(sobre as leituras pós-modernas do fim do sujeito)
Por: João Pissarra Esteves
Universidade Nova de Lisboa
No debate em torno da questão da identidade, a oposição substancialismo/construtivismo continua hoje a marcar presença como controvérsia central: uma querela cuja origem remonta pelos menos há dois séculos e que chega aos nossos dias sem ter encontrado qualquer solução ou conclusão definitiva.
O paradigma da noção substancial de identidade no pensamento moderno remonta ao cogito cartesiano: o Eu como essência e unidade, fixo, essencialmente inato e inalterável - uma concepção de fundo repetida e renovada em momentos tão importantes como o do sujeito transcendental (de Kant e Husserl) ou o da razão iluminista, e que chegou à actualidade através de teorias da identidade bem conhecidas, sustentadas por certas ideias de "feminismo", "negritude" e "sexualidade". De forma bem distinta, autores tão diferentes como Hume, Kirkegaard, Marx, Nietzsche ou Sartre consideram, pelo contrário, a identidade essencialmente como resultado de uma construção do próprio Eu: o sujeito enquanto projecto de cada indivíduo, criado ao longo da sua vida e desenvolvido pela acção, o "Eu com uma dimensão infinita" que permite a cada um escolher a sua própria identidade (cf. Taylor, 1989: 450).
No âmbito desta querela, nos últimos tempos, temos assistido a um certo ascendente desta última posição - construtivismo – a qual faz valer em seu favor a tendência actual que acentua de forma ainda mais marcante o elemento individualista: a identidade como trabalho de criação de uma individualidade própria e particular, um eu singular e único, com possibilidades de realização aparentemente ilimitadas. Entre os factores sociais que mais têm contribuído para esta tendência destacam-se o actual sistema de consumo e, em particular, os modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica: ambos, ao longo deste último meio século, têm enfatizado até à exaustão uma certa ideia de identidade indissociável de marcas ostensivas de estilo, imagem e forma de apresentação do indivíduo - style and look.
Por: João Pissarra Esteves
Universidade Nova de Lisboa
No debate em torno da questão da identidade, a oposição substancialismo/construtivismo continua hoje a marcar presença como controvérsia central: uma querela cuja origem remonta pelos menos há dois séculos e que chega aos nossos dias sem ter encontrado qualquer solução ou conclusão definitiva.
O paradigma da noção substancial de identidade no pensamento moderno remonta ao cogito cartesiano: o Eu como essência e unidade, fixo, essencialmente inato e inalterável - uma concepção de fundo repetida e renovada em momentos tão importantes como o do sujeito transcendental (de Kant e Husserl) ou o da razão iluminista, e que chegou à actualidade através de teorias da identidade bem conhecidas, sustentadas por certas ideias de "feminismo", "negritude" e "sexualidade". De forma bem distinta, autores tão diferentes como Hume, Kirkegaard, Marx, Nietzsche ou Sartre consideram, pelo contrário, a identidade essencialmente como resultado de uma construção do próprio Eu: o sujeito enquanto projecto de cada indivíduo, criado ao longo da sua vida e desenvolvido pela acção, o "Eu com uma dimensão infinita" que permite a cada um escolher a sua própria identidade (cf. Taylor, 1989: 450).
No âmbito desta querela, nos últimos tempos, temos assistido a um certo ascendente desta última posição - construtivismo – a qual faz valer em seu favor a tendência actual que acentua de forma ainda mais marcante o elemento individualista: a identidade como trabalho de criação de uma individualidade própria e particular, um eu singular e único, com possibilidades de realização aparentemente ilimitadas. Entre os factores sociais que mais têm contribuído para esta tendência destacam-se o actual sistema de consumo e, em particular, os modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica: ambos, ao longo deste último meio século, têm enfatizado até à exaustão uma certa ideia de identidade indissociável de marcas ostensivas de estilo, imagem e forma de apresentação do indivíduo - style and look.
I
Este território acabou por se constituir, como é conhecido, num domínio de eleição do chamado pensamento pós-moderno, retirando este, aliás, um dos seus traços mais característicos da rejeição massiva da noção racional e essencialista da identidade, à qual contrapõe a sua exultação construtivista do sujeito.
