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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Divulgando Festa !

Este Blog faz uma pausa para uma...festa !!
(parceria com o Blog Epifenomenologia)



Alunos da USP homenageiam Lévi-Strauss com Selvagens Trópicos, festa de despedida e aniversário


Nada de chororô ou liturgia. O que alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) escolheram para homenagear um dos mais ilustres ex-professores da casa, Claude Lévi-Strauss, que faleceu no último dia 30 de outubro e faria aniversário no dia 28 de novembro, próximo sábado, foi realizar uma festança gratuita, regada a cerveja vendida a R$ 1,50 e animada por sons bem brasileiros.
O nome do evento, Selvagens Trópicos, faz referência ao livro "Tristes Trópicos", publicado pelo antropólogo e filósofo francês em 1955 - uma etnografia romanceada que narra a experiência do autor entre grupos indígenas brasileiros.
O show da banda Totens & Tabus, formada por professores e alunos da Universidade de São Paulo, promete experimentos musicais intrigantes. Um samba-enredo para Lévi-Strauss, talvez? Ou uma bossa nova em Bororo, quem sabe? De qualquer forma, não será algo que ocorre ordinariamente nos corredores da Cidade Universitária.
Entrando no jogo, as garotas Jamille Pinheiro, Larissa Barcellos e Nana Ribeiro cuidam da discotecagem. Tropicalistas como Caetano Veloso, Os Mutantes e Tom Zé devem dar o tom no repertório, além do soul funk de Tim Maia, o sambalanço de Jorge Ben Jor e outras batucadas, acústicas e eletrônicas.
Serviço
Selvagens Trópicos
Data: 27/11, sexta-feira
Horário: 22h - ******* IMPORTANTE: Não-alunos da Universidade de São Paulo devem chegar à Cidade Universitária antes das 20h. ******
Local: Espaço Verde, no Prédio de Ciências Socias da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
Endereço: Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária - São Paulo/SP
Cerveja a R$ 1,50
Entrada Franca
Banda
Totens & Tabus
DJs
Jamille Pinheiro
Larissa Barcellos
Nana Ribeiro
Se você é jornalista e deseja mais informações a respeito da Selvagens Trópicos, entre em contato pelo e-mail selvagenstropicos@gmail.com

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Perspectivismo: para além do pós-modernismo


(Nota do Blog Epifenomenologia: O texto abaixo é uma tradução livre do artigo "Perspectivism: ‘Type’ or ‘bomb’?" de Bruno Latour, publicado na revista "At Anthropology Today" - vol. 25 nº2, abril 2009, disponível no site do autor. Trata-se de um comentário realizado a propósito do debate entre Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola ocorrido na Maison Suger, em Paris, no dia 30 de Janeiro de 2009.)


PERSPECTIVISMO: MODELO OU BOMBA? (*)


Bruno Latour


Paris, 30 de Janeiro


Quem disse que a vida intelectual de Paris estava morta? Quem disse que a antropologia não mais era vívida e atraente? Aqui estamos, numa fria manhã de Janeiro, em uma sala cheia de gente de diversas disciplinas e vários países, ávidos por ouvir um debate entre dois dos maiores e mais brilhantes antropólogos. O rumor circulou por salas de bate-papo e cafés: depois de anos aludindo aos seus desacordos, em particular ou por publicações, eles concordaram enfim em trazê-los a público. “Vai ser áspero”, me disseram; “vai ter sangue”. Na verdade, em vez da rinha esperada por alguns, a pequena sala na Rue Suger testemunhou uma disputatio(1), muito parecida com aquelas que devem ter tido lugar entre estudiosos fervorosos aqui, no coração do Quartier Latin, por mais de oito séculos.

Apesar de se conhecerem há 25 anos, os dois decidiram começar a sua disputatio lembrando à platéia do importante impacto do trabalho um do outro em suas próprias descobertas.

Philippe Descola primeiramente reconheceu o quanto ele aprendeu com Eduardo Viveiros de Castro quando estava tentando se extirpar do binarismo “natureza versus cultura” ao reinventar a então obsoleta noção de “animismo” para entender modos diferentes de relação entre humanos e não-humanos. Viveiros havia proposto o termo “perspectivismo” para um modo que não poderia ser mantido dentro das limitadas estrituras [narrow strictures] de natureza versus cultura, já que para os índios que ele estudava, a cultura humana é aquilo que vincula todos os seres - incluindo animais e plantas - ao passo que eles estão divididos por suas naturezas diferentes, ou seja, seus corpos (Viveiros 1992).

É por este motivo que, enquanto os teólogos em Valladolid debatiam acerca dos índios terem ou não uma alma, esses mesmos índios, do outro lado do Atlântico, testavam os conquistadores ao afogá-los para ver se apodreciam - uma bela maneira de ver se eles realmente tinham corpo; o fato de terem uma alma não estava em questão. Este famoso exemplo de antropologia simétrica levou Lévi-Strauss a notar, com uma certa ironia, que os espanhóis podiam ser bons em ciências sociais mas que os índios estavam conduzindo suas pesquisas de acordo com o protocolo das ciências naturais.


