segunda-feira, 18 de junho de 2007

O Controle do Virtual

(*) COPYRIGHT: José Bragança de Miranda (1996). O texto pode ser lido e reproduzido livremente para uso pessoal. Para outras finalidades que não as estritamente pesoais, o texto não pode ser publicado ou reproduzido sob nenhum meio, sem autorização prévia do autor.
«...Interrupting the mutness of picturing with a seriously playful display of language...» Barbara KRUGER

O virtual que, filosófica e teologicamente, é uma categoria com longa história, está a tornar-se numa das categorias centrais da cultura contemporânea. Pretendemos analisá-lo na sua diferença ao que se poderia chamar «espaço de controlo» ou cyberspace. A relativa consistência que a tecnologia da informação está a dar ao virtual trouxe para a frente do problema decisivo do controlo, que se configura como uma relação «política» mediada tecnicamente. A cibernética de Wiener, os programas de Turing, a inteligência artificial, entre outras disciplinas, são tudo passos no caminho para a emergência do espaço de controlo. Parecendo confundir-se o virtual e o cyberspace - de facto têm muitos traços comuns - é essencial analisá-los separadamente. Seria possível mostrar que a tecnologização do virtual foi preparada pela metafísica, e a teologia ocidental, esse bloco que Heidegger denominava por «onto-teologia ocidental». Neste processo desempenhou papel determinante o esquema aristotélico da dynamis/energeia, modelo «metafísico» em que assentou toda a tecnologização ocidental1. Este modelo constituía um estrutura de realização, articulando potencialidade e actualização. Ou seja, de entre várias possibilidades apenas uma era realizada em cada momento (respeitando assim o princípio da identidade de que não é possível existir ao mesmo tempo A e não-A). Neste esquema o virtual identificava-se com a potencialidade, servindo apenas para hierarquizar as possibilidades realizáveis. Algo que começou por ser teológico e depois político, está a tornar-se hoje tecnológico2. O espaço de mediação clássica, que tendo uma dada relação ao controlo ainda não era o espaço de controlo3, implicava a prioridade dos fins, uma lógica do telos e um «demiurgo» (um artesão). Este espaço de realização, tinha a sua matriz na oposição entre possibilidade e existência, que se modulava numa série de outras oposições, como as de princípio e fim, de presença/ausência, de hard e de soft, de permanente e de efémero, etc. etc. A dualidade destas séries era absolutamente necessária, mas a verdadeira linguagem binária acabaria por ser a informática, que já era exigida pelo binarismo clássico e que a lógica clássica de certo modo antecipava. O virtual era o espaço do imaginário (determinado metafisicamente, mas também teologicamente ou politicamente), onde se intuíam, ou se construíam as possibilidades. Sendo semelhante ao espaço de controlo, o determinante era a ideia de realização de algo até então apenas possível4. Esse processo era ambivalente: por um lado, levava à separação entre ideal e material, entre presente e ausente, ou seja, realizando ora um, ora outro5; por outro lado, virtualmente estes elementos mantinham-se tensionalmente ligados. A técnica funcionava como auxiliar do processo de realização. Com a libertação da técnica que ocorreu na modernidade, a técnica acabaria por pôr em causa o próprio espaço onde funcionava, dominando-o crescentemente. Com as tecnologias da informação a técnica determina a realização dentro de processos de controlo abrangentes. Daí que o virtual emirja explicitamente, confundindo-se agora não com o espaço «real», mas com o espaço de controlo. Trata-se de distingui-los, muito dependendo dessa distinção. Nos nosso dias está-se a verificar o choque entre o espaço clássico da realização (cujo conceito político central era o de «dominação») e o espaço de controlo actual (o controlo é transpolítico) 6. Hoje o virtual está em tensão com a potencialidade, e de duas uma: ou o virtual é uma intensificação do potencial que suportava a realização, ou é uma forma de o menorizar, aligeirando a experiência da grande maquinaria da dominação. A incompreensão deste processo leva a que, um pouco ilusoriamente, se tente prolongar as estratégias teológicas e políticas de colonização do mundo que acompanhou a instalação da modernidade. Depois de colonizado o novo mundo, a América, hoje a América pretende colonizar o espaço da virtualidade, dotado de uma nova consistência, já não imaginária, mas