É esta concepção da identidade pós-moderna que me proponho aqui discutir mais em pormenor, questionando o seu discurso liso, redutor das ambivalências e dos paradoxos que atravessam o nosso quotidiano. Temos nesta forma de conceber a identidade uma exaltação apoteótica da individualidade que esquece o facto de ser a mesma sociedade que incita até à exaustão o sujeito (e a subjectividade) - compelindo cada um a ser e a fazer-se único, distinto de todos os demais - que, ao mesmo tempo, explora do modo mais despudorado os recursos da identidade: dirigindo-os, administrando-os e centralizando-os a partir do exterior do indivíduo, através do sistema de consumo, das indústrias da cultura e dos media em geral, que assim realizam uma "desinteriorização da esfera íntima" (Habermas, 1962: 167). Este paradoxo no movimento das identidades nos nossos dias é esquecido pelo discurso pós-modernista, tal como as consequências devastadoras daí resultantes para os próprios indivíduos: a ansiedade de nos vermos compelidos a escolher, a construir-nos a nós mesmos e a produzir sempre mais e mais novidade, com possibilidades aparentemente ilimitadas, mas depois depararmos na vida real com limitações drásticas, cristalizações e constrangimentos de vária ordem que impedem a mudança (a verdadeira escolha/construção da nossa identidade), que dificultam o nosso próprio reconhecimento e nos deixam perplexos com aquilo em que nos tornamos (sem a nossa vontade ou mesmo contra a nossa própria vontade).
A partir de uma base de reflexão reduzida e extremamente frágil, a teoria da pós-modernidade constrói uma espécie de grande narrativa a que podemos dar por título "o fim do sujeito". O fio condutor do seu enredo é a crítica à noção moderna de identidade - o eu como realidade profunda, substancial, coerente e dotada de força emancipatória - que logo toma a forma de uma refutação das próprias noções de sujeito e identidade, apresentadas como mito, ilusão, puras construções da linguagem e (ou) do poder 1 .
Versões particulares mas com variações mínimas desta narrativa surgem na "genealogia da alma moderna" de Foucault, no sujeito como resíduo, sem identidade fixa, radicalmente descentrado, errático e esquizóide de Deleuze e Guattari, no sujeito fractal de Baudrillard, no desconstrutivismo de Derrida, ou ainda em Jameson e Lipovetsky - para citar apenas alguns dos casos mais conhecidos.
Embora a maioria destes autores não tenha dispensado grande atenção aos media, a influência destes em termos culturais é hoje tão marcante que a sua presença não poderia deixar de se fazer sentir no seu pensamento (mesmo que, em geral, de uma forma apenas latente). Baudrillard é a principal excepção a este aparente esquecimento, quando atribui uma importância específica e determinante aos media na "queda do sujeito moderno" e, em última análise, na generalidade das grandes mudanças sociais e culturais da actualidade.
II
A leitura pós-moderna destes novos sinais proclama um triunfo da superficialidade, do vazio e do efémero. Discutível, contudo, é a transformação que é operada destes sinais em imagem global da televisão e dos próprios media, assumindo então as características referidas uma validade que se pretende extensível aos próprios indivíduos em geral: seres sem profundidade, que pela acção dos media se tornam uniformes, vazios, sem significado nem qualquer tipo de relação com o passado (cf. Jameson, 1984: 60).
Tendo por pano de fundo o fim anunciado das grandes narrativas 2, instala-se a suspeita generalizada relativamente a qualquer tipo de procedimento hermenêutico: a partir de agora, nada se encontra ou esconde para além da superfície das formas, não existe qualquer profundidade ou multiplicidade de significados para a pesquisa crítica descobrir ou interpretar 3. Perante esta (imaginária) realidade simbólica saturada de significantes, o pensamento pós-moderno não só anuncia a obsolência dos significados em geral, como também o fim de qualquer referência substancial à identidade – qualquer outro sentido da identidade que se situe para além do puro jogo das formas encenado pelos indivíduos no "mundo media" 4. É como se, de um momento para o outro, como que por artes mágicas, os interesses, o sentido, a racionalidade e a ideologia que sempre impregnaram o nosso universo simbólico se dissipassem; não restando, assim, à teoria (e à análise em geral) já qualquer função crítica ou de esclarecimento, mas apenas a mera referenciação, o simples exercício do registo das formas simbólicas (na sua pura "facialidade", e num devir infinito e permanente) 5.