Descola

Os quatro modos de relação de Descola

Descola, então, explicou como a sua nova definição de animismo poderia ser utilizada para distinguir “naturalismo” - a visão geralmente tida como posição padrão adotada pelo pensamento Ocidental - de “animismo”. Enquanto os “naturalistas” traçam semelhanças entre entidades com base em aspectos físicos e os distinguem com base em características mentais ou espirituais, o “animismo” toma a posição oposta, sustentando que todas as entidades são semelhantes em termos de seus aspectos espirituais, mas se diferem radicalmente em virtude do tipo de corpo do qual são dotadas.

Este foi um avanço notável para Descola, já que significou que a divisão “natureza versus cultura” não mais constituía o background inevitável adotado pela profissão como um todo, mas apenas uma das maneiras que os “naturalistas” tinham de estabelecer as suas relações com outras entidades. A Natureza deixara de ser um meio [resource] para se tornar um problema [topic]. É desnecessário dizer que esta descoberta não estava perdida entre as nossas, no campo vizinho dos science studies, que estudávamos, histórica ou sociologicamente, como os “naturalistas” tratavam as suas relações com não-humanos.

Foi então possível para Descola, como ele explicou, adicionar a este par de conexões um outro par no qual as relações entre humanos e não-humanos eram ou semelhantes em ambos os lados (o que ele chamou “totemismo”) ou diferentes nos dois lados (um sistema por ele denominado "analogismo") . Ao invés de cobrir todo o globo com um único modo de relações entre humanos e não-humanos que então serviria como um background para detectar as variações “culturais” entre muitos povos, este próprio background virara objeto de investigação cuidadosa. Os povos não se diferem apenas em suas culturas mas também em suas naturezas, ou antes, na maneira pela qual elas constroem relações entre humanos e não-humanos. Descola foi capaz de alcançar o que nem os modernistas nem os pós-modernos conseguiram: um mundo livre da unificação espúria de um modo naturalista de pensar.

Apesar da universalidade imperialista dos “naturalistas” ter sido ultrapassada, uma nova universalidade ainda era possível, uma que permitisse que cuidadosas relações estruturais fossem estabelecidas entre as quatro maneiras de construir coletivos [building collectives]. O grande projeto de Descola era então reinventar uma nova forma de universalidade para a antropologia, mas desta vez uma “relativa”, ou melhor, uma universalidade “relativista”, que ele desenvolveu em seu livro Par delà nature et culture (2005). A seu ver, por mais profunda que fosse a investigação de Viveiros, ele focava apenas um dos contrastes locais que ele, Descola, tentara contrastar com numerosos outros procurando obter uma variedade maior.

Eduardo Viveiros de Castro


Dois perspectivismos no perspectivismo

Apesar de se serem amigos por um quarto de século, duas personalidade não poderiam ser mais distintas. Depois do tom aveludado da apresentação de Descola, Viveiros falou por incursões breves e aforísticas, lançando uma espécie de Blitzkrieg em todas as frentes a fim de demonstrar que também ele pretendia atingir uma nova forma de universalidade, só que uma muito mais radical. Perspectivismo, sob seu ponto de vista, não deveria ser considerado como uma simples categoria dentro da tipologia de Descola, mas antes como uma bomba com o potencial de explodir toda a filosofia implícita tão dominante na maior parte das interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais. Se há uma abordagem que é totalmente anti-perspectivista, é a noção mesma de um termo [type] dentro de uma categoria, uma idéia que só pode ocorrer àqueles a quem Viveiros chamou “antropólogos republicanos”.

Como Viveiros explicou, o perspectivismo virou algo como uma moda nos círculos amazônicos, mas esta moda oculta um conceito muito mais incômodo, que é o de “multinaturalismo”. Enquanto os pesquisadores, tanto das ciências duras quanto das ciências humanas, concordam igualmente com a noção de que há apenas uma natureza e muitas culturas, Viveiros quer levar o pensamento amazônico (que não é, ele sustenta, a “pensée sauvage” que Lévi-Strauss sugeriu, mas uma filosofia totalmente civilizada e altamente elaborada) a tentar ver como o mundo inteiro seria se todos os seus habitantes tivessem a mesma cultura e muitas naturezas diferentes. A última coisa que Viveiros pretende é que a luta ameríndia contra a filosofia ocidental se torne apenas mais uma bizarrice no vasto gabinete de curiosidades que ele acusa Descola de estar tentando construir. Descola, ele argumenta, é um “analogista” - isto é, alguém que é possuído pela cuidadosa e quase obsessiva acumulação e classificação de pequenas diferenças a fim de preservar um senso de ordem cósmica face à constante invasão de diferenças ameaçadoras.

Notem a ironia aqui - e a tensão e atenção na sala aumentaram neste momento: Viveiros não estava acusando Descola de estruturalista (uma crítica que foi frequentemente dirigida a seu maravilhoso livro), já que o estruturalismo, como Lévi-Strauss o concebe, é, ao contrário, “um existencialismo ameríndio”, ou antes “a transformação estrutural do pensamento ameríndio” - como se Lévi-Strauss fosse o guia, ou melhor, o xamã que permitiu ao perspectivismo indígena ser conduzido para dentro do pensamento Ocidental a fim de destruí-lo a partir de seu interior, numa espécie de canibalismo invertido. Lévi-Strauss, longe de ser o catalogador frio e racionalista de mitos distintos contrastados, aprendera a sonhar e divagar como os índios, exceto que ele sonhava e divagava por meio de fichamentos e parágrafos refinados. Mas o que Viveiros criticou foi que Descola arrisca tornar a transformação de um tipo de pensamento para outro “demasiadamente leve”, como se a bomba que ele, Viveiros, queria colocar na filosofia ocidental tivesse sido desarmada. Se nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia, toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências sociais, teria que ser descartada.

