadêmicas. Em contraste, os indivíduos envolvidos no processo educativo, quando no exercício da autoridade, não se sentem na obrigação de “agradar” (exceto a quem eventual e arbitrariamente escolham, mas essa é outra questão); afinal, são “meros cumpridores da lei”, doa a quem doer.
Se nos detivermos a examinar a fundo as relações discursivas dentro da esfera educacional; e se ainda nos lembrarmos do caráter inerentemente autoritário dessas mesmas relações, encontraremos, num primeiro momento, alguma justificativa para o que poderíamos considerar uma forma de resistência passiva do aluno à colaboração com o professor (ou do professor para com os recursos humanos hierárquica ou academicamente superiores); e, num segundo momento, possíveis opções de trabalho que contribuam para reverter, ainda que em parte, esse quadro lamentável de acomodação...cínica.
Sim, cínica. Essa é a palavra-chave que qualifica a consciência pedagógica endêmica nos meios educacionais. Zizek (1991, 1992) a emprega para analisar os pressupostos psicanalíticos do discurso autoritário. E, neste primeiro momento, procuraremos elucidar os mecanismos que propiciam a emergência da consciência cínica nesta instância genuinamente autoritária das relações sociais: o espaço escolar. A interface psicanálise-ideologia constituirá o referencial descritivo-explicativo de onde partiremos para, num segundo momento, flagrar o imbricamento da consciência cínica com o fenômeno pedagógico que constitui o núcleo do problema mencionado de início.
Do interior das reflexões de Zizek emerge a discussão do que se configura como um sintoma dos lugares discursivos articuladores da palavra do poder, na ideologia. “Eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem” — eis o sintoma. Trata-se da manifestação de uma patologia social na qual a justificativa verbal para a prática se acha em contradição com a própria prática. O leitor, sem dúvida, pôde ler esse mesmo sintoma no espaço pedagógico — igualmente autoritário e cínico. Zizek, ao discutir o cinismo, opõe esta forma de consciência àquela implicada no conceito marxista de ideologia: uma “ingenuidade constitutiva” (Zizek, 1991, 59), um desconhecimento de suas próprias premissas, instituindo uma clivagem entre o que se faz e a falsa idéia que se tem a respeito, e inclusive levando a aceitar um discurso justificador que inverte valores, implicações, objetivos. A (pretensa) universalidade da ideologia — tanto quanto da forma semioticamente doentia desta última, o mito — esconde que, na verdade, é acionada por uma particularidade (isto é, uma contingência histórica) ligada a interesses de classe.
O que seria, então, a razão cínica, e em que sentido se oporia à forma de consciência “distorcida”? Já de antemão ela se apresenta com um caráter mais perigoso, já que mais resistente à mera discussão reveladora dos avessos da razão. E isto porque agora a ingenuidade não se encontra mais presente naqueles que “sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem”. A violação da congruência entre o discurso moral e a moralidade prática não é mais escamoteada, não mais passa despercebida a ninguém. Tudo transcorre como se houvesse, por parte de quem agencia o discurso do poder ou experimenta o exercício da palavra nesse lugar, uma licença para a prática fora-da-lei, desde que o discurso correspondente permaneça asséptico. É bem a permissão para a incoerência, contanto que o valor da palavra justificadora não se perca — paradoxalmente uma palavra que não justifica nada a não ser a si mesma, um discurso que, pairando por sobre a razão prática, e apesar desta, tem como única função celebrar a não-renúncia à falsa universalidade.
Diferente da carnavalização do poder, que se esgota na mera ridicularização catártica do hiato entre o sujeito do enunciado (o eu-palavra) e o sujeito da enunciação (o eu-existênci/ação), vale dizer, no simples desnudamento da imoralidade e dos excessos do dominador — ridicularização essa que funciona pela remissão dos enunciados ideológicos às suas situações de enunciação — o cinismo de certo modo inverte essa perspectiva. Explicando melhor: se, na carnavalização do poder, a máscara
assumidamente falsa é posta e logo a seguir tirada (lembremos os rituais de coroação-destronamento bufos em praça pública), na consciência cínica, a máscara, uma vez colocada, permanece reconhecida como máscara mas não é tirada; ao contrário, ela se “fixa”, permanecendo a
ponto de se tornar uma espécie de “rosto necessário”. Daí a inversão que o cinismo opera em relação ao procedimento carnavalesco: neste, se a face for coberta com a máscara, esta passa a incomodar e deve ser arrancada; naquele, se a máscara for retirada da face, será esta a incomodar e deve ser novamente recoberta. A consciência cínica, portanto, é a fachada necessária sob a qual as práticas sociais espúrias precisam se apresentar — sob pena de se revelar um rosto informe, perturbador, incompatível com a dignidade humana. Dorian Gray seria exatamente a típica personagem cínica. Se seu verdadeiro rosto se revelar (aquele que vai se plasmando no retrato), o que ocorre ao final do romance, ele morre. Alegoricamente, sua dignidade e sua humanidade morrem.
