Nos últimos tempos de solidão em que ele se encontrava, deitado com o rosto contra as costas do divã, daquela solidão em meio à cidade populosa e aos seus numerosos conhecidos e membros da família, solidão que não poderia ser mais absoluta em parte alguma, mesmo no fundo do mar ou no seio da terra, nos últimos tempos dessa terrível solidão. Ivan Ilitch vivia apenas no passado, graças à imaginação. Apareciam-lhe, um após o outros, os quadros do seu passado. Isto começava sempre pelo que estava mais próximo no tempo e ia dar sempre no mais distante, na infância, onde se detinha. Se Ivan Ilitch lembrava a ameixa seca cozida, que lhe ofereciam agora para comer, vinha-lhe também à memóriaa ameixa seca crua francesa, enrugada, da sua infância, o seu gosto peculiar e a abundância de saliva quando se chegava ao caroço, e a par dessa recordação de um sabor, surgia toda uma série de recordações daquela época: a ama-seca, o irmão, os brinquedos. "Não devo pensar nisso... é doloroso demais" - dizia Ivan Ilitcha si mesmo e tornava a transportar-se para o presente. Um botão nas costas do divã e rugas no marroquim. "O marroquim é caro, pouco resistente; foi causa de uma briga. Mas houve também outro marroquim e outra briga, quando rasgamos apasta de meu pai e fomos castigados, e mamãe trouxe uns pirojki". E de novo aquilo detinha-se na infância, e mais uma vez Ivan Ilitch sentia a dor e rpocurava repelir aquelas imagens e pensar em outra coisa.
E de novo ali mesmo, a par desta seqüência da recordação, perpassava-lhe no espírito uma outra seqüência de lembranças: sobre como se intensificava e crescia a sua doença. Quanto mais voltava para trás, masi vida havia. havia igualmente mais bondade na existência e mais vida propriamente, também. Ambas fubdiam-se. "Assim como os tormentos se tornam cada vez piores, também toda a vida se tornava cada vez pior" - pensou ele. Havia um ponto luminoso alhures, atrás, no começo da vida, e depois tudo se tornava cada vez mais negro e cada vez mais rápido. "Na razão inversa dos quadrados da distância para a morte" - pensou Ivan Ilitch. E Esta imagem da pedra caindo para baixo com velocidade crescente calou-lhe no espírito. A vida, uma série de tormentos em crescendo, voa cada vez mais veloz para o fim, para o mais terrível dos sofrimentos. "Eu vôo..." Estremecia, mexia-se, queria opor-se; mas já não sabia que não se podia opor resistência, e novamente, com olhos cansados de fitar, mas impossibilitados de não olhar aquilo que estava diante deles, fitava as costas do divã e esperava: esperava essa terrível queda, empurrão e aniquilamento. "Não se pode resistir - dizia de si para consigo - Mas se pudesse ao menos compreender para quê isto. E também é proibido. Seria impossível explicar, se se dissesse que eu não vivi como se devia. Mas é impossível admiti-lo" - dizia a si mesmo, lembrando toda legitimidade, exatidão e decência da sua vida. "É impossível admiti-lo - dizia, sorrindo com os lábios, como se alguém pudesse ver este seu sorriso e ser enganado por ele. - Não há explicação! O sofrimento, a morte... para quê?"
(...)
Os seu sofrimentos morais consistiam em que, aquela noite, ao olhar o rosto sonolento, bonachão, demaçãs salientes,de Guerássim, acudiu-lhe de súbito à metne: "E o que será se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente, tiver sido 'outra coisa'?".
Veio-lhe à mente: podia ser verdade aquilo que lhe parecera antes uma impossibilidade total, isto é, que tivesse vivido a sua exist~encia de maneira diversa da devida. Veio-lhe à mente que suas veleidaes quase imperceptíveis de luta contra aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam correto, veleidaes quase imperceptíveis que lele imediatametne repelia, podiam ser justamente as verdadeiras, e tudo o mais ser outra coisa. O seu trabalho, o arranjo da sua vida, a sua família, esses interesses da sociedade e do serviço, tudo isso podia ser outra coisa. Tentou defender tudo isto perante si. E de repenre sentiu toda a fraqueza daquilo que defendia. E não havia o que defender.