A essa crítica Descola respondeu que ele não estava interessado no pensamento Ocidental, mas no pensamento de outros; Viveiros replicou que o problema era a sua maneira de estar “interessado”.

Bruno Latour


Pensamento descolonizador

O que está claro é que este debate destrói a noção de natureza como um conceito universal que cobre todo o globo, por conta do qual os antropólogos têm o dever triste e limitado de adicionar o que quer que tenha restado de diversidade sob a noção velha e desgastada de “cultura”. Imaginem como os debates entre antropólogos “físicos” e “culturais” podem ficar quando a noção de multi-naturalismo for levada em consideração. Descola, não obstante, ocupa a primeira cadeira de “antropologia da natureza” no prestigioso Collège de France, e eu sempre me perguntei como os seus colegas das ciências naturais conseguem ensinar os seus próprios cursos ao lado daquilo que para eles deveria ser uma fonte de material radioativo. A preocupação de Viveiros de sua bomba ter sido desativada talvez esteja equivocada: um novo período de florescimento é aberto para a antropologia (ex-física e ex-cultural) agora que a natureza deixou de ser um meio para se tornar um problema muito contestado, no momento mesmo, por acaso, em que a crise ecológica - um assunto de grande preocupação política para Viveiros no Brasil - reabriu o debate que o “naturalismo” tentara prematuramente fechar.

Mas o que é ainda mais recompensador de ver numa disputatio como esta é o quanto nós progredimos com relação à categoria modernista e, depois, pós-moderna. Certamente, a busca por um mundo familiar é infinitamente mais complexa agora que tantos modos diferentes de habitar a terra ficaram livres para se implantar. Mas, por outro lado, a tarefa de compor um mundo que ainda não é familiar está claramente colocada para os antropólogos, uma tarefa que é tão grande, tão séria e tão recompensadora quanto qualquer outra coisa com a qual eles tiveram que lidar no passado. Viveiros apontou para isto em sua resposta para uma questão vinda da platéia, usando uma espécie de aforismo trotskista: “Antropologia é a teoria e prática de permanente descolonização.” Quando ele acrescentou que “a antropologia hoje está largamente descolonizada, mas a sua teoria ainda não é descolonizadora o suficiente”, alguns de nós na sala tiveram o sentimento de que, se este debate for indicativo de algo, nós podemos finalmente estar chegando lá.



* Traduzido por Larissa Barcellos


Notas:

1- Disputatio: tipo de disputa de idéias e argumentos ocorrida no período medieval entre dois professores com posições contrárias, que apresentavam suas idéias em pequenas proposições para serem publicadas e, depois, debatidas entre o público acadêmico. Em debates deste tipo, os alunos tinham como tarefa acompanhar e recolher todas as idéias em uma síntese. Para saber mais: http://isaiaslobao.blogspot.com/2008/11/disputatio-theologica.html (N.T.)


(Extraído do Blog Epifenomenologia)

domingo, 17 de maio de 2009

Lévi-Strauss pós-estruturalista

Claude Lévi-Strauss


(...)

Lévi-Strauss:

"O que eu propus ?
Propus que os direitos do homem não se baseassem mais, como foi feito após a Independência Americana e a Revolução Francesa, no caráter único e privilegiado de uma espécie viva, mas, ao contrário, que se visse nisso um caso particular de direitos reconhecidos a todas as espécies.
Seguindo essa direção, dizia, estaremos em condições de conseguir um consenso mais amplo de que uma concepção restrita dos direitos do homem, já que nos encontraríamos, no tempo, com a filosofia estóica; e no espaço, com as filosofias do Extremo-Oriente. Estaríamos, até, no mesmo nível de atitude prática que os povos chamados primitivos, que são objeto de estudo dos etnólogos, têm diante da natureza; algumas vezes sem teoria explícita, mas observando preceitos cujo efeito é o mesmo.

(...)



Lévi-Strauss:

Afastei-me da pintura de vanguarda por motivos diferentes: meu apego a uma arte insubstituível, uma das mais prodigiosas criadas pelo homem no curso de milênios, e que se prende a uma certa concepção do lugar do homem no universo. Como tantos outros problemas, os levantados pela arte não têm uma única dimensão.

Didier Eribon:

Voltamos a encontrar algo parecido com o que o senhor dizia a respeito dos direitos do homem. A pintura contemporânea é o ponto final de uma corrente que restringiu o homem a um téte-à-téte consigo mesmo.