Talvez o medo de se descobrir essa “fisionomia informe autêntica” no processo de desmascaramento funcione como uma metáfora do fato de que, justamente porque o cínico sobrevive da legitimação do distanciamento entre princípios discursivamente apregoados e atos concretos correspondentes, para a consciência cínica é insuportável a transgressão aberta e declarada da lei; ou, em outras palavras, "alçar-se a transgressão à condição de um princípio ético" (Zizek, op. cit., 60). O que perturba profundamente a razão cínica é a perspectiva de ver brotar da prática “fora da lei” novos hábitos, novas tendências que pudessem vir a se tornar códigos paralelos e legitimados de conduta — códigos estes passíveis até de se converterem em lugares discursivos eticamente alternativos e opositivos aos vigentes.
A razão cínica é mais resistente aos questionamentos exatamente porque a forma tradicional de crítica ideológica, cujo modo típico de funcionamento é a “leitura do avesso”, a dialetização, não funciona neste caso. Não há nada que precise ser posto a descoberto, qualquer revelação mais cedo ou mais tarde resvala num desanimador “diga algo que eu ainda não saiba”.
Torna-se necessário buscar outras premissas de funcionamento da razão cínica, no intuito de vislumbrar pistas para fazer frente a esta forma de consciência cujo perigo é consolidar-se cada vez mais como meio de manipulação não levado a sério; ou também, como instrumento de opressão-exclusão acompanhado de uma confessada apatia verbal. Para tanto, Zizek propõe demonstrar que a própria realidade social é constitutivamente distorcida, impregnada de ilusão.
Na esfera do valor (lato sensu), por exemplo, enquanto que, intelectualmente, o burguês “sabe” que o universal é a extensificação, a generalização de propriedades do particular, ele age às avessas, ou seja, como se as coisas passíveis de investimento de valor fossem a concretização particular de abstrações, de qualidades universais. Essas abstrações aparecem “do nada”, como entidades platônicas sempre-já presentes — quando o que se tem na verdade é a operação de deslocamento de categorias historicamente determinadas para outro lugar estranho, ilegítimo. Tem-se aí o modo típico barthesiano de estrutur/ação do mito. Essa dimensão mítica da realidade social eqüivale, no quadro teórico da psicanálise lacaniana, à fantasia ideológica: seu lugar privilegiado de funcionamento é o registro do Imaginário.
Há, portanto, na consciência cínica, uma dupla distorção. De um lado, a dissociação patológica entre discurso e prática; de outro, a clivagem entre a prática enquanto dimensão social articulada em signos e o real (não a “realidade”, que é sócio-histórico-cultural) como insistência cega, bruta, para além das significações que impregnam as práticas culturais. Para que fique mais claro, examinemos o conceito de signo em termos peirceanos. Um signo, por definição, é algo que se coloca no lugar de outra coisa e vale por essa coisa para alguém (na verdade, isto é rigorosamente correto na Antropossemiose, isto é, no âmbito da realidade cultural humana). Colocar-se no lugar de outra coisa, representá-la, significa exercer os mesmos efeitos que a coisa-ela-mesma exerceria, como um verdadeiro preposto dela. Ocorre que um signo não é capaz de recobrir ou incorporar todas as propriedades de seu objeto, exaustivamente falando; porque, se isso ocorresse, não seria mais um signo, e sim outro objeto idêntico, não mais se falando em “representar”. Sendo assim, o signo revela somente alguns aspectos de seu objeto, deixando os demais “no escuro”. Mas, ao pretender valer pelo objeto inteiro, o signo “quer ser mais do que de fato é capaz de ser”, e assim não só revela o objeto, mas também o falseia. O incompleto se arvora em completo; ou mais sutilmente: o que funciona como se fosse completo, mais cedo ou mais tarde acaba denunciando a própria incompletude Em suma, as práticas sociais, signos-ação, constituem-se numa verdadeira (e intrincada) rede de entidades-como-se: o simulacro passa a ser a própria forma (sígnica, bem entendido) de articular os valores sociais dos objetos e práticas culturais. Vemos, então, que, no cinismo, a ilusão não está do lado do saber (discurso) acerca da prática, e sim no bojo da própria prática — no lugar do “como se” das ações e relações sociais e das formas simbólicas e mercadológicas que as corporifiquem. O estatuto dessa ilusão é inconsciente. As práticas culturais, vistas enquanto códigos introjetados e automatizados (em grande parte fora de nossa deliberação voluntária), tornam-se o próprio quadro identificatório (no nosso imaginário) ao qual nos apegamos, como uma verdadeira “pele psicológica”, da qual não podemos nos desvencilhar como faria um réptil e também não somos capazes de nos “excentrar” (falar e agir de fora dela).
