"Robert Castel não se cansava de repetir que os
últimos 30 anos foram o cenário de uma profunda transformação na maneira de
representarmos nosso futuro. A crença de que o progresso social é produto do
desenvolvimento econômico, cujo objetivo é o aperfeiçoamento da sociedade – “o
amanhã será melhor do que hoje” – cedeu espaço a um pessimismo no qual o
desenvolvimento econômico é a razão de toda a desigualdade – “o amanhã será pior
do que hoje”, escreve Jorge Barcellos, doutor em Educação pela
UFRGS, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 06-04-2013.
Segundo ele, "para Castel,
desemprego, precariedade e concorrência responsabilizam cada individuo, que tem
apenas o Estado Social como amparo. Quando este Estado é criticado pelas
políticas neoliberais, o que resta de proteção desaparece e o ressentimento e a
angústia preenchem a subjetividade do cidadão".
Eis o artigo.
A morte de Robert Castel, em março, priva as Ciências Sociais de
um de seus mais notáveis investigadores. Nascido em 1933, Castel
foi professor de filosofia no ensino secundário até 1963, e iniciou uma
carreira acadêmica em 1967. Orientado em seu Doutorado por Raymond
Aron, notável crítico do conformismo da esquerda, desde os anos 1990
Castel foi professor de sociologia na Universidade de Paris
VIII, onde também foi Diretor de Altos Estudos. Foi também fundador e diretor do
Grupo de Pesquisa e Análise do Social e da Sociabilidade entre 1982-1990 e
Diretor do Centro de Estudos dos Movimentos Sociais entre 1995 e 1999,
experiência que resultou no aprofundamento daquilo que denominou de “questão
social”.
Castel não se cansava de repetir que os últimos 30 anos foram o cenário de uma profunda transformação na maneira de representarmos nosso futuro. A crença de que o progresso social é produto do desenvolvimento econômico, cujo objetivo é o aperfeiçoamento da sociedade – “o amanhã será melhor do que hoje” – cedeu espaço a um pessimismo no qual o desenvolvimento econômico é a razão de toda a desigualdade – “o amanhã será pior do que hoje”. Quer dizer: a grande transformação do capitalismo industrial em financeiro implicou não só em uma nova forma de produção social, mas também de regulação social, algo que o autor se propôs a analisar em sua obra Metamorfose da Questão Social (Vozes, 1998), atualizada depois em El Ascenso de las incertidumbres (FCE, 2010).
Ele define nossa época na esteira do conceito de crise de Claus Offe: “uma situação na qual as instituições estabeleci das e as evidências se encontram subitamente questionadas, em que surgem dificuldades inesperadas mas fundamentais, em que finalmente o futuro está em aberto”. Ele também agrega a essa noção o pensamento de Miguel Aglietta, que define nossa época como a da emergência da sociedade salarial, na qual os indivíduos se constituem ao redor de um contínuo de posições salariais interdependentes. A consequência é que “tudo circula, todos se medem e se comparam, porém, sobre a base de uma desigualdade de condições”. Castel atualiza a oposição de classes de Marx, substituída pela disputa entre grupos profissionais, mas não sem uma perda: a partir de agora, as desigualdades são superadas não na dialética da luta de classes, mas na negociação dos diversos grupos profissionais – fim da radicalidade da ideia de conflito. A crítica de Castel é que, neste sistema, a possibilidade de limita� �ão da arbitrariedade patronal e a existência de certa “proteção social” nada mais são do que um consenso débil do capitalismo industrial que, em realidade, amplia desigualdades em vez de reduzi-las, pois se trata mais uma vez de subordinar o mundo do trabalho ao do capital.
Mas Castel não se deteve a esmiuçar o mundo do trabalho. Ao contrário, suas primeiras investigações foram de sociologia, psiquiatria, psicanálise e cultura psicológica. Datam dos anos 1970 e 1980 suas primeiras obras nesse campo. Publicou O Psicanalismo, A Ordem Psiquiátrica (ambos pela Graal, 1978) e A Gestão dos Riscos (Francisco Alves, 1987). O primeiro é um retrato da evolução dos sistemas psiquiátricos e dos aparelhos repressivos que levam à psicologização da sociedade. O segundo livro dá um passo a mais, analisando as condições concretas da produção da loucura como objeto de saber (na linha de Michel Foucault) legitimado por instituições socialmente reconhecidas que terminam por formar um campo especifico (na linha de Pierre Bourdieu). A terceira obra critica a medicina mental, da antipsiquiatria à pós-psicanálise em debate na França dos anos 1980 (Laing, Guattari & Deleuze, etc.).