Lévi-Strauss:


Sim, a idéia de que os homens conseguem extrair de si mesmos criações que valem tanto ou até mais do que as da natureza. Sérusier, um contemporâneo de Gauguin, já escrevia a Maurice Denis que, comparado ao que tinha na cabeça, a natureza parecia-lhe pequena e banal. Ora, a meu ver, o homem deve persuadir-se de que ocupa um lugar ínfimo na criação, que a riqueza desta ultrapassa-o, e que nenhuma de suas invenções estéticas rivalizará um dia com as que oferecem um mineral, um inseto ou uma flor. Um pássaro, um escaravelho, uma borboleta convidam à mesma contemplação que reservamos a Tintoretto ou a Rembrandt; mas nosso olhar perdeu seu frescor, não sabemos mais ver.


(Trechos extraídos do livro: De Perto e de Longe - Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, pags. 231, 246.)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Viveiros de Castro fala sobre Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss


Leia entrevista com Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


CAIO LIUDVIK

colaboração para a Folha de S.Paulo




Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa, em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem" (ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural. Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses do mundo global.


Folha - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?


Eduardo Viveiros de Castro -
Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.


Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?


Viveiros de Castro -
Todas. "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de Durkheim.


"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história humana.


"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.


Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de Lince", 1991) são o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.


Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.


A partir das "Mitológicas", a obra de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar --sem mais.


Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da América pelos europeus.

Eduardo Viveiros de Castro

Folha - Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro" teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?


Viveiros de Castro -
Os dois primeiros livros de antropologia que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa Lima dava na PUC-RJ na época.


Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito características, que não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.


A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido" (volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.


Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na efervescência cultural da época, a época da tropicália e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte, do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito: uma matemática rabelaisiana. Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica, de Rabelais e Descartes.


Folha - Hoje é possível considerar a antropologia estrutural, em algum sentido, ultrapassada?


Viveiros de Castro -
Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas (ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.


Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.


Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.


Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou a ser explorada em toda a sua complexidade.



O estruturalismo está muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra lévi-straussiana --simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos (e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já ia dizer, ultrapassados) --aproxima-se de seu fim.


Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar --como dizia Leach, de "repensar"-- o estruturalismo.


Lévi-Strauss, que completou 100 anos em 2008,
em foto de 2005

Folha - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças --mais do que nas semelhanças-- entre as culturas. E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer: erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma vontade de elucidar os traços universais da "mente humana", negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?


Viveiros de Castro -
Leach era um piadista, um caso curioso de enfant terrible vitalício da antropologia britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.


(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não misturemos as estações).

Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à liderança intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.


Quanto a isso de erudição monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades culturais --tal coisa não existe.


A distinção entre antropologias francesa e britânica não se reduz a --nem sequer passa por-- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.


Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.


A oposição entre universal e particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.


Folha - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção, literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?


Viveiros de Castro -
As críticas de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são irrelevantes.


Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês Lévi-Strauss.


Parece coisa de inveja da excelência alheia.


"Tristes Trópicos" não é um livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz --que não é nada má, diga-se de passagem-- por um único capítulo de "Tristes Trópicos".

Geertz



Folha - Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?


Viveiros de Castro -
As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente: que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.


E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções à tradição intelectual dos povos que não tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.


(Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 25/11/2008)

Extraído do Blog Epifenomenologia

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S. - MOVIMENTO ANTIUTILITARISTA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS. Intinerários do dom

Marcel Mauss



Claude Levi-Strauss



Por: Paulo Henrique Martins


Este artigo constitui um balanço provisório dos dez anos de difusão de uma abordagem não-estruturalista sobre o dom, que destaca a liberdade da ação sem negligenciar o valor da obrigação. Assinalamos o período de dez anos pois o ano de 1998 é um marco para alguns eventos que tiveram relevância na difusão de uma nova abordagem sobre o dom: em primeiro lugar, o lançamento do livro O espírito da dádiva, de Jacques Godbout em colaboração com Alain Caillé, que atualiza o valor do dom para explicar fenômenos sociais modernos como a solidariedade social e a doação de órgãos, por exemplo; em segundo, a visita de Godbout ao Brasil como conferencista da Anpocs; em terceiro lugar, a publicação na de autores que se mostram simpáticos à revisão do debate. Assim no número 38 da RBCS de 1998 foram publicados três textos que, no nosso entender, legitimam direta ou indiretamente um paradigma do dom: o artigo de Alain Caillé “Nem holismo nem individualismo metodológico: Marcel Mauss e o paradigma do dom” e o de Jacques Godbout, “Introdução à dádiva”, que tratam diretamente do assunto; e o artigo de Gabriel Cohn, “As diferenças finais: de Simmel a Luhman”, no qual o autor propõe revisitar Simmel a partir de sua proximidade de autores como Mauss – e numa outra perspectiva também Luhman –, que se recusam a aceitar um paradigma baseado na centralidade da troca na vida social, que recusam o reducionismo econômico e que valorizam as relações recíprocas sempre renovadas, sem perder de vista a totalidade. Deve-se ainda relacionar na linha de textos não estruturalistas sobre o dom o artigo de Lygia Sigaud, “As vicissitudes do Ensaio sobre o dom”, de 1999. Embora não dialogando diretamente com os autores do M.A.U.S.S., a autora realiza uma brilhante revisão da leitura empreendida por Lévi-Strauss sobre o dom.