No entanto, há um caminho que permite subverter, ao menos em certo grau, esse mecanismo produtor de ilusão. Sabemos que o investimento de valor, por exemplo, ao fazer o percurso da universalidade para a particularidade, percorre um caminho inverso ao da indução empírica, que vai da particularidade à universalidade. Estamos erroneamente “habituados” a aceitar que as categorias abstratas (cuja forma de legitimação, como vimos anteriormente, é mítica) se achem manifestadas na particularidade das coisas concretas, contingentes. Ora, se a forma não obscurantista de obtenção de conhecimento vai da particularidade para a universalidade, a solução parece consistir em lançar mão de uma teoria da investigação que contemple essa perspectiva. E ela existe. Vai da singularidade (da formulação de uma hipótese) para a particularidade (da dedução das conseqüências acarretadas por essa hipótese) e por fim à universalidade (da indução das propriedades de toda uma classe de fenômenos ou objetos a partir da observação controlada).
Trata-se do percurso proposto pela semiótica peirceana para a obtenção de formas de conhecimento relativamente pouco atingidas por preconceitos e autoritarismo — a saber, abdução, dedução, indução em ciclos de complexidade crescente.
Em outras palavras: a forma de conhecimento capaz de exercer uma contraforça à estruturação cínica da consciência social é justamente aquela que prescreve a categorização indutiva da vivência empírica sob o crivo de uma atitude metodicamente escrutinadora. Esse posicionamento, familiar ao semioticista de linha peirceana, é compartilhado pela investigação- ação educacional emancipatória de Carr e Kemmis (1988) e pela educação dialógica libertadora de Paulo Freire.
O automatismo, a distorção e a interpelação características da lei e presentes na fantasia ideológica (considerada esta a raiz psicanalítica da consciência cínica) vêm ao encontro de uma importante função desta dimensão psíquica: tampar a fenda aberta pelo caráter cego, cruel, gratuito e violento da própria instauração da lei. O fundamento da autoridade é a mera aceitação, o que conduz gradativamente ao hábito de conduta. Não há qualquer justificativa para o poder, externa ao mesmo poder: ele se sustenta no nada, no inefável. A origem da lei fica fora de discussão, e a dissimulação do caráter usurpatório da lei é a condição para que
ela se implemente e seja eficaz, isto é, funcione como mecanismo coercitivo- punitivo. No começo de toda a lei há sempre um certo “fora-dalei”. Esse objeto obsceno da lei, o objeto-causa-do-desejo, se encontra num lugar diferente daquele em que o sujeito desejante está situado — o sujeito dividido entre duas dimensões irreconciliáveis, a do enunciado e a da enunciação. Se, de um lado, o sujeito, ao exercer seu papel de desejante, perde para sempre o objeto-causa-do-desejo, de outro lado, esse mesmo sujeito, ao situar-se no lugar equivalente ao do real bruto, renuncia a desejar. O que implica alienar ao Outro (à letra da lei) a justificação de sua atividade executora cruel: o carrasco exerce sua “legítima”(?!) violência fazendo- se de mero instrumento (não-sujeito) da vontade do Outro, trabalhando para o gozo desse Outro.
Nesse sentido, toda lei se desdobra em uma vontade que interpela os indivíduos (assujeitados pela interpelação) à “responsabilidade” de ter de corresponder ao conceito expresso pela letra da lei, ao mesmo tempo que abriga em seu avesso um real violento, sádico, correspondente à sanção ou exclusão destinadas aos que não se enquadrarem nessa lei. A expressão psicanalítica “Kant com Sade” denota exatamente esse perfil da lei, a saber, inquestionabilidade com violência, o inexorável prescrever- excluir:
“É essa, pois, a divisão entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação da lei: por trás do S1, da lei em sua vertente neutra, pacificadora, solene e sublime, há sempre um lado do objeto que anuncia a malignidade, a maldade e a obscenidade.” (Zizek, 1991, 67)
Podemos, a esta altura, passar à pergunta: que sentido apresenta a consciência cínica para a sociedade pós-liberal burocrática (pósmoderna)?