não menos flexível e envolvente que o imaginário. O que leva a perigos, pois como diz Florian Rötzer: «The price we pay for the freedom of traveling weightlessly in virtual spaces, which are no longer subject to the laws of physics, is the totalitarian control over the environment, over each of our movements and perhaps over every thought as well, should we be successful in connecting the neural CRT to the computer»7. Como dizíamos, por razões graves que irão sendo explicitadas, é preciso pressupor uma tensão entre o virtual e o espaço de controlo. Não é possível concordar com as análises de Gilles Deleuze, bem importantes por sinal, sobre as «sociedades de controle», que teria substituído totalmente as formas anteriores de dominação. O problema é que é praticamente impossível distingui-los e as diversas reflexões de que começamos a dispor não ajudam muito a fazê-lo. O espaço de controlo, contrariamente ao espaço de realização, que era fechado e rigidamente centrado, é agora aberto e acentrado. Não é por esta característica que se distingue do virtual. Diria, ainda demasiado provisoriamente, que o virtual é «capturado» pelo controlo. De facto, o cyberspace é um espaço de modulações, de permanente retraçamento, de linearização absoluta, controlando as regras mais que as posições. Mas isso só é possível porque o virtual dá uma efectividade a todas as posições, sejam elas quais forem8. Bom exemplo disso é o hypertext. A possibilidade de controlo absoluto tem a ver com a possibilidade de uma tradução generalizada em linguagem digital, seja dos corpos seja das regras, seja das posições. O facto de uma imagem exigir mais bits não impede que a sua ocupação desse espaço seja idêntica à da escrita. O cyberspace opera uma espécie de linearização do virtual, estabilizando-o como espaço de suporte. Ou seja, para se transformar o espaço virtual em algo controlável este tem de ser linearizável, tudo se reduzindo a uma banda de dados de computador (como é exemplificado pelo programa Genoma). Depois é preciso um controlo desse controlo, e portanto uma linearização de segundo nível e por aí fora, numa circularidade que ocorre fora do tempo, a que paradoxalmente se chama «tempo-real»9. Como mostra William Burroughs é um tempo da morte infinitamente suspenso sobre o espaçamento do controlo. À pergunta: «If control's control is absolute why does control need to control?» vem a resposta sintomática: «Control needs time»10. Ou seja a única coisa que o controlo precisa é de tempo, mas para o abolir e realizar-se como controlo. Toda a necessidade ou desejo, é uma forma de dar tempo ao controlo11. Tese extraordinária que ainda está por explorar. Nos nossos dias ainda mal podemos começar a experienciar o que está a ocorrer. De facto, este processo está ainda a dar os primeiros passos, tendo muito de imaginário. Sintomaticamente foi o imaginário que começou a ser invadido pelo espaço de controlo, como o revela o enorme desenvolvimento dos jogos de computador, que está a constituir uma cultura própria. Esses jogos foram, como diz Ed Keller «one of the primary examples of an extension into cyberspace of the operative realm of the virtual in a way that is specifically spatial (as an extension of the subject into a virtual space through telepresence)»12. Este fenómeno que começou nos jogos está a afectar todos os domínios, indo dos arquivos à arquitectura, do entretimento as paixões. Dada a radicalidade deste controlo do controlo que é o cyberspace parece irrisória a tentativa da Realpolitik que procura servir-se do controlo para sobreviver. Apenas fortalecendo o que utiliza por necessidade absoluta. Contrariamente à visão utópica, como a do filósofo americano Mark Taylor, para quem com o virtual «o poder se tornou imaginário» e em que «ninguém está no controle»13. Ora, o problema agrava-se quando o controlo se se separa do poder. É que o poder enquanto dominação usava o controlo como auxiliar, enquanto que agora o controlo usa o poder como simulacro para melhor se disseminar. Por mais que o poder, tal como se estruturou na modernidade, procure vigiar todo o espaço, criando uma espaço de segurança total, acabou por o fazer em fracasso. A resposta a este fracasso passa pela intensificação do controlo (e da técnica, que tem aqui analogias surpreendentes, tendo passado de auxiliar para directora). Brian Massumi fala de uma potência ligada ao virtual e um poder ligado ao actual, como se o poder fosse apenas uma concretização