Percepções do dom


Qual o lugar dos estudos sobre o dom ou a dádiva1 no interior da Teoria Social? No caso brasileiro, a difusão dos estudos sobre o dom está condicionada absolutamente pela presença do estruturalismo antropológico como filtro mediador? Ou existem outras leituras também legítimas que valorizem o dom numa perspectiva disciplina mais ampla, envolvendo a sociologia, a economia, a filosofia e a política e que sejam relevantes para a renovação do pensamento teórico?
No desenvolvimento deste artigo defenderemos o caráter interdisciplinar e interacionista dos estudos sobre o dom, reforçando a tese, já proposta por outros autores, de entendê-lo como fundamento de um novo paradigma,2 como base de uma ciência moral humanista cujas raízes estão inscritas não apenas na trajetória de Mauss, mas, antes, no humanismo de Durkheim.3 Pretendemos reforçar a leitura não-estruturalista da dádiva, permitindo entendê-la como uma teoria de reciprocidade aberta e ambivalente. Não-estruturalista porque sem negar o valor da lingüística estrutural esta outra abordagem do dom considera igualmente válidas as correntes do pensamento que se desenvolveram em paralelo ao estruturalismo. Tal abordagem alternativa distancia-se do tratamento tradicional oferecido pelo estruturalismo – que enfatiza no dom uma função de troca relativamente rígida –, para realçar no vínculo social um paradoxo entre a regra e a espontaneidade, entre a liberdade e a obrigação. Por se abrir à liberdade e à criatividade do sujeito social, essa visão não-estruturalista é também antiutilitarista, revelando-se como um recurso explicativo importante para a crítica dos discursos que reduzem os motivos da ação social a um utilitarismo material – o interesse econômico no caso do mercado – ou a um utilitarismo normativo – o respeito incondicional à norma no caso de sistemas estatais tecnocráticos. Na perspectiva aqui assinalada, o dom aparece como uma alternativa a esses dois paradigmas tipicamente modernos, o do mercado e o do Estado.
Tal leitura alternativa que identifica o dom como um sistema aberto de reciprocidades permite associar Marcel Mauss a autores interacionistas como Simmel, lembra Gabriel Cohn, que valorizam “relações recíprocas sempre renovadas para além do seu impulso inicial” (Cohn, 1998, p. 54). Nesta associação podemos também relacionar autores como Mead, Cooley e Goffman, que são referências na origem e no desenvolvimento dos estudos interacionistas. A desconstrução da abordagem estruturalista do dom contribui para revelar, por outro lado, o vínculo do dom com o novo movimento teórico, expressão vulgarizada por Jeffrey Alexander para explicar que a renovação da teoria sociológica passa necessariamente pela consideração da hermenêutica científica, do discurso e da cultura (Alexander, 1987). Sobre este último ponto – uma maior associação do social com a cultura –, o dom aparece necessariamente como operador simbólico estratégico do novo movimento teórico pelo fato de situar-se nas fronteiras de disciplinas como a etnologia, a antropologia e a sociologia. Neste texto, partimos do princípio de que o novo movimento teórico tem desdobramentos nas ciências sociais que se reportam necessariamente a certas experiências de descontinuidades epistêmicas no campo científico: uma, mais restrita, diz respeito à virada lingüística ocorrida entre os anos de 1970 e 1980 (Dosse, 1997); outra, mais ampla, trata da virada epistemológica que remete aos anos de 1940, mais precisamente aos fenômenos trágicos da Segunda Guerra Mundial e à crise da filosofia da história (Merleau-Ponty, 1960). Nesta segunda e mais abrangente leitura, o novo movimento teórico afirma-se não apenas com relação ao estruturalismo, mas, igualmente, com relação a uma série de outras correntes de pensamento que se desenvolveram em paralelo ao estruturalismo como a teoria crítica da escola de Frankfurt, a filosofia política crítica do totalitarismo de Hanna Arendt, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, a filosofia analítica inglesa de Wittgenstein, que tem uma ponte na França mediante Ricoeur e as escolas interacionistas norte-americanas de Blumer, Goffman e Garfinkel. Neste texto, pretendemos situar os estudos sobre o dom nesta ótica mais ampla que inclui o estruturalismo, mas que se enraíza em um diálogo mais amplo com outras correntes teóricas. De modo geral, os esforços de divulgação dos estudos sobre o dom encontram dificuldades de várias ordens, dependendo dos contextos sóciohistóricos de sua recepção. Desde já, é importante esclarecer que a revisão dos estudos sobre o tema no pensamento social, no Brasil, exige não se reduzir a relação entre dom e troca no campo acadêmico à ótica sugerida pela antropologia estrutural e por Lévi-Strauss, incluindo outras percepções científicas e não-científicas do tema. Há que se chamar atenção sobre as implicações semânticas da dádiva, isto é, sua recepção e difusão no imaginário popular através da reprodução da tradição católica. Há que se ressaltar ainda as reações dos defensores do utilitarismo econômico contra uma teoria eminentemente antiutilitarista como esta, o que tem sido ressaltado por vários autores, embora no Brasil este debate necessite de maior vigor. Há, em suma, três focos de resistência contra uma difusão mais empolgante do dom no pensamento crítico: uma tem a ver com a representação religiosa do termo dom, outra, com a reação utilitarista e neoliberal contra o pensamento humanista e associativo e, em terceiro lugar, no interior do campo acadêmico, a reação dos simpatizantes da antropologia estrutural contra releituras da obra de Mauss a partir de um enfoque sociológico e político. É de se ressaltar que, em conjunto, tais resistências inibem o avanço do debate, exigindo certo esforço para desfazer os nós criados em torno desse tema. Vejamos a seguir cada um deles mais de perto.