Segundo Zizek, o totalitarismo contemporâneo institui uma diferença radical na forma social de funcionamento da lei, em comparação com a época considerada “clássica”: o elemento fora-da-lei que se arvora em agente-executor desta última, antes oculto, agora aparece de maneira clara, por meio de um objeto institucional que se apresenta não como o fruto de um arbítrio, e sim como a manifestação de leis “objetivas”. No caso discutido pelo autor — o do partido stalinista — este objeto institucional se apresenta como o corporificador da inevitável necessidade das leis do desenvolvimento histórico. Mas basta que uma série de “leis” ou generalizações científicas — a voz da razão instrumental, técnica — seja invocada para sustentar a “necessidade objetiva” de uma conjuntura histórica, para que o agente do poder se desloque da posição de sujeito desejante e ocupe a posição do objeto-causa-do-desejo (o lugar fora-dalei).
Uma vez efetuado esse deslocamento, o agente do poder, a partir desta perspectiva, esconde seu caráter de sujeito-dividido (que abriga uma contradição entre a palavra que emite para representá-lo e às suas idéias e a prática social que realiza) e, em nome de um Outro despersonalizado (alguma instituição humana abstrata), exerce sua malignidade obscena diante de sujeitos (alijados do poder) histericizados, ou seja, aqueles cuja forma de assujeitamento no discurso consiste em acionar seu desejo incessantemente, em vão. O agente social opressor, no contexto pós-liberal, deliberadamente
renuncia a se apresentar de forma subjetiva. Mas, na verdade, o que ele faz é objetivar e instrumentalizar sua própria posição subjetiva — fato que não aparece aos olhos do sujeito despossuído histericizado ao qual se pretende “aplicar” a lei.
Esse agente social assume, em conseqüência, a máscara de um desprendimento cínico e, simultaneamente, a sólida convicção de ser o mero concretizador de leis históricas ou de tendências objetivas de um mundo (aparentemente) à margem de vontades individuais. Não à toa, o totalitarismo caminha lado a lado com a hegemonia da razão instrumental (Habermas,1983; Carr e Kemmis, 1986).
Dado que a autoridade clássica é a autoridade da performatividade subjetiva — eu, como Senhor poderoso, decido e, em decidindo, assim será —, mais exatamente uma forma irracional de autoridade, na qual o real fora-da-lei irrompe na forma dessa mesma irracionalidade volitiva; com o advento do liberalismo iluminista (fins do século XVIII), busca-se uma alternativa racional para a irrupção do real nas ações e relações sociais. Essa alternativa consiste em alicerçar o exercício da autoridade num “saber” ou “saber-fazer” (competência) evidente, vale dizer, no conhecimento ou na estipulação científica dos fatos sobre os quais esse agenciador do lugar do poder reclama seu domínio. O superego para o qual trabalha esse agente-executor, superego esse encarnador da crueldade canibalesca do real, apresenta-se à consciência social como um recorte pertinente do conjunto de leis objetivas e necessárias a permearem a existência humana. Ou, nas palavras de Zizek, “o semblante de um saber neutro, objetivo, sob o qual se oculta o objeto-agente obsceno de uma Vontade superêuica” (op. cit., 70), a vontade de um superego materno, mais opressivo, arbitrário, devastador, excluidor do que o clássico superego paterno, mais disciplinado, previsível e fiel à letra da lei.
Submisso à vontade do superego materno, pré-edípico, que funciona articulado a uma subjetividade histérica narcísica (no sentido de uma forma patológica de narcisismo), assujeita-se o indivíduo burocrático, pós-moderno. Este, incitado a inflamar-frustrar seus desejos (funcionamento de consciência que o mantém perpetuamente histericizado), é um sujeito que “não leva a sério as regras sociais, aquele que evita a identificação com a ordem social, o não-conformista que está sempre tomando distância...”(id.,ibid., 72). O Grande Outro que interpela o indivíduo contemporâneo como sujeito “desejante e “cioso de seu papel” cada vez mais incorpora os traços de uma Mãe Nutriz, a qual, à margem do efeito castrador da Lei Paterna (cuja função é justamente atuar como regulador unindo o desejo à limitação da lei e disciplinando o gozo) manifesta-se sob um desconcertante despotismo benévolo.
O autor iugoslavo oportunamente comenta:
“Talvez o sinal mais visível dessa transformação seja a substituição da justiça punitiva pela justiça terapêutica: não se é mais culpado (ou seja, responsável), e todo delito deve ser compreendido como resultado das circunstâncias sócio-psicológicas(...) esse culto da expressão autêntica, liberta das regras alienadas, [é] como a forma de manifestação de uma dependência pré-edipiana, como a própria forma da subordinação a um
supereu materno muito mais feroz e caprichoso do que o bom e velho ideal do eu paterno.” (Zizek, op. cit., 72-3)
O pensamento pós-moderno caracteriza-se por esvaziar os mecanismos identificatórios, no imaginário e no simbólico, que sustentam as formações do ego ideal e do ideal do ego, respectivamente. Nas formas não-patológicas de assujeitamento, em que os mecanismos identificatórios são acionados de maneira normal, o sujeito se engata num ponto do Grande Outro, a partir do qual uma auto-imagem pode ser construída, tal que o sujeito se enxerga como alguém digno de ser amado por esse Outro em função daquilo que escolheu ser — caso típico da satisfação auferida pelo cumprimento de um dever, com a renúncia aos próprios interesses imediatos.