e abaixamento do virtual. Mas as coisas parecem ser mais complexas: pois o virtual é o espaço de mediação imediata que tende a envolver todo o mundo, virtualizando-o. Enquanto cyberspace tudo se joga na actualização de certas possibilidades, provenientes do arquivo geral da experiência que é a cultura. Só que essa actualização é puramente simulacral, pois se tudo se pode actualizar é porque é indiferente aquilo que é actualizável. O virtual pode servir assim de espaço de suporte para a inscrição imediata do mundo e dos corpos no controlo. No fundo tudo depende de se conseguir distinguir a virtualidade da potencialidade. Será que se deve ao facto da existência, da efectividade? Na verdade, o controle implica pensar em relação à possibilidade. As possibilidades infinitas equivale, de algum modo, à virtualidade (que se torna efectivo sempre no singular), e em contragolpe, o cyberspace corresponde a finitização do virtual (que, paradoxalmente, leva sempre à indiferenciação). Mais do que falar-se de distingui-los, deveríamos dizer que estão misturados no mesmo processo. O carácter mesclado do controlo deve-se, tudo o indica, à tecnologização do virtual, mas também por à sua colonização a partir do arquivo da cultura. A instrumentalização do virtual como cyberspace ganha crescente força à medida que o virtual desaparece do imaginário e se torna em algo consistente, regrado, prolongando o espaço da cultura que é o nosso. A«impureza» do controlo actual, que ainda é obrigado a desdobrar-se no tempo, até se tornar controlo de controlo (Burroughs), passa por um fenómeno que estava preparado na modernidade e que agora emerge explicitamente. Refiro-me à criação de um bloco ultra-denso formado pelas máquinas, o desejo e os químicos. Perante os nosso olhos está a formar-se esse bloco, cuja génese remonta ao início da «modernidade». Revela-se assim como provisória a oposição entre razão e paixão, funcionando ambas como preparadoras desse «bloco», sendo no cyberspace que a essa fusão é possível, sem deslassamento14. A primeira, preparando os manipuladores e a segunda os pacientes. A pureza absoluta do controlo dispensaria a mescla de químicos (drogas) com as máquinas, tudo se ligando instantaneamente e sem obstáculos. A impureza de um controlo ainda hesitante, em torno do qual se luta, exige essa «álgebra do desejo» de que falou tão profeticamente William Burroughs15. A sua forma actual é a do cyberspace, sem que possamos ainda sonhar até onde pode chegar16. Intuímos, porém, que a sua natureza é alucinatória. Di-lo William Gibson no seu famoso romance: «o ciberespaço é uma alucinação consensual experimentada diariamente por milhares de milhões de operadores autorizados». Talvez suceda que o alucinatório acabará por não precisar desses meios rudimentares de ligação. Mas a própria existência dessa tendência revela o caminho por que estamos a adentrar-nos. Que levava já McLuhan a dizer em 1969 que «A atracção pelas drogas alucinogéneas é um meio de alcançar a empatia com o nosso meio ambiente electrónico, ambiente esse que é em si uma viagem interior sem drogas»17. O complicado aparato de luvas e de eléctrodos que hoje simulam a «realidade virtual» exige justamente formas de apagamento da realidade «real» do metal e das próteses para se poder atingir o estado alucinatório. A química acabará por o fazer, fazendo de todo o movimento, simples quimiotropismos. Ou enxertando-se directamente no cérebro, simples electrotropismos. O imaginário do zaping dissemina-se, tudo se resumindo a uma controlo remoto, mas não menos efectivo de uma «montage of attractions» (Sergei Eisenstein). Mas o que está subjacente a este movimento, é o prolongamento da vontade teológica de dominar a existência na sua totalidade, i.e., controlando todas as virtualidades e através dela realizando todas as possibilidades. Parodicamente já Jorge Luis Borges falara de um mapa à escala 1:1, que deixara de ser utilizado e que apenas se revela nas suas ruínas quando as tempestades de areia do deserto as traz à luz do dia. Esse mapa arcaico, que se confundia com a totalidade da Terra, era o mapa teológico, ou aquele que resultará de uma época pós-tecnológica. Esse lógico fantástico que foi Lewis Carrol refere também, numa das suas obras, a existência de um mapa desse género, que utilizaria o próprio território como mapa, com a vantagem de que seria muito mais fácil de actualizar que os outros mapas. Todo o acto seria cartografável, arquivável, pois