Como assinala Guilhon Albuquerque, trata-se de denunciar “o dispositivo teórico-prático que reproduz um modo de conhecimento e poder”. Em realidade, a análise do universo psiquiátrico preparou o terreno para a emergência da “nova questão social”. Dito de outra forma: se a genealogia de Foucault e o pensamento de Bourdieu permitiram a Castel descrever as contradições da psicanálise e da psiquiatria, esta análise foi uma espécie de “canteiro de obras” para o estudo dos modelos de proteção social. Basta ver que, para Castel, a psicanálise tem uma teoria, um método e uma técnica próprios, mas que ocultam valores e ideologias que se manifestam nas atitudes, concepções e ações sociais de seus atores. Quer dizer, a crítica de Castel à psicanálise – que se estende à sociedade salarial – é a da ocultação que ambos fazem de suas ideologias. Ele aponta as consequências de cada sistema para as práticas e as experiências individuais, seja no fato de que o psiquiatra disputa com outros profissionais (psicanalistas, psicólogos) um espaço de exercício de poder, seja no fato de ser um movimento social composto de organizações sectárias.
A importância de Metamorfoses da Questão Social (Vozes, 1998) está no fato de que Castel retoma e aprofunda a categoria trabalho, tal como formulada por Marx, para além das relações técnicas de produção. A expe riência do universo psicanalítico lhe permitiu inúmeras inflexões sobre o sentimento do desemprego e da ausência de perspectivas, integrantes da nossa subjetividade no mundo do trabalho. Castel denuncia o imaginário do desemprego como efeito do capital, e não característica individual. A “nova questão social” é, em primeiro lugar, a constatação do enfraquecimento da condição salarial com o fim do pleno emprego – cuja marca principal é o nascimento dos “trabalhadores sem trabalho” (os inúteis do mundo, segundo Arendt, o lixo humano, segundo Bauman). Com Castel, o conceito de precariedade emerge como nova característica do capitalismo, o que faz com que o Estado Social seja definido como “princípio de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de todos”. O problema para Castel é que, se o Es tado torna-se a principal fonte de proteção do indivíduo, e não atende este objetivo, é o próprio vínculo social que corre risco.
Qual é a ideia central de Castel? A de que, no capitalismo atual, a identidade pelo trabalho está perdida pela degradação da condição salarial. Essa condição é a força motriz do neoliberalismo, a redução do espaço do Estado, mote de A Insegurança Social: o que é Ser Protegido (Vozes, 2005). Espécie de resumo de seu pensamento, este pequeno texto parte da sociedade francesa moderna para caracterizar a angústia que o desemprego provoca em relação ao futuro dos indivíduos. Castel constata que, ao contrário das sociedades tradicionais, em que a segurança era garantida pelo pertencimento a uma comunidade, nossas sociedades vivem sob o signo da insegurança. A notável conclusão de Castel é que, ao longo da história, a comunidade de destino foi substituída pela propriedade como garantidora da segurança: somente os indivíduos com propriedades são capazes de darem segurança a si mesmos. Mas é preciso considerar que, de fato, há duas proteções: a primeira, de pessoas e bens garantidos pelo Estado de direito; e a segunda, a proteção social propriamente dita, as políticas de proteção oriundas da incapacidade do cidadão em função da idade ou desemprego. Vivemos em insegurança porque não podemos mais nos prevenir dos riscos que a vida oferece. Na propriedade social, que diz respeito ao direito do trabalho, os riscos de insegurança são reduzidos. O problema desta sociedade salarial é o questionamento formulado pelas politicas neoliberais que acompanham o desenvolvimento do capitalismo industrial e financeiro. Para Castel, desemprego, precariedade e concorrência responsabilizam cada individuo, que tem apenas o Estado Social como amparo. Quando este Estado é criticado pelas política s neoliberais, o que resta de proteção desaparece e o ressentimento e a angústia preenchem a subjetividade do cidadão.
