terça-feira, 25 de maio de 2010

A crise, motor do capitalismo




“Os bancos já grandes demais para falir tornaram-se ainda maiores! Nestas condições, desmantelar esses grandes conglomerados, por exemplo, separando-os em bancos de investimento e bancos de depósitos, deveria ser uma prioridade. Um banco grande demais para falir deveria ser igualmente grande demais para existir. Mas essa política implica uma profunda mudança das mentalidades, o que, ao menos por enquanto, parece bastante remota. Globalmente, o G-20 continua a pensar no contexto do capitalismo neoliberal. No entanto, se o nosso diagnóstico estiver correto, a persistência da crise vai exigir uma mudança de paradigma”, escreve André Orléan em artigo publicado no Le Monde, 30-03-2010. A tradução é do Cepat.

André Orléan nasceu em 1950 em Paris. Foi membro do Conselho Científico da Comissão das Operações da Bolsa, que se fundiu, em 2003, com o Conselho de Mercados de Capitais para formar a Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF). Desde 2006, é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Faz parte do comitê executivo da revista Annales. Histoire, Sciences Sociales.

Orléan é autor de vários livros, entre eles Le pouvoir de la finance [O poder das finanças] (Odile Jacob, 1999), A violência da moeda (Brasiliense), escrito em parceria com Michel Aglietta, e Da euforia ao pânico, já comentado em Notícias Diárias.

Eis o artigo.

A história do capitalismo coincide com a história de suas crises. Ao longo do período 1970-2007, podemos contar nada menos que 124 crises bancárias, 208 crises cambiais e 63 crises de dívida soberana! Mesmo que a maioria delas seja limitada a países periféricos, não deixa de ser uma declaração muito impressionante.

Confrontado com estes números, a ideia de auto-regulação dos mercados parece ser insuficiente. Para entender como o capitalismo administra seus excessos, parece que a hipótese alternativa de uma regulamentação pelas crises não carece de argumentos. Para se convencer disso, basta considerar o que se chama de "grandes crises" ou crises estruturais. Uma vez que são períodos de profunda mudança, seu papel no desenvolvimento histórico do capitalismo é crucial. O mais célebre deles é a Grande Depressão (1929-1939).

Trata-se de crises profundas, não só pela sua intensidade quantitativa, mas também qualitativamente pela extensão das transformações institucionais que elas iniciam. Estas crises são causadas pelo esgotamento de um modelo de crescimento que não consegue mais conter seus desequilíbrios. Para recomeçar, o sistema econômico necessita de novas regras, novas instituições e novos compromissos. Esta é a questão das grandes crises: reinventar um novo modelo de crescimento.

Assim, durante o período de 1929-1945, o capitalismo soube se transformar ao propor um projeto original, baseado não mais na concorrência para todos, mas sobre um ajuste permanente, centrado na grande empresa industrial, entre aumentos do salário real, ganhos de produtividade e crescimento. Para descrever este modelo que surge no final da II Guerra Mundial, fala-se de "regulação fordista”, por referência a Henry Ford, que havia compreendido que conseguir vender carros e obter lucros, os seus trabalhadores deveriam receber bons salários.

Após conhecer uma excepcional prosperidade, conhecido como os Trinta Gloriosos (1945-1973), o regime fordista entra, por sua vez, em crise. É a estagflação dos anos 1970 (1973-1982), que mistura de maneira inédita inflação e baixo crescimento. Se esta grande crise difere da de 1929, o seu significado permanece o mesmo: o fim de uma era e o advento de uma nova forma de capitalismo. Assim, após a estagflação dos anos 1980, emerge o capitalismo financeiro, também chamado de "capitalismo patrimonial" ou "capitalismo neoliberal".

A ruptura com o regime anterior é prodigiosa, especialmente pela magnitude experimentada pela desregulamentação financeira. Assistimos ao desmantelamento progressivo do quadro regulatório que, notavelmente, levou à eliminação de qualquer crise bancária durante o período fordista, entre 1945 e 1970. Politicamente, é a chegada ao poder dos governos liberais Margareth Thatcher, no Reino Unido (maio 1979), e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos (janeiro de 1981), que marca o início desta nova fase. Mas, do ponto de vista da regulação econômica, a origem desse novo capitalismo se encontra na transformação revolucionária que a política monetária conhece. Agora, a inflação é o alvo prioritário.