Ora, a partir do momento em que a identificação imaginária deixa de ser regida pelo ideal do ego (simbólico), ou seja, por uma grande Lei Ética com poder agregador-disciplinador social, a dimensão subjetiva do indivíduo se reduz à mera vivência imaginária não-direcionada e semlimites.
Esta dimensão é exatamente o lugar pré-edipiano por excelência, onde a forma superegóica materna pode atuar — aquela que não “castiga”, no sentido paterno do termo, mas faz pior, pois impõe o gozo como uma necessidade louca e feroz e pune o “fracasso social” com severidade bem maior (o superego pré-castração leva à exclusão e pune a exclusão, trucidando mais o indivíduo do que se enunciasse a regra e punisse quem não a obedecesse). A sociedade, para poder funcionar deste modo, necessita de criar um “consenso de obsolescência do modo paterno de autoridade”. Mas sai perdendo o sujeito que troca a voz do pai com seu conjunto de regras claras (mesmo arbitrárias) pela voz da “razão instrumental”, muito mais opressiva por ser, no fundo, totalitária —uma vez que o saber técnico com suas premissas é, na verdade, uma forma social de ação no mundo voltada ao interesse de dominar as forças da natureza, não A Forma universal e por excelência de o ser humano organizar todas as dimensões de sua existência (a ciência é um entre outros saberes válidos, não O Saber acima de qualquer outro).
Essa razão instrumental substitui o compromisso moral por um conjunto de “técnicas” para ser bem-sucedido na sociedade ou na vida. Ao não ter correspondido ao conceito de “indivíduo de sucesso”, o membro de um grupo acaba por sentir-se “à margem” do padrão imposto pela razão instrumental. O indivíduo paga o preço de não haver podido instrumentalizar o inefável (?!): a exclusão, com a correspondente marginalização psicológica; e, ironicamente, carrega essas conseqüências como dividendos por ter investido em sua “saúde mental”, eliminando “bloqueios psicológicos” e inibições e buscando a plena gratificação de seus impulsos. Não sem razão, o sujeito pós-moderno é débil, com uma caracterologia equívoca ou ambígua, destinado a não mais que a simples contemplação passiva do espetáculo de uma vida cujo controle lhe escapa, ou melhor, lhe é negado (como sujeito-agente). Isso, se não lhe for “restituído” na forma de simples jogos, entretenimentos e simulações (realidade “virtual”, a impostura da realidade “real”), os simulacros da auto-realização cidadã.
A formação contemporânea do perfil psicológico debilidadepassividade- cinismo — verdadeiramente uma introjeção mental da patologia das relações sociais no sentido puramente vygotskiano do termo — foi alvo do escrutínio de Adorno e Horkheimer, os quais, num artigo já clássico1, analisando a extrema planificação a que os fenômenos culturais se submetem no século XX, deixam entrever nas entrelinhas esse superego materno furiosamente devastador que convida incessantemente o indivíduo a submeter-se aos seus desígnios. Segundo os referidos autores da Escola de Frankfurt, a planificação do macrocosmo e do microcosmo culturais — ou seja, a busca de previsibilidade e domesticação tanto do público quanto do privado — propõe aos indivíduos uma mistificação fundamental: a falsa identidade do universal e do particular, ou seja, faz passar o grande engodo da equivalência entre as formas de inferência universalizante do empirismo inglês e os investimentos de valor platonizantes nos artefatos da publicidade e da indústria cultural. A conseqüência disso, já tivemos oportunidade de mencionar pouco antes: ficam confundidos os critérios de validação tecnocientífica do conhecimento e a manipulação míticoideológica das abstrações com as quais se pretende legitimar (fazer parecerem “naturais”, “necessidades objetivas”) os mecanismos de opressão e exclusão social. E os filósofos ainda acrescentam:
“Mas não se diz que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena.” (Adorno e Horkheimer, 1982, p. 160)
