O colapso do comércio mundial é um dos grandes riscos da atual crise, que exigirá coordenação entre os governos para evitar medidas protecionistas que agravem ainda mais os desequilíbrios globais. Quem afirma é o economista americano Michael Pettis, professor de Finanças da Universidade de Pequim. Com experiência de quem já trabalhou em Wall Street, deu aulas na Universidade Columbia e vive há seis anos em Pequim, Pettis ressalta que o núcleo da crise está na relação entre Estados Unidos e China, os dois pólos do que se convencionou chamar de “desequilíbrio global”.
A reportagem e a entrevista é de Cláudia Trevisan e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 30-11-2008.
Durante uma década, os dois países viveram um equilíbrio instável, no qual os americanos consumiam mais que produziam e os chineses produziam mais que consumiam. Os Estados Unidos tinham déficits e a China, superávits crescentes em conta corrente - o indicador que mede o saldo de cada país em suas trocas comerciais e financeiras com o restante do mundo.
Os excessos desse arranjo levaram à crise no sistema bancário americano e à redução forçada do consumo nos Estados Unidos. Agora, segundo Pettis, virá o ajuste na China e nos países superavitários, que terão de reduzir de maneira expressiva a sua produção para se ajustar à demanda decrescente do restante do mundo.
Com sobra de produção e sem os tradicionais compradores, a China poderá tentar direcionar suas exportações para outros países, incluindo o Brasil. O risco é que isso desencadeie uma guerra comercial que leve ao colapso do comércio global, a exemplo do que ocorreu na Grande Depressão, quando as trocas de bens entre países recuaram 70% entre 1929 e 1934.
Eis a entrevista.
Qual é o papel da China na solução da crise mundial?
Os dois principais atores do desequilíbrio global são Estados Unidos e China. Os Estados Unidos porque durante dez anos consumiram muito além do que produziam e a China porque durante dez anos produziu muito além do que consumia. O excesso de produção da China era consumido pelo excesso de demanda americano. Havia certo equilíbrio, mas ele era insustentável. Ele implicava que os Estados Unidos teriam enormes déficits comerciais para sempre e a China teria enormes superávits comerciais para sempre. A questão era qual dos dois seria interrompido primeiro. A parada veio nos Estados Unidos e o excesso de consumo americano está se reduzindo.
Da maneira como o equilíbrio global funciona, se a demanda das famílias americanas cai, tem de haver um ajuste em algum outro lugar. O consumo caiu e agora a produção está muito alta.
O consumo privado nos Estados Unidos não vai aumentar. As famílias precisam poupar mais e consumir menos para quitar suas dívidas. Isso deixa a tarefa para o governo. Mas temos de ser muito cuidadosos porque, se apenas substituirmos as famílias pelo governo no excesso de consumo, não estaremos resolvendo o problema. Vamos apenas adiar o ajuste. Por isso, precisamos que o consumo aumente em outro lugar, e esse lugar é a China.
E o governo?
Se assumirmos que o consumo das famílias americanas vai cair 5% do PIB dos Estados Unidos, isso significa que o consumo na China deve se expandir em 17% do PIB chinês para compensar a queda. É muito, especialmente quando consideramos que o consumo na China gira em torno de 40% do PIB. Nós precisaríamos que o consumo aumentasse entre 30% e 40% para compensar a retração nos Estados Unidos. Isso não vai acontecer.
O sr. espera uma recessão global ainda mais severa?
Sim, vai haver uma desaceleração no mundo e nós temos de lembrar que, em 1930, o pior aconteceu nos países que tinham superávits em conta corrente. Eu acredito que a mesma coisa se repetirá agora.
O que vai acontecer com o excesso de produção?