"E se isto é assim - disse ele consigo - e eu parto da vida com a consciência de que destruí tudo o que me foi dado, se não se pode mais corrigi-lo, que fazer?"
(...)
No decorrer de todos aqueles três dias, quando o tempo não existia para ele, ficou estrebuchando no saco negro para o qual o empurrava uma força invisível e invencível. Debatia-se como um condenado à morte debate-se nas mãos do carrasco, sabendo que não tem salvação; e a cada momento ele sentia que, não obstante todo o esforço na luta , ele estava cada vezmais perto daquilo que o horrorizava. Sentia que o seu sofrimento consistia também em que ele penetrava anquela fossa negra, e ainda mais em que não podia esgueirar-se para dentro dela. E o que o impedia de fazê-lo era a convicção de que sua vida fora boa. esta justificação da sua vida é que se agaraava a ele, não o deixava prosseguir a atormentava-o mais que tudo.
De repente, certa força empurrou-lhe o peito, o lado, comprimiu-lhe com masi força ainda a respiração, ele caiu na fossa, e lá, no fundo, algo alumiou. Ocorreu com ele aquilo que lhe acontecia no vagão ferroviário, quando se pensa que se cai para frente, mas se está retrocedendo, e de repente se percebe a verdadeira direção.
"Sim, era tudo outra coisa - disse a si mesmo - mas não faz mal. Pode-se, pode-se fazer 'aquilo'. Mas o quê?" - perguntou a si mesmo e, de repente, se calou.
Isso foi no fim do terceiro dia, uma hora antesda sua morte. Foi justamente então que o pequeno ginasiano esgueirou-se, sem fazer ruído, até o pai e acercou-se da sua cama. O moribundo não cessava de gritar desesperado, agitando os braços. A sua mão tocou a cabeça do pequeno ginasiano. Este agarrou-a, paertou-a contra os lábios e chorou.
E justamente então Ivan Ilitch caiu no fundo, viu a luz e percebeu que a sua vida não fora o que devia ser, mas que ainda era possível corrigi-lo. Perguntoua si mesmo: "mas o que é 'aquilo'?" - e silenciou, o ouvido atento. Sentiu então que alguém lhe beijava a mão. Abriu os olhos e dirigiu-se para o filho. Teve pena dela. A mulher aproximou-se. Olhou-a. Ela também o olhava, a boca aberta, uma expressãode desespero e tendo lágrimas não enxugadas sobre o nariz e a face. Teve pena dela.
"Sim, eu os atormento - pensou. - Eles têm pena de mim, mas estarão melhor, depois que eu morrer." Quis dizer, ainda, "perdoe-me', mas disse "deixe-me passar', e não tendo mais força para corrigir o lapso, esboçou um gesto de renúncia, sabendo que seria compreendido por quem importava.
E de repente, percebeu com clareza que aquilo que o atormentava e não o deixava, estava saindo de uma vez, de ambos os lados, de dez lados, de todos os lados. Eles dão pena, é preciso fazer com que não sofram. Libertá-los e libertar a si mesmo desses tormentos. "como é bom e como é simples - pensou. - E a dor? - perguntou em seu íntimo. - Para onde foi? Eh, onde estás, minha dor?"
Prestou atenção.
"Sim, ei-la. Ora, então? Que seja dor?".
"E a morte? Onde está?"
Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar damorte, havia luz.
- Então é isto! - disse de repente em voz alta. - Que alegria!
Tudo isso aconteceu num instante, e a significação desse instante não se alterou mais. mas, para os presentes, a sua agonia ainda durou duas horas. Algo borbulhava-lhe no peito; o seu corpo extenuado estremecia. Depois, o borbulhar e rouquejar tornaram-se cada vez mais espaçados.
- Acabou! - disse alguém por cima dele.
Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. "A morte acabou - disse a si mesmo. - Não existe mais."
Aspirou ar, deteve-se em meio do suspiro, inteiriçou-se e morreu.
TOLSTÓI, A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, 2006.