a dimensão simbólica, da distância seria desnecessária nesse mapa, que aparentemente ainda pertence ao universo do simbólico, ou melhor, da mediação. Chegar-se-ia, assim, como diz Candeiras, a um «Ciberespacio como espacio virtual agregado y total»18. Esta nova possibilidade de realizar ateologicamente a totalidade é um processo de actualização, como se refere em Lewis, pois é isso que está em causa, que o mais mínimo movimento, seja retraçado, arquivável e isso só é possível com o controlo do virtual, enquanto espaço de efectividade em geral. Os perigos desta tendência são claros: criar-se-ia uma Terra única, onde tudo está suportado numa tecnologia evanescente, anulando-se as diferenças entre o humano e o não humano. Tendência celebrada pelos cyberpunks, mas que é inaceitável, pelo menos para aqueles que consideram que a liberdade humana implica uma ruptura com a «natureza». Na verdade está a tornar-se claramente problemática a fusão do virtual controlado tecnologicamente como cyberspace com a Terra, o inorgânico. Não é por acaso que tudo se joga na tentativa de povoar esse nova espaço, mas isso apenas reforça o automatismo do cyberspace. É preciso analisar as condições em que é possível lutar contra o controlo sem o reforçar. O que passa por uma outra compreensão do virtual, naquilo que ele tem de radicalmente distinto. É preciso privilegiar o virtual, não apenas enquanto virtualização da «realidade», em si mesma pesada, demasiado pesada, e que foi sempre a história das possibilidades vencedoras19, mas enquanto espaço outro, talvez da mesma natureza da Khora de Platão. Esse espaço outro foi algures descrito por Foucault como um «espaço do dehors». É um espaço de queda heteróclita de tudo, de fragmentação de toda a totalidade, sem princípio nem fim. Mas é nele que ocorre a incessante declinação da experiência em torno de singularidades não retraçáveis, que estão sempre «algures». O virtual seria a sombra da experiência, onde o real pode finalmente aceder sem terror nem violência. Esta simples possibilidade libertar-nos-ia de séculos de violência, de nihilismo. Enquanto a potenciação que lançou a máquina do controlo é negativa - a realização de uma possibilidade impede, desloca ou substitui outras - já o virtual é afirmativo. Várias possibilidades têm existência efectiva, num tempo que não é nem o da cronologia nem o da durée. Que é o tempo da finitude do humano. O actual empobrecimento da experiência, que é povoada pela telepresença, pela voz mediada tecnologicamente, pode ser contrariado pela arte, mas coloca como questão última a política20. Dada a sua fragilidade, que se apoia numa incompletude da técnica, numa insuficiência do controlo, tudo se joga no tempo, na tensão que ocorre entre ligação e desligação, entre velocidade e demora. Deste ponto de vista é incorrecto afirmar, como faz Kerckhove que «Il est désormais possible de réaliser une installation par laquelle le point de vue mental intérieur de l'imaginaire créateur peut être renversé techniquement vers l'extérieur, sans perdre tous les pouvoirs de contrôle qu'il possède sur la fabrication, la modification et la substitution des images mentales»21. Porque se misturam aí duas coisas bem distintas: a efectivação de possibilidades que não negam outras, i.e., que não têm de destruir outras para se actualizarem, mas também a ideia de uma totalidade de controlo que impeça a entrada em pane da tecnologização do virtual. Mas justamente enquanto o virtual é o «espaço do dehors», já o cyberspace é a negação da exterioridade, a imediaticiade da ligação de tudo com tudo. A vontade de controlar o controlo apenas o potencia. Mas também não é possível abandonar o espaço aberto pelas novas tecnologias. O fracasso, chegados ao ponto a que chegamos, será mais catastrófico do que em qualquer outra altura da história22. É preciso saber responder a este perigo, Daí que se precise de uma arte da distância, de um política da divisão, de uma lógica da declinação, que salve tudo o que fizemos de nós, deixando suspensa na sua exterioridade virtual. William Burroughs dá-nos uma lição política ao lutar esteticamente contra a linearização, a ligação forte. A sua obra foi das poucas que, neste século, conseguiu pensar as condições em que é possível intervir na fusão das máquinas, do bioquímico e das paixões, que constituem o bloco alucinatório que nos atrai irremediavelmente. E cujo término equivaleria à pura vitória do controlo ou à barbárie.