Dom e senso comum



Sobre o primeiro aspecto, a forte vinculação do termo dom com o senso comum religioso, já tratamos deste assunto em outra oportunidade, em particular no artigo “A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação” (Martins, 2005). Embora este tema não seja fundamental neste artigo, é de se reconhecer que parte das dificuldades de difusão dos estudos sobre a dádiva no Brasil, está ligada à forte associação deste termo com a religiosidade popular e com a influência do catolicismo tradicional sobre o imaginário da doação. No caso dos países influenciados pela cultura religiosa ibérica e, em particular, a lusitana, a forte associação da palavra dom com o imaginário católico tradicional constitui um elemento inibidor da sua compreensão científica,4 demonstrando a força do senso comum na representação deste fenômeno socioantropológico. De fato, no imaginário brasileiro, esta palavra está fortemente associada às idéias de caridade, de virtude divina, de angelismo, isto é, de identificação da idéia de dom com uma interpretação espiritualista do ser humano. Embora tal compreensão religiosa do dom pelo senso comum não deva ser desprezada, pretendemos demonstrar que esta é apenas uma leitura do termo, e que não é a mais importante.

Dom e utilitarismo econômico




Uma segunda dificuldade para a difusão deste debate na Teoria Social tem relação com o reducionismo econômico e com as resistências de certas teorias individualistas – como as da escolha racional e do individualismo metodológico –, que não identificam no sistema da dádiva uma categoria sociológica que contemple a presença da racionalidade instrumental que elas tanto valorizam. Este tema tem recebido uma atenção bastante ampla dos críticos, envolvendo o próprio projeto do M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais) (Caillé, 1989 e 1998; Godbout, 1998a e 1998b), que defende a idéia de que o sistema do dom não é arbitrário e que se abre a diversas racionalidades, entre outras, a do interesse instrumental. Mas considerando o peso do utilitarismo nas ciências sociais, inclusive no Brasil, não se pode deixar de fazer uma alusão à dificuldade que o mesmo significa na divulgação dos novos estudos sobre o dom. Pois, para os simpatizantes das teorias acima lembradas a dádiva seria uma “teoria menor” ao pressupor que a ação social se fundaria em mera generosidade e altruísmo. Ao contrário, propõem tais críticos, os homens seriam, sobretudo, indivíduos egoístas que agem de acordo com seus próprios interesses, não existindo a gratuidade e o desinteresse. Muitos dos esforços dos estudiosos sobre o dom, ao menos nos anos de 1980, foram direcionados para provar que a ação social não se reduz apenas ao interesse material, havendo também o interesse pelo poder, pelo prestígio e pelos bens simbólicos em geral. Além do fato de que o interesse não é apenas autocentrado, mas também heterocentrado. Este tipo de discussão abre necessariamente os estudos sobre a dádiva para a tradição interacionista, assunto que será aprofundado mais adiante.



Levi-Strauss



Dom e estruturalismo antropológico


Há uma dificuldade respeitável dentro do próprio campo das ciências sociais para se atualizar a compreensão do Ensaio sobre a dádiva forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas (em Mauss, 2003), desfazendo a redução do dom à troca, como foi feito por Lévi-Strauss a partir de uma leitura marcada pela influência da teoria lingüística, com impacto importante sobre os estudos antropológicos.5 O pensamento crítico demonstra dificuldades para se libertar da leitura estruturalista na medida em que houve uma revitalização da dádiva, nos anos de 1980, a partir da idéia de que a mesma contém uma explicação mística da troca (Sigaud, 1999, p. 113). A persistência do estruturalismo através de novas leituras que atualizam sua essência dificulta os esforços de se retomar o Ensaio sobre a dádiva sob outro ângulo teórico que realce suas dimensões sociológicas e polítidcas que são necessárias para a crítica ao utilitarismo. De fato, existem divergências que tendem a situar em lados opostos aqueles estudiosos simpatizantes da vinculação dos estudos sobre o dom à antropologia estrutural, e os que sustentam possuir a dádiva um sentido mais universal, que interessa também à sociologia e às ciências sociais como um todo. Para os que defendem haver uma estreita associação do dom com a antropologia estrutural, o interlocutor privilegiado de Mauss seria Lévi-Strauss, seu discípulo mais conhecido, e os tradutores deste pai da antropologia estrutural que passou a considerar a reciprocidade como uma forma de intercâmbio simétrico (Sabourin, 2004, p. 78). Nesta ótica, a disputa entre antropólogos estruturalistas e demais cientistas sociais sobre a herança de Mauss gera prejuízos em termos de difusão do dom como uma teoria do conhecimento extremamente relevante, por exemplo, para a crítica do pensamento hegemônico, o utilitarismo econômico.6 Ao deixar o dom prisioneiro de uma disputa acadêmica e de um quadro de análise rígido, perde-se de vista seu valor prático para a crítica teórica no sentido de repensar o direito, a economia e a política. Mas, a partir dos fins dos anos de 1970, com as pressões políticas e teóricas a favor do “retorno do sujeito” – não de um sujeito ontológico, mas de sujeitos abertos à diferenciação e à diversidade, como defendem os autores pós-estruturalistas –, as teses do dom como uma função estrutural fixa passam a ser revistas. A crítica tem como fonte central o reconhecimento da liberdade do sujeito social na definição de suas obrigações morais e nos processos de construção de alianças e de formulação de novos sistemas de reciprocidade. No Brasil, deve ser destacada a crítica acertada que faz Lygia Sigaud à tentativa de Lévi-Strauss de reduzir as obrigações que via Mauss nas ações de dar-receber- retribuir a uma teoria de troca rígida (Sigaud, 1999, p. 106), o que constitui uma contribuição importante para se avançar na reinterpretação dos estudos sobre o dom.