O magno problema que esta teoria coloca não está na caracterização que propõe de uma certa estética televisiva pós-moderna, saturante do universo simbólico, que nos deixa inertes e apáticos, rendidos à reprodução ao infinito das formas, siderados pelo jogo de espelhos que estas encenam e em que cada uma se replica infinitamente - imagens de imagens, de imagens, sucessivamente e sem qualquer outro referente que não sejam as imagens. O problema está sim na perda dos limites do seu próprio discurso, quando transforma esta tendência estilística na estética televisiva por excelência - una e única, e a televisão como dispositivo perfeitamente homogéneo e unidimensional. Tal como, do mesmo modo arbitrário, transforma o padrão de recepção correspondente a tal estilo particular num modelo geral, prefigurando assim a audiência televisiva como totalidade e, no limite, as próprias noções de sujeito e identidade: nómadas de imagens, aos quais está reservado esse destino fatal de uma experiência errática que se faz por saltos permanentes, de imagem em imagem (zapping e grazing), num fluxo contínuo, aleatório e já sem qualquer sentido.
Em síntese, o que me parece contestável neste diagnóstico não é a preocupação manifesta com um certo esvaziamento da identidade que está associado a certas formas mediáticas, sim que tais formas esgotem a "experiência dos media" e, mais ainda, que esta seja apresentada como totalidade do trabalho de constituição da identidade. Relativamente a esta, o que se perde de vista nesta vertigem teórica pós-moderna, com a sua poderosa e enebriante metaforologia, é o próprio registo mais convencional dos media, aquilo que neles existe (e ainda hoje continua a ser essencial) não de pós-moderno, nem sequer de moderno, mas pré-moderno: o trabalho da identidade desenvolvido pelos media que cumpre funções sociais básicas tradicionalmente consignadas ao mito - a reprodução cultural, a socialização e a integração social dos indivíduos. Estas funções são hoje em larga medida asseguradas pelos media, através da ampla oferta que estes proporcionam de modelos de pensamento e de acção, de quadros simbólicos difundidos e impostos socialmente por processos de imitação e formas ritualizadas.
Ao esquecerem esta realidade sociológica essencial, as teorias pós-modernas acabam por prestar um contributo duvidoso ao conhecimento, tornando mais opacos os dispositivos de imposição de uma dada ordem social, todo esse laborioso trabalho da ideologia levado a cabo pelos media e que tem como uma das suas componentes básicas, precisamente, a produção de modelos de identidade - "identidades" socialmente úteis, perfeitamente codificas e estereotipadas, que nos chegam através da publicidade, da moda, das diversas narrativas mediáticas e das próprias personagens dos media.
III
Os diferentes registos dos media, independentemente do seu estilo, continuam a ser dirigidos por uma lógica comercial inteiramente convencional e obedecem a uma estratégia precisa: a diferenciação dos públicos e a segmentação do mercado como processos mais eficazes de homogeneização global, com estritos fins de lucro.
Assim se compreende que hoje muitas marcas, empresas e até ditos autores/artistas dos media criem e ponham em circulação mensagens com padrões estéticos tão diferenciados ou até, à primeira vista, antagónicos. Nada há aí, habitualmente, de ruptura cultural (mesmo naquelas formas que se apresentam como mais ousadas, insólitas ou originais): apenas o aperfeiçoamento de uma determinante técnica de marketing que visa maximizar uma eficácia, a da rentabilidade dos produtos – sejam estes uma griffe (automóveis, electrodomésticos, vestuário, etc.), um sitcom, qualquer outro produto televisivo ou uma nova estrela do showbiz 6.
Deste modo, o esvaziamento da identidade que a cultura dos media hoje gera não pode revestir o sentido que os teóricos da pós-modernidade lhe dão: não é um colapso ideológico, uma total obliteração dos significados e o puro jogo dos significantes, estará sim relacionado esse esvaziamento com um esforço renovado de neutralização do indivíduo, com novas estratégias de aprisionamento, mais poderosas e sofisticadas, agora com codificações de identidade minuciosas, estabelecidas planificadamente e com objectivos estritos de obediência e subjugação. O nosso tempo não é o de aniquilamento da identidade, mas o da sua saturação: pseudo-identidades luxuriantes produzidas à margem do próprio indivíduo, com o fim de o domesticar, servindo a generalidade dos modelos em circulação (e as suas variações infinitas) como dispositivo de etiquetagem e de disciplinamento do corpo social.