José A. Bragança de Miranda
1 - Nos últimos anos tem-se vindo a consolidar o interesse pela maneira como Aristóteles articula a potencialidade e actualidade. O estudo pioneiro é o de Martin Heidegger: Aristoteles Metaphysik IX. Há tradução francesa: Heidegger - Aristote. Métaphysique. De l'Essence et Réalité de la Force, Paris, Gallimard, 1991)
2 - Sobre as implicações políticas e tecnológicas do esquema da potencialidade, cf. Christoph Flüer - «Quod racio principatis et subjecti sumitur ex racione actus et potentie» in REVISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS, 1 VOL, 1994, PP.127-142.
3 - Não por acaso no mito do progresso pressupunha-se a sua realização automática sem qualquer esforço acessório e exterior, um pouco já como Adam Smith falava da «mão invisível» do mercado, dispensando toda a intervenção.
4 - Não por acaso a modernidade, enquanto predomínio da realização, era dominada pela ideia de projecto e de programa. Cf. o meu livro Analítica da Actualidade, Lisboa, Vega, 1994.
5 - Por exemplo, na política surgiam os dois irmãos inimigos, a Realpolitik e a utopia, por dissolução da oposição entre material e ideal. Mas os dois comunicavam no espaço do imaginário virtual.
6 - Derrick de Kerckhove reconhece a existência de «dois» virtuais: «jusqu'à la révolution industrielle, consécration de la dynamique de la machine à imprimer, c'est à dire l'univers newtonien de la pesanteur, nous avons eu affaire à du virtuel "lourd", fortement conditionné par des finalités économiques et techniques. La métaphore technique fondamentale a été celle de l'énergie, potentiel brut plutôt que virtuel. Mais depuis que nous sommes entrés dans l'ère dite de l'information, du code électronique et des types de programmation qui ne passent même plus par le langage humain, le virtuel est devenu de plus en plus léger, son immatérialité invitant l'immatérialité des techniques elles-mêmes». Mas o virtual é um fenómeno bem mais lato.
7 - Cf. RÖTZER, Florian - «Virtual Worlds: Fascinations and Reactions» in PENNY, Simon (org) - Critical issues in Electronic Media, New York, Sunny, 1995, p.120.
8 - Daí o carácter ilusório de teses como as de Lyotard, na Condition Post-Moderne, sobre a invenção das regras como forma de responder ao império do tecnológico. Estas também podem ser virtualizadas, dependendo apenas da mudança de nível. E todo o salto de nível pode ser linearizado num nível superior.
9 - Cf. Jean Baudrillard - « The Virtual Illusion: Or the Automatic Writing of the World» in THEORY, CULTURE AND SOCIETY, Vol XII, 4, 1995, pp. 97.108.
10 - BOCKRIS, Victor - A Report from the Bunker with William Burroughs, Londres, Vermillion, 1982. 11 - Tese já anunciada por Rousseau no seu ensaio sobre as artes e as ciências.