Síntese preliminar

As resistências à renovação dos estudos sobre a dádiva revelam a força de crenças, preconceitos e desinformações que distorcem a recepção correta do seu sentido. Nenhuma das objeções tradicionais constitui, porém, um impedimento para que se resgate o valor do dom na crítica social. É o que faremos, a seguir, procurando demonstrar que no dom há uma teoria da reciprocidade aberta e flexível, que permite revelar a complexidade das motivações presentes na ação social, que favorece resgatar a experiência e o valor da ação intersubjetiva, que favorece, ainda, articular o saber comum e o saber científico e que, por fim, valoriza o cotidiano sem desprezar as articulações entre os planos micro e macro. Nessa perspectiva, a confusão semântica gerada pelo termo dom não deve ser considerada uma dificuldade para seu reconhecimento como um sistema de ação primário presente em todas as sociedades tradicionais e modernas, como demonstrou Mauss no seu Ensaio sobre a dádiva. A co-presença cultural e histórica deste sistema motivou Caillé a propor que ele constitui o paradigma por excelência, ou seja, um paradigma arcaico e anterior àqueles do mercado e do Estado, que seriam derivações do dom (Caillé, 2002b; Godbout, 2002). Este caráter universal do dom, mas, ao mesmo tempo, aberto à diversidade, à liberdade de o sujeito social desfazer a aliança segundo suas motivações particulares dadas por certo quadro normativo, permite propor, igualmente, o dom como base de uma ciência moral humanista, que possibilita sua articulação com a solidariedade e com a democracia. Desse modo, a discussão sobre o dom pode se libertar progressivamente dos velhos condicionantes interpretativos, que o definiam como uma função simbólica rígida, para receber nova acolhida na teoria social. Mas o trabalho de desconstrução das resistências assinaladas – a tradição religiosa católica, o utilitarismo econômico e a antropologia estrutural – não pode ser feito apenas pela declaração de boas intenções reconciliando o dom e o novo movimento teórico. É importante entender que as leituras diversas sobre este sistema – vulgares ou científicas – resultam de um trabalho de adaptação e recriação de conceitos a partir de um contexto que é sempre mutante. Nesse sentido, entendemos que o desenvolvimento desta reflexão deve considerar alguns passos: um deles, os sentidos da tradução e do contexto que delimitam o trabalho de adaptação e recriação de idéias apropriadas; o outro, o contexto no qual foi produzido o Ensaio sobre a dádiva, que compõe a matriz inspiradora do debate para todos os envolvidos. Tal contextualização permite entender que a obra de Mauss não tem apenas valor etnológico ou antropológico, mas uma grande atualidade sociológica para a explicação das sociedades contemporâneas.

Vicissitudes de uma interpretação não-estruturalista do dom


O resgate dos estudos sobre o dom numa perspectiva não-estruturalista deve considerar a proposição sustentada pelos teóricos da fenomenologia de que a realidade objetiva – que o estruturalismo definiu como sendo uma invariante simbólica – é sempre uma projeção do pensamento, e que sua apreensão objetivada sempre escapa dos métodos aplicados. Não apenas por haver uma relação de dependência mútua entre o sujeito e o objeto, mas porque o próprio método é sempre condicionado pela experiência vivida do sujeito social. Esta tese apresenta de imediato uma reflexão filosófica sobre a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento e uma outra de caráter epistemológico a respeito da importância do contexto para a produção e a adaptação de idéias e valores do método lingüístico na organização de um conhecimento objetivo. A crítica filosófica referente aos status do sujeito e do objeto é ampla, diga-se de passagem, estando na base de contribuições hermenêuticas e fenomenológicas de grandes autores do século XX, como Husserl, Heidegger, Sartre, Bergson, Wittgenstein, Austin, Ricoeur, entre outros. Mas gostaríamos de nos deter em Maurice Merleau- Ponty, que escreveu um instigante artigo intitulado “De Mauss à Claude Lévi-Strauss” (1960).

Merleau-Ponty




Para ele, os lugares do sujeito e do objeto apresentam uma conotação particular quando se pensam as relações entre os seres humanos e a invenção de um mundo compartilhado. Nessa direção, o reconhecimento do corpo fenomenal – ou corpo subjetivo – é uma condição para se superar o dualismo citado. Entender este corpo não mais como mero suporte mecânico, mas como capacidade expressiva, permite que o sujeito se perceba imediatamente no outro e que ele e o outro sejam seres igualmente atravessados pelo mesmo mundo.