Os media, enquanto dispositivos nucleares de socialização, de integração social e de reprodução cultural, desenvolvem um trabalho activo em torno das identidades, o qual no entanto é tudo menos linear. O pensamento pós-moderno sobreleva uma tendência regressiva dos media a este nível: as identidades como puros simulacros, criados e impostos pelas indústrias da cultura, já sem qualquer relação efectiva com os sujeitos propriamente ditos e o Mundo da Vida em geral 7; mas esquece uma outra orientação que persiste nos media, muito diferente da anterior, e em torno da qual o trabalho da identidade continua a fazer-se: um espaço simbólico de liberdade e de racionalidade que irrompe de forma fugaz, ao qual os indivíduos episodicamente têm acesso e lhes permite tomarem a sua própria autonomia em mãos - algo que acontece quando os media se abrem ao mundo, quando a vida no seu interior readquire espessura, sempre que, enfim, a visibilidade autêntica permite a cada um de nós reencontrar-se com a responsabilidade perante si mesmo e descobrir o outro.
O magnífico trabalho da moda ou da publicidade, as suas encenações flamejantes de modelos perfeitos de consumo, não pode confundir-se ou fazer esquecer outros registos de linguagem que circulam nos media e onde esta outra tendência continua a marcar presença (seja ao nível do discurso jornalístico, seja nas narrativas de ficção). Vários exemplos actuais deste trabalho dos media ao nível das políticas de identidade podem ser referidos: identidades étnicas, religiosas, regionais, culturais, sexuais, etc., que se dão a ver plenas de tensões e de conflitos, e cuja visibilidade é indissociável das múltiplas possibilidades de discursivização que os media oferecem - a questão HIV/Sida, o caso Salman Rushdie e o islamismo, a invasão de Timor e a causa maubére, Barrancos e os touros de morte, a imigração na Europa e as questões raciais, e tantos outros. Exemplos que, à luz de qualquer análise mais cuidada dos media, evidenciam o excesso e a precipitação do pensamento pós-moderno quando proclama peremptoriamente o fim do sujeito, a dissolução da identidade e a hiperrealidade dos media.
Mesmo ao nível das experiências dos media hoje em dia mais marcantes e afins à tese pós-modernista, desenvolvidas no universo dos computadores e das redes informáticas, com a utilização dos MUDs e do IRC, onde cada um pode assumir personalidades alternativas múltiplas; mesmo aqui, como refere Sherry Turkle, estas novas formas de experiência da identidade (um "eu saturado" e um "eu fragmentado") não induzem necessariamente a dissolução do Eu ou qualquer situação patológica generalizada: a partir delas podemos ainda imaginar a possibilidade de construção de um eu fragmentado mas flexível, múltiplo mas integrado, "um eu multiforme saudável que é capaz de sofrer transformações fluidas, mas assente na coerência e numa perspectiva moral" (Turkle, 1995: 386).
A importância crescente que a cultura dos media, nas suas diferentes expressões, vem assumindo faz da identidade, nos nossos dias, uma questão controversa e de futuro incerto, mas não uma história terminada. Está nela presente, na verdade, uma tendência desubstancializadora que, no limite, pode conduzir à total dissolução da identidade - caso esta se reduza a mera estilização e aparência 8. Mas outras hipóteses continuam a manter-se em aberto. A própria "desubstancialização" pode proporcionar novas possibilidades de realização da identidade: um impulso radical de liberdade que permite e cada um refazer, em cada momento, a sua própria existência, de forma mais favorável para si mesmo, contra as coacções e os constrangimentos sociais da mais diversa ordem que o limitam na sua realização.