12 - Cf. Ed Keller - «Cinematic Thresholds: Instrumentality, Time & Memory in the Virtual», mantis@basilisk.com, 1995.
13 - Cf. Imagologies. Media Philosophy, Londres, Routledge, 1993.
14 - O que é novo é a capacidade de jogar com a razão e a paixão ao mesmo tempo. Assim, enqaunto que anteriormente o espaço diurno da razão estava nitidamente separado do espaço nocturno do prazer, hoje com o novo espaço eléctrico essa distinção começa a esbater-se.
15 - Cf. o excelente tratamento de Eric Mottram - William Burroughs. The Algebra of Need, Londres, Marion Boyars, 1977.
16 - Os cyberpunks sonham já com os cyborgs.
17 - Marshall McLuhan - Entrevista à Playboy, 1969. Fala-se que Jerry García, do grupo rock Grateful Dead, depois de ter assistido a uma demonstração da realidade virtual, teria comentando: «Conseguiram proibir o LSD. Mas não vejo como irão conseguir proibir isto».
18 - Cf. CANDEIRA, Javier - «Bienvenidos à la Galaxia Virual in BALSA DE MEDUSA, 30/31, 1994, pp.97-116
19 - Estou a referir-me a uma conhecida passagem das «teses sobre a filosofia da história» de Walter Benjamin.
20 - Mas é uma política que mal estamos preparados para compreender, mas que não se confunde com a Realpolitik. O exemplo da administração Clinton revela a vontade controlar o controlo, sendo um bom exemplo da maneira como os políticos clássicos tentam colonizar este espaço.
21 - KERCKHOVE, Derrick de - «Le virtual, imaginaire théchnologique» in TRAVERSES, N° 44.
22 - Um breve exemplo: a falha do controlo dos paióis de pólvora no século passado, podia provocar uma quantidade de mortes e destruições apreciáveis, mas a falha de controlo ao nível da bomba nuclear, pode pôr em causa toda a humanidade. E o que dizer da experimentação com os vírus?

«O Fim do Espectáculo»

(*) COPYRIGHT: José Bragança de Miranda (1995). O texto pode ser lido e reproduzido livremente para uso pessoal. Para outras finalidades que não as estritamente pessoais, o texto não pode ser publicado ou reproduzido sob nenhum meio, sem autorização prévia do autor.*************************************

Com o suicídio terminou a luta de Guy Debord com a «sociedade do espectáculo». Se fosse verdadeira a tese de que o espectáculo impera, e impera absolutamente, com este gesto consumar-se-ia a sua entrada no espectáculo, agora na cena e não já no público. Algo de indefinido faz com que Debord escape a este destino, no momento mesmo em que parece que a sua aceitação é geral. É certo que Debord gozara sempre de uma fama subterrânea, a que sempre se pretendeu furtar. Mas o eclipse voluntário, antecipando uma espécie de suicídio, desperta atenções. Aliás, depois de durante anos ter editado em editoras marginais e pequenas revistas, já em 1990 começou a ser publicada pela Gallimard, essa editora dos Grandes nomes da cultura. Para alguns, inseridos na tradição da Internacional Situacionista, de que fora um dos membros mais influentes, esse é um resultado longamente preparado, e esperado. É o caso do grupo que se oculta sob o «nome colectivo» de Luther Blissett, que fala na consumação da «deboredom» (reino da chatice) como um gesto preparado por «Guy The Bore» (Guy o chato). Também Régis Debray, que se prepara para lhe ocupar o lugar com a sua inefável mediologia, insiste no paradoxo: «Não existe actualmente um publicitário, um responsável pela programa televisiva, um conselheiro de comunicação, um arrivista da cultura que não se passei com A Sociedade do espectáculo debaixo do braço». Debord está noutro sítio, escapando-lhes a estes que o atacam e aos outros que o defendem, com o seu humor muito especial. Sabe-se que nos seus filmes recorre abundantemente à voz off, e a sua voz contínua fora destas pequenas paixões. Num desses filmes, talvez o mais importante, Hurlements à faveur de Sade, uma voz dizia: «A ambiguidade é a perfeição do suicídio». Debord é essa ambiguidade feita pessoa. Ocultando-se infinitamente, quando