A mídia desenvolve os recursos através dos quais o espetáculo montado para o prazer estético do espectador cria para este a ilusão de que o mundo “lá fora” é o simples prolongamento do que ele vê no cinema (e hoje, no vídeo e em meios que literalmente apagam os limites entre a realidade e o artifício). O ideacional e o real (no sentido comum do termo) não mais se distinguem, nem mais valeria a pena tentar qualquer discriminação entre ambos: o simulacro se instala no próprio cotidiano2, lado a lado com a passivização da percepção e a perigosa atrofia da capacidade crítica. A mente do sujeito contemporâneo, estruturada (vygotskianamente falando) para uma forma estética de processamento, é apta a fazer, desse indivíduo, um não-agente, que só participa da vida social na qualidade de espectador quase-indiferente — um voraz ingurgitador de mensagens que o manipulam de forma amorosamente perversa, como um beijo da mulher-aranha. Com efeito, a rapidez e a aleatoriedade com que surgem à percepção os elementos que compõem os objetos culturais acabam por paralisar a imaginação e o discernimento do consumidor contemporâneo:
“ Aquele que se mostra de tal forma absorvido pelo universo do filme, gestos, imagens, palavras — a ponto de não ser capaz de lhe acrescentar aquilo que lhe tornaria um filme — não estará, necessariamente por isso, no ato da representação, ocupado com os efeitos particulares da fita. (...) Os produtos da indústria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração. Mas cada um destes é um modelo do gigantesco mecanismo econômico que desde o início mantém tudo sob pressão tanto no trabalho, quanto no lazer que lhe é semelhante.” (Id.,ibid., p.165)
Fica bem claro que, em um sistema econômico nestes moldes, o sentimento ético e cooperativo passa a ser substituído pela paródia da solidariedade: ri-se até mesmo da frustração, como se o “eu” ou o “outro” se projetassem num grande palco e não mais dissessem respeito aos sujeitos. O cinismo já se instalou e seus efeitos maléficos se fazem sentir. Eis o mecanismo perverso: a ação insidiosa de um superego que dá a ilusão de satisfazer sem limites e leva os indivíduos a renunciarem com alegria ao crescimento psicológico, “dispensados da fadiga da individuação” (id.,ibid., p. 193). Um superego dissimuladamente materno, que “não pode parecer que renuncia à ameaça de castração” (p.179) e cujo efeito é bloquear justamente o caminho pelo qual o sujeito pode se tornar agente e autônomo: a união entre o desejo e a lei.
Baldino (1993) discute a consciência cínica em termos do semblante que se acredita deva ter a escolarização — a aparência que esconde contradições sérias, equacionadas a partir do que se denomina “contrato didático”, conjunto de pressupostos éticos estipulados acerca dos papéis de aluno e de professor no ambiente escolar, bem como do que se considera ou não negociável nesse mesmo ambiente. O contrato didático, além de deixar mais ou menos tácito o que um professor deve esperar de um aluno e vice-versa, estipula as formas como o saber escolar progride: âmbito, cronologia e controle da natureza e da progressão desse saber. Em princípio, estas coisas todas deveriam ser negociáveis, pois estamos falando de um contrato. Mas tudo se passa, na realidade, de tal forma que “Na linguagem em que ocorre a negociação, os interesses dos alunos e do professor convergem sobre um ponto: fazer crer que a negociação não existe (Baldino, op. cit., 3)
O discurso pedagógico se desenvolve numa língua em que, sob significantes “universais” (dar matéria, dar nota, fazer revisão, etc.) se dissimula sempre uma língua particular, diferente de turma para turma, de professor para professor, de época para época. Um “faz-de-conta” domina o contrato didático, desde que não se fale “escancaradamente” desse faz-de-conta. E assim ingressamos num terreno já familiar para o leitor desde o início da presente discussão: a consciência cínica que atravessa e impregna o fazer pedagógico. Que fazer para atenuar esse faz-de-conta, esse posicionar-se num lugar imaginário onde o Outro demonstra sua aprovação, ao mesmo tempo em que se fecham os olhos para o caráter contraditório da prática que paralelamente acompanha esse semblante discursivo? Baldino sugere a metodologia da Assimilação Solidária: a avaliação é feita não sobre um desempenho do aluno indicativo de informação assimilada, e sim sobre a quantidade de trabalho realizado (em pequenos grupos) com conteúdos da disciplina, o qual é controlado por um questionamento que os membros do grupo fazem entre si. Para uma disciplina não-aplicada — Cálculo, no caso do autor — a sugestão parece excelente. Mas ao passarmos à área de Comunicação, em que o desempenho vale tanto ou até mais que o metaconhecimento, propomos outro tipo de encaminhamento, ainda sem trair os fundamentos da psicanálise lacaniana.