O perigo real que esta tendência desubstancializadora encerra não autoriza que a transformemos assim numa espécie de destino fatal, como o discurso pós-moderno mais eufórico pretende. E para contrariar esta tentação bastará uma análise mais cuidadosa da totalidade do processo da identidade nos nossos dias, onde os media têm um papel determinante mas que não esgota as fontes de sentido do mundo da vida social, nem a relação com os media resulta inevitável e invariavelmente em absoluta "ficcionalização da realidade que torna os indivíduos atomizados meros imitadores de estilos de vida prefabricados pelos media" (Honneth, 1991: 223).
IV
O problema do fim do sujeito que a teoria da pós-modernidade hoje coloca retoma uma crítica mais antiga à noção de sujeito que tomou forma no interior do próprio pensamento moderno: o sujeito como autonomia individual, concebido em termos kantianos.
À psicanálise freudiana deve-se a demonstração convincente da ilusão que consiste a ideia de uma absoluta transparência das necessidades do indivíduo 9; ao mesmo tempo que a partir da filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, o outro pressuposto fundamental da noção tradicional de autonomia - a intencionalidade do sentido da acção (comportamental e linguística) - foi também posto em causa 10. Assim, convergentemente mas a partir de ângulos distintos, estas duas críticas puseram em evidência o poder de certas forças estranhas ao sujeito que condicionam de modo determinante o seu desempenho; forças que o sujeito não controla inteiramente e das quais, em geral, nem sequer chega a tomar consciência, mas que nem por isso são de menor importância para a sua constituição.
Perante o poder destas críticas, como resiste a ideia de sujeito? De que forma se poderá continuar a sustentar a noção de identidade?
A questão que daqui decorre é, pois, inequivocamente, a da necessidade de reconstituir a própria forma de conceber a identidade; e adjacente a esta, a do papel específico que pode caber aos media neste trabalho reconstitutivo.
Entre a persistência numa visão puramente idealizada do sujeito e o puro e simples abandono da ideia de autonomia, creio que é possível descortinar outro caminho para a identidade nos nossos dias: a identidade que persiste numa ideia normativa de autonomia, mas que não esquece determinados limites estruturais próprios desta, a identidade ainda constituída na base da liberdade e auto-determinação do indivíduo, sendo estas porém compreendidas "não em oposição às forças contingentes que iludem o controlo individual, mas como uma forma particular de organização destas mesmas forças"(Honneth, 1993: 263). Vejo a possibilidade de trilhar este caminho a partir de um modelo intersubjectivo de identidade: uma concepção segundo a qual o sujeito individual só adquire consciência de si quando ele próprio se coloca numa perspectiva exterior a si mesmo, no lugar do outro simbolicamente representado, isto é, quando se vê como participante de uma interacção social e de uma situação comunicacional, e assume sobre si próprio o ponto de vista dos outros interlocutores. Um "Me", na designação de G. H. Mead, que se forma ao longo de um complexo processo de relações tensionais com o "I" – a fonte dos elementos impulsivos e mais criativos da nossa conduta, mas que para a sua validação requerem um reconhecimento por parte de uma comunidade de comunicação alargada, que é tornada operacional precisamente pelo "Me" (cf. Mead, 1934: 202-205).
O reconhecimento é o mecanismo por excelência da intersubjectividade. E se convencionalmente o seu âmbito se restringe à interacção social, ou seja, à comunidade concreta dos encontros sociais, hoje em dia, uma outra fonte essencial da experiência veio juntar-se-lhe: a de um universo de comunicação virtualmente ilimitado que se tornou acessível graças aos modernos dispositivos tecnológicos de mediação, ou seja, uma cultura dos media que se transformou no palco privilegiado das lutas simbólicas pelo reconhecimento.
Este modelo da identidade permite integrar as forças que escapam ao controlo consciente do indivíduo: as energias pulsionais e as estruturas linguísticas em lugar de se erguerem como obstáculos intransponíveis da identidade, adquirem antes o estatuto de condições constituintes da própria identidade. Só que esta perspectiva não é compatível com a noção clássica de autonomia: a autonomia só poderá continuar a afirmar-se como base normativa do processo de individuação se ela própria for objecto de um profundo descentramento
Descentramento ao nível das necessidades do indivíduo, de forma que a autonomia seja conferida não por uma ilusória transparência dessas necessidades, mas pela capacidade de o indivíduo proceder à sua discursivização, isto é, através da sua competência em processar linguisticamente o inconsciente. Descentramento ao nível da relação que o indivíduo estabelece com a sua própria vida enquanto totalidade, para a qual a figura da narrativa coerente responde de modo mais adequado que o paradigma tradicional da biografia perfeitamente consistente, organizada, orientada por um único fim e obedecendo a uma relação de sentido uniforme e permanente 11. E descentramento da autonomia, por fim, ao nível da sua dimensão moral, onde se exige que à aplicação dos princípios se associe uma profunda sensibilidade prática às circunstâncias concretas de cada situação, às condições sociais e aos interlocutores específicos de cada caso particular.