Para combatê-la, Paul Volcker, feito presidente do Federal Reserve (Fed), em 1979, pratica um aumento impressionante das taxas de juros no curto prazo, que chegam a 20% em junho de 1981. Essa política cria uma mudança completa e definitiva do equilíbrio de poder entre devedores e credores em favor dos últimos. De agora em diante, os proprietários de ativos financeiros não correm mais o risco de ver sal sua rentabilidade sendo corroída pela inflação. Eles têm o campo livre. Assim começou um período de 25 anos, que tem por característica central a de colocar a finança de mercado no centro da regulação, bem além da mera questão técnica do financiamento. Para dizê-lo com palavras simples, são os mercados financeiros que controlam de agora em diante os direitos de propriedade, algo nunca visto até então.

Nos capitalismos anteriores, a propriedade do capital era exercida sob a forma do controle majoritário em estruturas específicas fora do mercado, a exemplo do Hausbank alemão (“banco da casa") ou do controle familiar. O representante emblemático do capitalismo patrimonial é o investidor institucional. Ele é portador de uma nova governança corporativa, centrada sobre o “valor acionário".

A crise que começou em agosto de 2007 deve, em nossa opinião, ser entendida como marcando a chegada dos limites do capitalismo patrimonial e sua entrada em grande crise. Assim como os capitalismos precedentes, sucumbe quando o próprio princípio do seu dinamismo está se voltando contra ele para tornar-se uma fonte de desequilíbrios. Neste caso, é a questão financeira que se torna determinante. O capitalismo patrimonial não é mais capaz de controlar a expansão de seu setor financeiro, cujo peso é uma desvantagem ultrapassado um determinado umbral.

Para ver isso, consideraremos a dívida total dos Estados Unidos, no conjunto de todos os setores. Entre 1952 e 1981, durante o período fordista, seu crescimento permanece moderado: entre 126% e 168% do PIB. Durante a fase neoliberal, essa relação explode, chegando a 349% em 2008! O mesmo acontece com o total dos ativos financeiros dos Estados Unidos. Ele permanece estável de 1952-1981, entre 4 e 5 vezes o PIB, para depois aumentar em mais de 10 vezes o PIB em 2007. Em nível mundial, a observação é a mesma: o total dos ativos financeiros, que equivalem a 110% do PIB mundial em 1980, atingem 346% em 2006.

Se, inicialmente, a expansão financeira participou ativamente na formação do crescimento neoliberal, parece que hoje se tornou desproporcional. Acredito que este setor se apropria de 40% dos lucros totais norte-americanos em 2007, contra 10% em 1980, ao passo que representa apenas 5% do emprego. A desproporção é extrema. Ela pesa sobre a economia global, através de muitos canais. Primeiro, através das exigências de rentabilidade. A mundialização financeira dos direitos de propriedade deu aos acionistas substituídos pelos investidores institucionais um poder sem precedentes. Permitiu o surgimento de um padrão de desempenho em cerca de 15% para as empresas cotizadas. Esta exigência de rentabilidade é insustentável no longo prazo. Pouquíssimas atividades industriais oferecem retornos tão elevados.

Por conseguinte, a falta de empregos rentáveis, sob a pressão do valor acionário, as empresas foram obrigadas a fornecer capital aos acionistas através de dividendos ou recompra de ações. Sabemos que nos Estados Unidos a emissão líquida de ações é negativa nos últimos quinze anos. Em outras palavras, o mercado bursátil norte-americano financia os acionistas e não o contrário. Pelo fato de pesar sobre o crescimento dos países desenvolvidos e alimentar as estratégias de deslocalização, esta rentabilidade exigida leva a uma queda significativa do emprego industrial na Europa e nos Estados Unidos.

A segunda consequência é deduzida imediatamente: uma forte pressão sobre os salários. Ela decorre de uma relação de forças extremamente desigual entre uma representação unificada dos acionistas e uma extrema fragmentação das organizações sindicais. Por conseguinte, enquanto no regime fordista uma parte significativa dos ganhos de produtividade era devolvida aos trabalhadores, o que alimentava o dinamismo da demanda aquecida, isso não mais é verdade no capitalismo patrimonial. Os salários reais estagnaram, o que é um freio permanente para o crescimento econômico. Daí o recurso ao endividamento das famílias com os efeitos que conhecemos.

Terceira consequência: um grande aumento das desigualdades. Com efeito, uma característica central da nova governança corporativa é ter derrubado o alto management do lado dos proprietários. É toda a questão das novas regras de remuneração com vistas a alinhar os interesses dos dirigentes com os dos acionistas. Seguiu-se uma explosão das desigualdades nos países desenvolvidos. A diferença entre o salário médio dos operários e dos dirigentes passou de 40 para 500 nos Estados Unidos.