Trata-se da idéia, implicada no fenômeno (freudiano) de castração, de o sujeito se tornar capaz de unir o desejo à lei, o impulso criador ao limite e direcionamento das regras. Não há emergência do significante unário (a individuação), socialmente falando, exceto a partir do lugar do Outro, do código, da lei. É a partir do que a cultura estipula como limites e direções para o desejo investido que o sujeito pode migrar da posição histérica (ou obsessiva) para a de mestria — embora sempre na condição de incompleto, faltoso. Pedagogicamente, isto significa unir interesse (desejo) e esforço
(vontade) em direção a uma meta de maneira disciplinada (lei), meta essa considerada legítima dentro da cultura que fornece o código ao sujeito. A estratégia que permite ao sujeito operacionalizar este trajeto no espaço pedagógico é a Pedagogia de Projeto, fundamentada nos princípios da investigação científica peirceana e da investigação-ação educativa e, na sua versão centrada em atividades comunicativas, também na teoria da atividade verbal de Leontiev (apud Koch, 1997). Para Peirce (apud Bacha,1997), a forma verdadeiramente científica, e portanto não obscurantista, de chegar à verdade (ainda que histórica e relativa) consiste em seguir ciclicamente os três passos fundamentais seguintes:
· Abdução: vislumbrar hipóteses para determinados tipos de fenômenos, com base em algum conhecimento prévio acerca do fato intrigante — processo este em grande parte regido pelo acaso: as idéias aparecem de forma um tanto gratuita na mente, e podem até ser desencadeadas por meio de tentativa-e-erro.
· Dedução: inferir as conseqüências que necessariamente se seguem à hipótese retida pelo investigador, caso esta se comprove.
· Indução: pôr à prova experimental/observacionalmente, em condições controladas, a hipótese, tentando provocar o surgimento de conseqüências, para saber se elas correspondem fielmente ao que o investigador havia antes deduzido. Estas etapas podem ser realizadas individualmente, mas o conhecimento obtido deve ser compartilhado pelos pares, a fim de que um olhar do grupo de investigadores atuantes possa contribuir para validar e refinar as conclusões obtidas. A investigação-ação segue um trajeto cíclico-espiralado composto de quatro etapas básicas, que devem ser integralmente realizadas por um grupo investigativo, jamais por um indivíduo apenas:
· Planejamento: dado um problema (ligado ao contexto) que afeta o grupo, e geradas/selecionadas hipóteses para explicar esse problema, estruturar uma ação global (com suas eventuais sub-etapas) que, conforme se espera, tenha influência concreta sobre os fatores desencadeantes do problema, atenuando-os ou removendo-os (estado final este que constitui o objetivo ou conjunto de objetivos da ação a implementar).
· Ação: executar a ação (ou conjunto de ações) no contexto e nas condições estipuladas, mas com a suficiente flexibilidade para alterar algum elemento da ação durante a execução, se houver necessidade.
· Observação: observar com objetividade os resultados da ação ou conjunto de ações realizadas, colhendo os dados relevantes de maneira organizada.
· Reflexão: submeter as observações sistematizadas, à luz da hipótese de ação e dos conhecimentos prévios, ao crivo do pensamento crítico, para averiguar até que ponto os objetivos estipulados foram ou não atingidos, e até que ponto — retomando em seguida um novo ciclo, e assim por diante.
A teoria da atividade verbal, que, na verdade, não alimenta pretensões educativas e sim descritivas, postula que
“A linguagem é uma forma de atividade, e, assim sendo, deve ser encarada como uma atividade em geral, e, mais especificamente, como uma atividade humana. Como tal, toda atividade verbal possui, além da motivação, um conjunto de operações que são próprias do sistema lingüístico e que representam a articulação das ações individuais em que se estrutura a atividade, e um objetivo final que, como o motivo inicial, como o motivo inicial, tem um caráter basicamente lingüístico.” (Koch, 1997, 14, grifos da autora)
Essa atividade se desdobra em três aspectos:
· motivação (equivalente ao problema da IA);
· finalidade (equivalente ao objetivo da IA); e
· realização (execução, através de meios sociais, os signos, de uma atividade lingüística planejada, com possíveis modificações do roteiro no decurso dessa realização — equivalente à ação da IA). Só duas coisas da IA não estão aqui presentes: o caráter grupal da necessidade movente e a coleta sistemática dos resultados da interação.
A Pedagogia de Projeto nasceu no início do século como um desenvolvimento da doutrina educacional de John Dewey (1980), que defendeu uma pedagogia baseada na união entre interesse e esforço orientado e disciplinado. O autor argumentava que o malogro da educação poderia ser explicado como a dissociação entre essas duas instâncias, levando o aluno a não assumir sua prática e fazer de conta que realizava as atividades prescritas pelo professor. Se o eu da criança e a tarefa a
realizar estivessem em relação de incompatibilidade, as ações pedagógicas não passariam de atividades irrefletidas e sem valor formativo, dispersas e fantasiosas.