aparece fá-lo com frases que não ficam nada a dever à megalomania de Nietzsche. No roteiro de Im Girum imus nocte mostra-se convencido de que a sua obra terá «acabado por sacudir a ordem do mundo». Mas aqui o mais grave não é a pseudo-temática da recuperação que alimentava o ressentimento dos anos 60, nem mesmo que os media o usem por aquele abuso característico que é o de aquecer as máquinas com algumas paixões postiças, como sejam as provocadas pela morte dos outros. O mais preocupante é que, pelo menos desde há 20 anos se tem vindo a fazer com Debord o que já tinha sido feito a McLhuan. A sua redução a uma fórmula: a sociedade do espectáculo, metonímia de Debord, como o TIDE é a metonímia dos detergentes. Por mim estou convencido que por trás desta fórmula havia algo de novo, que ainda está bem vivo e actuante. Escolho por isso a via de analisar este conceito de espectáculo, de modo a determinar da sua utilidade para a vida. Ou da sua inutilidade. Mas também de desinseri-lo das cadeias com que foi amarrado pelo saber, pelos media. Para evitar, em suma, o seu anestesiamento pela cultura contemporânea. Não por Debord, mas por nós. Antes de mais seria preciso distinguir entre a fórmula do «espectáculo» e as potencialidades da obra de Debord. Aparentando confundir-se, há entre ambos aspectos uma tensão apreciável. Algumas das críticas a Debord provêm desta confusão. É o caso de Regis Débray que reduz Debord a um pequeno acontecimento de reciclagem do marxismo e das análises do fetichismo da mercadoria. As frase famosas sobre a mundo como uma «imensa acumulação de espectáculos», ou então que «o espectáculo não é conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por imagens... » , traz a marca dessa ambiguidade. O oposição entre espectáculo e vida é inquietante, pois pressupõe que deverá existir uma apresentação directa da vida, e que toda a representação ou imagem implica uma negação dessa mesma vida. Nós, herdeiros do barroco mediterrânico, temos razões para suspeitar de uma crítica que recusa a mediação, como momento de divisão, de separação. Como disse um dia Beckett, arrancadas todas as máscaras, por trás estaria o vazio ou a morte. Aparentando Debord estar a prosseguir a crítica marxista ao valor abstracto, à ideologia, etc., elemento que está nitidamente presente na sua obra magna, faz mais do que isso. Pretendendo recorrer à mediação para a recusar, ao mesmo tempo ele revela que a mediação e a imagem são o novo do nosso tempo. Mais ainda, que não se trata de algo abstracto, antes palpável, existencialmente pertinente. O que faz dele um autor essencial, junto a Walter Benjamin e a McLhuan. Isso sobreleva o facto de continuar a funcionar dentro do esquema da dialéctica hegeliana, corrigida pela teoria da alienação do neo-marxismo de Lefèvbre, Marcuse, Gabel. A maior debilidade provém, contudo, daí: o espectáculo é visto uma imagem invertida da «realidade social», que se separou da sociedade para se voltar contra os homens. Daí a sensação de que Debord se deixa apanhar pela patologia apocalíptica, denunciando incansavelmente tudo e todos, levando-o a recusar a negatividade, a divisão, a separação, em suma, a finitude do homem moderno. Se virmos a sua prática política na Internacional situacionista, baseada na permanente divisão do movimento, por uma necessidade que parece advir de uma necessidade absoluta do seu pensamento, se reflectirmos no tipo de cinema que praticava, verificamos que existe um outro Debord, que nos pode interessar bem mais que o Debord basic da fórmula da «sociedade do espectáculo». A ambiguidade é então a seguinte: ele que recorria a procedimentos de negação que foram dos mais radicais deste século, e ao mesmo tempo recusa-os na teoria, sacrificando-os a uma história de reconciliação final, da comunidade humana realizada e «sem história». Tudo indica que Debord é verdadeiramente radical no momento da criação, que a própria