Sua morte nos priva da reflexão sobre uma estratégia diferenciada de luta política frente ao fracasso do sonho de uma “sociedade do trabalho”. Castel, o reformista, jamais relegou a necessidade do Estado Protetor: é que ser protegido é não apenas dispor de direitos, mas de condições de independência, fundamento básico para uma sociedade de semelhantes, que é apenas outra forma de conceituar democracia.
Castel não se cansava de repetir que os últimos 30 anos foram o cenário de uma profunda transformação na maneira de representarmos nosso futuro. A crença de que o progresso social é produto do desenvolvimento econômico, cujo objetivo é o aperfeiçoamento da sociedade – “o amanhã será melhor do que hoje” – cedeu espaço a um pessimismo no qual o desenvolvimento econômico é a razão de toda a desigualdade – “o amanhã será pior do que hoje”. Quer dizer: a grande transformação do capitalismo industrial em financeiro implicou não só em uma nova forma de produção social, mas também de regulação social, algo que o autor se propôs a analisar em sua obra Metamorfose da Questão Social (Vozes, 1998), atualizada depois em El Ascenso de las incertidumbres (FCE, 2010).
Ele define nossa época na esteira do conceito de crise de Claus Offe: “uma situação na qual as instituições estabeleci das e as evidências se encontram subitamente questionadas, em que surgem dificuldades inesperadas mas fundamentais, em que finalmente o futuro está em aberto”. Ele também agrega a essa noção o pensamento de Miguel Aglietta, que define nossa época como a da emergência da sociedade salarial, na qual os indivíduos se constituem ao redor de um contínuo de posições salariais interdependentes. A consequência é que “tudo circula, todos se medem e se comparam, porém, sobre a base de uma desigualdade de condições”. Castel atualiza a oposição de classes de Marx, substituída pela disputa entre grupos profissionais, mas não sem uma perda: a partir de agora, as desigualdades são superadas não na dialética da luta de classes, mas na negociação dos diversos grupos profissionais – fim da radicalidade da ideia de conflito. A crítica de Castel é que, neste sistema, a possibilidade de limita� �ão da arbitrariedade patronal e a existência de certa “proteção social” nada mais são do que um consenso débil do capitalismo industrial que, em realidade, amplia desigualdades em vez de reduzi-las, pois se trata mais uma vez de subordinar o mundo do trabalho ao do capital.
Mas Castel não se deteve a esmiuçar o mundo do trabalho. Ao contrário, suas primeiras investigações foram de sociologia, psiquiatria, psicanálise e cultura psicológica. Datam dos anos 1970 e 1980 suas primeiras obras nesse campo. Publicou O Psicanalismo, A Ordem Psiquiátrica (ambos pela Graal, 1978) e A Gestão dos Riscos (Francisco Alves, 1987). O primeiro é um retrato da evolução dos sistemas psiquiátricos e dos aparelhos repressivos que levam à psicologização da sociedade. O segundo livro dá um passo a mais, analisando as condições concretas da produção da loucura como objeto de saber (na linha de Michel Foucault) legitimado por instituições socialmente reconhecidas que terminam por formar um campo especifico (na linha de Pierre Bourdieu). A terceira obra critica a medicina mental, da antipsiquiatria à pós-psicanálise em debate na França dos anos 1980 (Laing, Guattari & Deleuze, etc.).
Como assinala Guilhon Albuquerque, trata-se de denunciar “o dispositivo teórico-prático que reproduz um modo de conhecimento e poder”. Em realidade, a análise do universo psiquiátrico preparou o terreno para a emergência da “nova questão social”. Dito de outra forma: se a genealogia de Foucault e o pensamento de Bourdieu permitiram a Castel descrever as contradições da psicanálise e da psiquiatria, esta análise foi uma espécie de “canteiro de obras” para o estudo dos modelos de proteção social. Basta ver que, para Castel, a psicanálise tem uma teoria, um método e uma técnica próprios, mas que ocultam valores e ideologias que se manifestam nas atitudes, concepções e ações sociais de seus atores. Quer dizer, a crítica de Castel à psicanálise – que se estende à sociedade salarial – é a da ocultação que ambos fazem de suas ideologias. Ele aponta as consequências de cada sistema para as práticas e as experiências individuais, seja no fato de que o psiquiatra disputa com outros profissionais (psicanalistas, psicólogos) um espaço de exercício de poder, seja no fato de ser um movimento social composto de organizações sectárias.