“Interesse verdadeiro é o resultado que acompanha a identificação do “eu” com um objeto ou idéia, indispensável à completa expressão de uma atividade que o próprio “eu” iniciou. “ (Dewey, 1980, p.158, grifos do autor)
Ou seja, na falta de uma verdadeira motivação, ou o aluno fica perdendo seu tempo com exercícios mecanicistas e sem propósito claro, ou inebria a mente com a sensação e a imaginação gratuita. E isto exatamente é o grande problema da formação escolar pós-moderna: a gratificação excessiva do pulsão sensorial do aluno, sem a disciplina de propósitos tal que o aluno a assuma de dentro para fora. O autor, então, propõe que o educador contribua para expandir construtivamente as forças da criança:
“Agir adequadamente na direção desses impulsos envolverá, naturalmente, da parte da criança, seriedade, concentração, clareza de propósitos e de planos. Assim se formarão hábitos de persistência e de tenacidade a serviço de objetivos cujo valor será por ela compreendido e sentido. (...) Interesse, em conclusão, significa atividade unificada, integrada.”
(Dewey, 1980, 158-9, grifo do autor)
Numa perspectiva psicanalítica, vale dizer: lei sem desejo é a patologia da obsessão, que, na educação, corresponde à atitude servil, ao conservadorismo tenaz, à ausência de criatividade. Por outro lado, desejo sem lei (ou melhor, sem nomeação) é a patologia da histeria, que, para um aluno, equivale a um estado psicológico caracterizado por confusão mental desembocando em atividades sem um propósito exato, ou talvez repletas de “senões”.
Já o desejo unido à lei, ou seja, ao nome (Nome-do-Pai), enseja o percurso rumo à mestria. O aluno que encontra significado prático no que faz e sabe negociar e seguir regras em função de motivações internas, ao mesmo tempo que se instrui, aprende a analisar, julgar, cooperar, enfim, trabalhar de forma responsável e significativa para o bem comum. A Pedagogia de Projeto é uma resposta possível ao problema de, ao mesmo tempo, atenuar a consciência cínica e levar, via desenvolvimento global da pessoa do educando, à conquista da cidadania e à construção de uma nova sociedade. Mas essa situação não se enraíza por decreto. Tanto que, no início deste artigo, havíamos mencionado uma situação pedagógica em que se procurou trabalhar na perspectiva da Pedagogia de Projeto e houve resistência passiva cínica por parte de um segmento da classe (para lembrar, os estagiários do Português VIII do Curso de Letras). O mesmo havia ocorrido com os alunos de 2º grau da acadêmica AM quando esta tentou implementar a metodologia comunicativa, centrada no aluno. Então, falta mais um ingrediente na nossa fórmula. E qual seria?
Resposta: “rasgar” o antigo contrato didático e adotar o novo...de comum acordo! Devemos ter em mente que o nosso ambiente educativo cria nos alunos (e nos professores), ao longo dos anos, uma série de hábitos de conduta em classe, alguns conscientes, outros inconscientes. E não nos desfazemos deles num estalar de dedos. Peirce dizia que a formação de novos hábitos passa pelo abandono de velhos hábitos, assim que decidamos fazê-lo em função da força que certas idéias, consideradas certas, adquiram na nossa mente. É necessário, portanto, que tanto o professor quanto os alunos adquiram, de dentro para fora, a convicção de que a mentalidade constitutiva do contrato didático “cínico” deve ser substituída por uma nova. Acreditamos, com base na leitura que fazemos
da doutrina de Freire à luz da psicanálise e com respaldo em nossa própria experiência, que essa disposição para mudar pode ser facilitada ou catalisada por determinado tipo de fantasia sustentadora da nova prática: a saber, que ambos os lugares da interlocução pedagógica — aluno e professor — imaginem-se compartilhando do “mesmo” objeto de desejo. Na verdade, pode-se dizer que os discursos do educador pernambucano não têm apenas uma verdade fulcradora; têm igualmente uma sedução fantasmática que opera em nível do imaginário. Se compartilharmos do “mesmo” objeto de desejo de Freire, nos sentiremos convidados a comungar do caminho que ele propõe trilhar. Essa lição o autor não nos dá com a explicitude com que comunica outras. Mas é possível lê-la nas suas entrelinhas. E experimentar, como professores (e alunos), essa estratégia do discurso sedutor — verdadeiro desafio apaixonante — em nosso ambiente profissional.
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