Ainda mais impressionante: se considerarmos os 90% dos trabalhadores menos ricos e compararmos a sua renda média com o 1% mais rico, no período entre 1973-2006 (33 anos) constataremos que em termos reais a renda média dos primeiros diminui ligeiramente quando é multiplicada por 3,2 para os mais ricos. Lembremos que no período precedente - 1933-1973 - houve uma certa recuperação. Essas desigualdades têm efeitos tanto políticos, como econômicos. Em última análise, é a unidade da sociedade que fica comprometida.

É impressionante constatar o quanto os mercados foram incapazes de influenciar ou mesmo simplesmente atenuar esses desequilíbrios. É uma lição que é preciso manter em mente. Assim, de acordo com a teoria da eficiência financeira, a concorrência teria que aumentar o bem-estar dos consumidores, ou seja, dos devedores de hipotecas, fornecendo produtos de boa qualidade, capazes de gerenciar os riscos que comporta o acesso à propriedade, a custos baixos.

É em nome de um tal resultado que a liberalização dos mercados foi justificada. E não para aumentar os bônus bancários. Isso não aconteceu. Da mesma forma, atraídos pelos altos salários, muitos dos nossos engenheiros mais bem formados migram para o setor financeiro. Será esta uma situação satisfatória quando se consideram todos os desafios técnicos que temos que enfrentar? A entrada em crise corresponde ao momento em que esses desequilíbrios são tão grandes que a coerência global é questionada. Levanta-se então a questão de uma nova regulação.

No entanto, a crise não oferece soluções fáceis. Longe disso, inicialmente, ela só agrava os problemas porque exacerba as tendências próprias ao capitalismo patrimonial. Tomemos a questão financeira, que, como vimos, exerce um papel crucial. Durante os últimos quinze anos, o setor bancário evoluiu para um elevado grau de concentração em torno de um pequeno número de bancos muito grandes. Esta tendência é problemática porque produz gigantes que, devido ao seu tamanho, são portadores de risco sistêmico.

Consequentemente, as autoridades públicas são, de fato, obrigadas a vir em seu auxílio em caso de dificuldades. Todos os economistas concordam em que essa situação não seja aceitável. Ela leva esses atores a assumirem riscos excessivos, posto que os lucros lhes revertem ao passo que as perdas são socializadas. Ora, a crise e as medidas de emergência tomadas pelas autoridades públicas acentuaram ainda mais a concentração do setor bancário. Tendo os bancos Bear Stearns, Lehman Brothers, Merril Lynch, Wachovia e Washington Mutual desaparecido, os demais tornaram-se ainda mais importantes.

Em outras palavras, os bancos já grandes demais para falir tornaram-se ainda maiores! Nestas condições, desmantelar esses grandes conglomerados, por exemplo, separando-os em bancos de investimento e bancos de depósitos, deveria ser uma prioridade. Um banco grande demais para falir deveria ser igualmente grande demais para existir. Mas essa política implica uma profunda mudança das mentalidades, o que, ao menos por enquanto, parece bastante remota. Globalmente, o G-20 continua a pensar no contexto do capitalismo neoliberal. No entanto, se o nosso diagnóstico estiver correto, a persistência da crise vai exigir uma mudança de paradigma.

As próximas dificuldades a serem enfrentadas são de duas ordens: não só a manutenção de um desemprego em massa nos países desenvolvidos, mas também o desenvolvimento de grandes dificuldades monetárias. Note-se que, até agora, a crise foi principalmente de natureza financeira e bancária. As autoridades públicas têm conseguido controlá-la graças à manipulação vigorosa da arma monetária. Para colocá-lo simplesmente, elas afogaram as dificuldades de liquidez com o apoio ativo dos bancos centrais.

Hoje, no entanto, a massa de liquidez assim produzida associada ao crescimento vertiginoso das dívidas públicas marca o início de uma nova fase em que a questão do valor das moedas comparece como central. A este respeito, não faltam os cenários de uma possível ruptura: o que aconteceu com a hegemonia do dólar, a unidade da zona do euro, a paridade do yuan ou a fraqueza da libra esterlina? É a coesão internacional do neoliberalismo que se encontrará então diretamente questionada.

As forças de instabilidade que vieram à tona em agosto de 2007 ainda não terminaram de fazer sentir seus efeitos devastadores.