criação revela uma política nova, capaz de aceitar gestos únicos e irrepetíveis que mais do que se legitimarem pela «humanidade do homem» são toda a humanidade em si. Mas, por outro lado, a sua teoria do espectáculo, e mais ainda, a sua concepção nostálgica da história em busca de uma unicidade perdida, é antitética de tudo isso. É preciso reactivar este diferendo interno da gesta de Debord. No fundo esta necessidade estava implícita na tese de que o espectáculo se disseminara absolutamente, estendendo-se a toda a experiência. A ser assim, então já não haveria um não-espectáculo, a própria divisão entre o actor activo, e o espectador passivo, desapareceria. Não fora este resultado já previsto por Nietzsche quando, no Crepúsculo dos Ídolos, mostra que a revelação de que tudo é aparência, leva a abolir a própria distinção entre aparência e verdade (ou não-aparência)? Não nos faz isso mais responsáveis pelas imagens que inventamos, sem a ilusão de que alguns são os proprietários da imagem da verdade? Quando o espectáculo emerge como espectáculo no estado puro, o que surge é a experiência como meio absoluto. Contrariamente ao que pressupunha Debord o problema não é a divisão nem a separação, mas a fusão, a indiferenciação. Tanto mais grave quanto o nosso meio dá ao virtual um suporte tecnologicamente estável. A actual discussão em torno de Debord é bem sintomática. A sua superação por Regis Débray (nos Manifestes Médiologiques) em busca de uma nova ciência, pesadamente inútil; a sua radicalização por Giorgio Agamben (na Comunidade que Vem) que identifica o espectáculo com a perda da linguagem e, portanto, da política humana; a sua dulcificação pelo filósofo americano Mark Taylor (em Imagologies) que nele um dos antecipadores do «pós-moderno», em que «o poder se tornou imaginário» e em que «ninguém está no controle», revela que há algo de excessivo em Debord, que escapa à apreensão. É esse «algo» que deve ser voltado contra o próprio Debord. Por mim suspeito que é na luta contra o controlo que tudo se joga . Hoje está em causa não apenas o controlo dos homens, mas o controlo do controlo, que alimenta a ilusão de dominar a tecnologia, apenas a potenciando. O novo espaço cibernético tende a inscrever na sua estrutura virtual o espaço da vida, todos os locais, como o espaço da visão e das paixões. A tendência à fusão das máquinas com as paixões, a todos amarrando pela imagem mostra que é a resposta passa pela divisão, pela desagregação, pelos pequenos vincos que possamos fazer nessa superfície extensa e ligada que é a da mediação. A categoria de espectáculo pressupunha ainda uma distancia, uma separação, entre o que era espectáculo e o que não o era. A sua aplicação é mínima, pouco se podendo esperar dela. É interessante verificar que Debord tem afinidades secretas com um dos grandes génios do nosso século, William Burroughs, que teve a vantagem de extrair dos seus procedimentos artísticos toda a filosofia e política de que precisava. Num pequeno texto, Quick Fix, Burroughs está já a anos-luz da pesada dialéctica do espectáculo. Numa frase aparentemente enigmática diz-se: «The theater is closed» («o teatro fechou»). E, sem qualquer argumento, somos arrastados por outras frases que refulgem uma sobre outras, acentuando que já não há lugar fora do teatro, tudo ocorre no mundo, que estamos divididos nesse mundo, que não há lugar para onde escapar, que tudo se resume a cortar as «linhas» das palavras e dos sentimentos com as máquinas. E a injunção que, no fundo, estou convencido, fazia mexer Debord: «Smash the control machine» ("Destrói a máquina de controlo"). Esse é o desafio estético e político do nosso tempo. A famosa noção de espectáculo revela-se como aquilo que é: um efeito da máquina de controlo. Neste sentido é preciso lutar contra ela. E podemos contar com Debord, que nos fala em voz off, como no seu cinema, para essa luta. Apesar de todas as ambiguidades...