Há três opções: contrair a produção - e o pior ainda está por vir -, vender mais dentro do país ou exportar. Se a China decide exportar, isso significa que outros países que também têm mais produção que demanda terão de suportar o custo do ajuste e fechar suas fábricas. É por isso que o momento atual é tão delicado. Se os países que têm superávit em conta corrente tentarem superar sua crise com o aumento das exportações, estarão resolvendo seus problemas por meio do agravamento da crise global. E o resto do mundo não vai tolerar isso, o que levaria a uma guerra comercial e a uma contração do comércio mundial. É muito interessante pensar nas décadas de 1920 e 1930 porque é a mesma coisa. Só que naquela época eram os Estados Unidos que produziam em excesso e a Europa que consumia em excesso.
Com a queda nas exportações para os Estados Unidos, existe o risco de uma invasão de produtos chineses em países que ainda têm alguma demanda, como o Brasil?
É um risco real. Por isso é muito importante que os líderes globais entendam os riscos e façam de tudo para resolver a crise, o que significa que os países que têm superávit em conta corrente, como a China, vão sofrer, pois o mundo não quer mais seu excesso de produção. É necessária uma resposta coordenada que leve a uma expansão fiscal de todos os países. Mas os países com superávit em conta corrente terão de fazer a maior expansão.
O pacote de US$ 586 bilhões anunciado pela China há três semanas é suficiente para evitar uma forte desaceleração da economia?
Não. O pacote envolve grande quantidade de dinheiro, mas não sabemos os detalhes. De qualquer maneira, há um problema de timing. A demanda americana está se contraindo muito rapidamente. Portanto, a fonte alternativa de demanda deveria se expandir no mesmo ritmo. Isso é muito difícil. Acredito que o próximo ano vai ser bem mais difícil para a China do que muitos esperam.
O encontro do G-20 em Washington deu alguma indicação de que haverá coordenação entre os países para enfrentar a crise?
Não, em parte porque as pessoas não entendem a natureza da crise. Como nos anos 30, vêem o problema como questão nacional. Com isso, muitas soluções não resolvem os problemas globais. Portanto, não são soluções. É muito importante que os líderes olhem a questão como um problema de balanço de pagamentos global e encontrem caminhos para resolver os desequilíbrios.
Um país pode exportar mais e tirar espaço de outros países.
Se os outros países estiverem dispostos a permitir isso, ótimo, encontramos um novo equilíbrio. Mas os outros países não vão permitir. Todo o mundo tem o mesmo plano e o mesmo plano dos países com superávit em conta corrente: “Vamos aumentar as exportações”. Mas, se os países com déficit em conta corrente estão reduzindo os déficits, isso significa que os países com superávit têm de diminuir seus superávits. Esse é o equilíbrio. Se você reduz seu déficit, eu tenho de reduzir meu superávit.
Como vê a situação do Brasil?
Eu sempre me preocupo com o Brasil quando ajustes ocorrem. Nos anos 50, 60 e 70, o Brasil lutou com grande dificuldade para superar sua dependência de commodities e desenvolver uma base manufatureira. A razão pela qual o Brasil fez isso era que a dependência de commodities se mostrou um péssimo negócio. Durante os anos de prosperidade, você tem grande crescimento. Mas, durante as contrações, você tem um colapso. Infelizmente, a enorme alta no preço das commodities nos últimos 10 anos levou muita gente a dizer: sabe de uma coisa, as commodities são um ótimo negócio. Mas o boom nunca dura para sempre. Em algum momento, acaba. Temo que o Brasil tenha de aprender por que o País lutou tanto no passado para se afastar da exportação de commodities. Quando o boom acaba, o ajuste é muito dolorido para os exportadores.
Que lições o mundo pode tirar de crises anteriores?
Coordenação global no estímulo fiscal. É necessária a clareza de que há problemas de excesso de consumo e de excesso de produção. O excesso de consumo está sendo atacado agora. Isso significa que o excesso de produção ainda precisa ser resolvido. Uma vez que o excesso de demanda se ajuste, o excesso de produção também se ajusta, e nós ainda não vimos esse ajuste chegar ao fim.