A importância de Metamorfoses da Questão Social (Vozes, 1998) está no fato de que Castel retoma e aprofunda a categoria trabalho, tal como formulada por Marx, para além das relações técnicas de produção. A expe riência do universo psicanalítico lhe permitiu inúmeras inflexões sobre o sentimento do desemprego e da ausência de perspectivas, integrantes da nossa subjetividade no mundo do trabalho. Castel denuncia o imaginário do desemprego como efeito do capital, e não característica individual. A “nova questão social” é, em primeiro lugar, a constatação do enfraquecimento da condição salarial com o fim do pleno emprego – cuja marca principal é o nascimento dos “trabalhadores sem trabalho” (os inúteis do mundo, segundo Arendt, o lixo humano, segundo Bauman). Com Castel, o conceito de precariedade emerge como nova característica do capitalismo, o que faz com que o Estado Social seja definido como “princípio de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de todos”. O problema para Castel é que, se o Es tado torna-se a principal fonte de proteção do indivíduo, e não atende este objetivo, é o próprio vínculo social que corre risco.
Qual é a ideia central de Castel? A de que, no capitalismo atual, a identidade pelo trabalho está perdida pela degradação da condição salarial. Essa condição é a força motriz do neoliberalismo, a redução do espaço do Estado, mote de A Insegurança Social: o que é Ser Protegido (Vozes, 2005). Espécie de resumo de seu pensamento, este pequeno texto parte da sociedade francesa moderna para caracterizar a angústia que o desemprego provoca em relação ao futuro dos indivíduos. Castel constata que, ao contrário das sociedades tradicionais, em que a segurança era garantida pelo pertencimento a uma comunidade, nossas sociedades vivem sob o signo da insegurança. A notável conclusão de Castel é que, ao longo da história, a comunidade de destino foi substituída pela propriedade como garantidora da segurança: somente os indivíduos com propriedades são capazes de darem segurança a si mesmos. Mas é preciso considerar que, de fato, há duas proteções: a primeira, de pessoas e bens garantidos pelo Estado de direito; e a segunda, a proteção social propriamente dita, as políticas de proteção oriundas da incapacidade do cidadão em função da idade ou desemprego. Vivemos em insegurança porque não podemos mais nos prevenir dos riscos que a vida oferece. Na propriedade social, que diz respeito ao direito do trabalho, os riscos de insegurança são reduzidos. O problema desta sociedade salarial é o questionamento formulado pelas politicas neoliberais que acompanham o desenvolvimento do capitalismo industrial e financeiro. Para Castel, desemprego, precariedade e concorrência responsabilizam cada individuo, que tem apenas o Estado Social como amparo. Quando este Estado é criticado pelas política s neoliberais, o que resta de proteção desaparece e o ressentimento e a angústia preenchem a subjetividade do cidadão.
Sua morte nos priva da reflexão sobre uma estratégia diferenciada de luta política frente ao fracasso do sonho de uma “sociedade do trabalho”. Castel, o reformista, jamais relegou a necessidade do Estado Protetor: é que ser protegido é não apenas dispor de direitos, mas de condições de independência, fundamento básico para uma sociedade de semelhantes, que é apenas outra forma de conceituar democracia.
Nota
da IHU On-Line:
Robert Castel esteve na Unisinos, a
convite do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em maio de 2007,
onde proferiu uma conferência no Simpósio Internacional O Futuro da
Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
A conferência de Robert Castel foi
publicada no livro O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de
indivíduos? (São Leopoldo:Editora Unisinos), 2009, sob o título
"O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos:
Uma leitura sociológica".
Veja
também:
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