A autonomia descentrada em todas estas dimensões define a imagem de um sujeito capaz de "dispor criativamente das suas necessidades, de apresentar a sua própria vida de uma forma eticamente reflectida e de proceder à aplicação das normas universais de modo adequado ao contexto" (Honneth, 1993: 271). A sua constituição depende do desenvolvimento de um conjunto de capacidades específicas por parte do sujeito, adquiridas num contexto comunicacional de existência, ou seja, a autonomia própria da identidade é indissociável da experiência social de reconhecimento do indivíduo (por parte dos outros significantes para si).
É neste trabalho da identidade – a experiência de reconhecimento realizada em contexto comunicacional – que os media marcam a sua presença. O âmbito da sua intervenção, como já referi, é muito variável, segundo as circunstâncias sociais da sua apropriação; umas vezes como energias vitais e genuínas da identidade, isto é, uma fonte de recursos simbólicos que proporciona aos indivíduos contextos de comunicação favoráveis à construção da sua própria identidade, livre e autónoma; outras vezes, de forma bem diferente, obedecendo a padrões dirigistas e impositivos. Duas posições limite a partir das quais a experiência concreta dos media pode ser pensada como a realização de um número ilimitado de situações intermédias.
Sobre os media recaem, em qualquer circunstância, as mais elevadas (e exigentes) expectativas em termos de processos de reconhecimento, através da apropriação quotidiana de que são objecto as suas mensagens e os seus diversos produtos. Os media são hoje um palco 12 principal onde tem lugar este tipo de conflitos simbólicos: a luta pelo reconhecimento, que assim se projecta em larga escala e serve às identidades como meio excepcional para a sua afirmação em termos muito amplos - para além de todos os limites imagináveis que o círculo dos contactos sociais convencionais poderiam proporcionar.
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TURKLE, Sherry (1995) A vida no ecrã, Lisboa, Relógio d’Água, 1997 (Life on the Screen)
Notas
1 A crítica da identidade moderna tinha sido já desenvolvida numa versão bastante radical pela Dialéctica Negativa da Escola de Frankfurt: o declínio do sujeito autónomo, livre e esclarecido (da cultura do individualismo) às mãos de uma pseudo-individualidade produzida como mero efeito das "inúmeras agências da produção em massa e da sua cultura, através das quais se inculcam no indivíduo as formas normativas de conduta, como as únicas naturais, decentes e razoáveis" (Adorno e Horkheimer, 1947: 82). Mas como esta referência teórica não é propriamente familiar nem a mais simpática aos olhos dos pós-modernistas, estes para afirmarem uma individualidade própria sentiram-se na necessidade de radicalizar a sua crítica aos próprios conceitos.
1 A crítica da identidade moderna tinha sido já desenvolvida numa versão bastante radical pela Dialéctica Negativa da Escola de Frankfurt: o declínio do sujeito autónomo, livre e esclarecido (da cultura do individualismo) às mãos de uma pseudo-individualidade produzida como mero efeito das "inúmeras agências da produção em massa e da sua cultura, através das quais se inculcam no indivíduo as formas normativas de conduta, como as únicas naturais, decentes e razoáveis" (Adorno e Horkheimer, 1947: 82). Mas como esta referência teórica não é propriamente familiar nem a mais simpática aos olhos dos pós-modernistas, estes para afirmarem uma individualidade própria sentiram-se na necessidade de radicalizar a sua crítica aos próprios conceitos.
2 "Na sociedade e cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna (…) a grande narrativa perdeu a sua credibilidade, qualquer que seja o modo de unificação que lhe está consignado: narrativa especulativa [ciência], narrativa de emancipação [política]" (Lyotard, 1979: 63). Embora o autor refira que as "pesquisas de causalidade são sempre decepcionantes", o próprio não deixa de mencionar como factores cruciais que estão na origem desta crise, o "progresso das técnicas e das tecnologias" e a valorização que registou a "fruição individual de bens e serviços". Isto é, uma constelação de fenómenos sociais profundamente associados aos media, como sabemos.
3 Esta suspeição da hermenêutica é a completa inversão da "hermenêutica da suspeição", que se atém à polissemia das formas culturais e simbólicas em geral, que acrescenta à dúvida cartesiana sobre o objecto a dúvida sobre a própria consciência e, assim, assume funções de revelação ou esclarecimento: a "redução das ilusões e das mentiras da consciência", através de uma crítica "destruidora" que tem por alvo "a verdade como mentira" e de uma nova "arte de interpretar" que procura o horizonte da "palavra autêntica e de um novo reino da Verdade" (Ricoeur, 1965: 40-44).
4 Esse "novo mundo" da experiência que nos nossos dias se expande como fonte primeira de sociabilidade; ao mesmo tempo que as formas convencionais de mundo (o "mundo tangível" e o "mundo de longa duração") se contraem e acabam por ver confinadas a domínios restritos (periféricos e/ou muito especializados) da experiência simbólica dos indivíduos (cf. Gomes, 1995: 309-311).
5 Ao atingir-se este ponto, em que uma certa forma de pensamento já não é capaz de guardar qualquer distância em relação ao seu objecto (acabando mesmo por se deixar absorver por ele), deparamos com uma situação típica de ruptura das fronteiras entre "teoria da pós-modernidade" e "teoria pós-moderna" (cf. King, 1998: 47).
6 "Em vez da pós-modernidade constituir um corte com o capital e a economia política, como Baudrillard e outros sugerem, onde quer que se observe o fenómeno da cultura pós-moderna por detrás está presente a lógica do capital" (Kellner,1995: 257).
7 Esta percepção trai uma remota influência do pensamento crítico, mas de onde a intenção mais consequente foi já excluída: "O conceito de 'pós-moderno' resumido deste modo não representa mais que uma reverberação trivial do diagnóstico pessimista desenvolvido por Adorno e Horkheimer no capítulo 'Indústria da Cultura' da sua Dialética do Iluminismo [… o único contraste é que] as teorias sociais pós-modernas dão à combinação diagnosticada da erosão cultural e da perda da autenticidade individual uma interpretação positiva e mesmo afirmativa" (Honneth, 1991: 223-224).
8 "O carnaval pós-moderno" das identidades descartáveis e facilmente substituíveis (Kellner, 1995: 260) serve de um modo objectivo e ele próprio é montado por uma poderosa lógica de interesses que é hoje determinante nos media: os interesses da sociedade de consumo.
9 Embora Freud se apresente como o principal responsável por este importante contributo, antes dele e como primeiros grandes percursores deste conhecimento psicológico fundamental não podem ser esquecidos Nietzsche e os Românticos alemães (cf. Ricoeur, 1969: 234 e sg.s)
10 Saussure, com a Linguística Estrutural, veio a fornecer a sistematização mais consequente desta crítica, desenvolvendo assim, convergentemente com a psicanálise, uma outra linha de ataque à noção tradicional de sujeito (cf. Ricoeur, 1969: 242 e sg.s). Mais recentemente, outros autores apresentaram novas explorações originais dentro desta mesma linha crítica - Levi-Strauss e Foucault, por exemplo, este com a sua contundente refutação da noção de autor (cf. Foucault, 1969: 29-89).
11 Um sentido da vida enquanto totalidade que se torna objecto de uma construção por parte do próprio sujeito, através de um trabalho exploratório de "abertura a certas matérias significantes e já não como poder de planeamento" (Taylor, 1981: 105).
12 "Apropriação quotidiana dos produtos mass mediáticos" que torna perceptível uma outra dimensão do sentido destes mesmos produtos - uma dimensão essencial mas pouco conhecida e estudada, que transcende as operações convencionais (técnicas e mais ou menos intencionais) de construção e transmissão das mensagens (cf. Thompson, 1990: 313 e sgs.).