O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências e daquelas do outro, pelas engrenagens de umas sobre as outras, ele é logo inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que conseguem sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas nas minhas experiências presentes, pela experiência do outro na minha (Merleau-Ponty, 1999, p. XV).

Na percepção do outro, afirma Merleau-Ponty em outra passagem, eu atravesso em intenção a distância infinita “que separa sempre minha subjetividade do outro e que me permite constatar uma outra presença no mundo” (Idem, p. 494).7
No artigo citado, o autor reinterpreta de forma ambivalente as idéias de sujeito e objeto por meio das noções de estrutura e de vivido, revelando a complexidade do debate naquele contexto histórico de organização do pensamento estruturalista francês. Em certo momento, defende, por exemplo, a idéia de experiência na antropologia como sendo a expressão de nossa inserção como sujeitos sociais em um todo que nos precede, no qual já haveria uma síntese que delimitaria nossa investigação laboriosa, “pois vivemos na unidade de uma só vida todos os sistemas de que nossa cultura é feita” (Idem, 1960, p. 132). Porém, num momento seguinte, afirma que na outra ponta do campo da antropologia, em certos sistemas complexos, as estruturas se quebram e se abrem; a sociedade deixa de aparecer como uma segunda natureza, cada um sendo convidado a definir seu próprio sistema de troca; as fronteiras da cultura se rompem, a função simbólica perde sua rigidez e se estabelece um uso profano da vida (Idem, p. 141). Como se percebe, as reflexões do autor refletem neste período a preocupação de resgatar a dimensão sistêmica da vida social, mas sem perder de vista o vivido. Daí ele falar de uma dupla experiência: antropológica e estrutural, sociológica e vivencial. Lévi-Strauss teve grande sucesso no primeiro caminho, isto é, na busca de matematizar e codificar as funções simbólicas fundamentais da experiência cultural. Mas esta opção, veremos, levou-o inevitavelmente a desvalorizar o vivido e a experiência da intersubjetividade na configuração das regras objetivas, inclusive aquelas da linguagem. A questão que podemos colocar, desde logo, é a seguinte: até que ponto Lévi-Strauss “trai” Mauss abandonando uma leitura fenomenológica da experiência para vagar pela lingüística estrutural? A resposta não é simples uma vez que Lévi-Strauss insiste em sua fidelidade a Mauss, seja quando fala das relações entre a sociologia e a psicologia, considerando a experiência individual em face da coletiva, seja quando discute a idéia do fato social total, o qual permitiria observar no comportamento dos indivíduos as influências sociológicas, históricas e fisiopsicológicas, como o faz no texto introdutório aos escritos reunidos de Mauss sob o título Sociologia e antropologia (2003). Assim, se nos dedicarmos ao estudo do concreto e do completo, diz ele, “devemos necessariamente perceber que o verdadeiro não é a prece ou o direito, mas o melanésio desta ou daquela ilha, Roma ou Atenas” (Lévi-Strauss, 2003, p. 24). Ou seja, há aqui a valorização da experiência individual, mas de uma experiência que se submete às obrigações coletivas, o que também é sugerido por Mauss no Ensaio... O autor também não trai Mauss ao concluir que para “apreender um fato social total é preciso apreendê-lo totalmente”, isto é, como uma “coisa” da qual faz parte a apreensão subjetiva (Idem, p. 26). A distância com relação a Mauss, no nosso entender, aparece quando ele esquece que
seu mestre pensou o dom não apenas como uma linguagem simbólica mas como um caminho teórico de crítica ao utilitarismo mercantil e favorável a um projeto associacionista, como veremos adiante. Esta distância ocorre quando Lévi-Strauss busca superar a dualidade entre sociedade e indivíduo, entre sujeito e objeto, entre consciente e inconsciente, recorrendo à lingüística estrutural para propor um método rigoroso de análise do empírico. Ele tenta atribuir a Mauss esta preocupação com regras precisas, com “ciclos de reciprocidade cujas leis são doravante conhecidas” (Idem, pp. 31-33), concluindo que as trocas não estão nos fatos, mas apenas na aplicação do método aos fatos. Quando decide matematizar as formas simbólicas e considerá-las realidades universais apreendidas pelo método lingüístico, como é o caso do tabu do incesto, independentemente das vicissitudes históricas e particulares, o autor necessariamente rompe com a tradição fenomenológica e hermenêutica para propor um novo método de análise combinatória que perde de vista o valor do vivido. Neste momento, o pai da antropologia estrutural, sem desconsiderar a relação orgânica entre sujeito e objeto, opta por uma compreensão que se afasta da determinação do sujeito para valorizar um sistema de interpretação, a antropologia estrutural, que explique simultaneamente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas (Idem, p. 24). Esta primeira reflexão de caráter filosófico leva-nos, por conseguinte, a outra de caráter epistemológico relativa ao contexto de produção do conhecimento e da experiência. A presença perceptiva no mundo, na perspectiva de Merleau-Ponty, serve, de fato, para esclarecer algo decisivo no desenvolvimento deste artigo, em particular o esforço de reorganização dos estudos sobre o dom no interior do novo movimento teórico. Pois contra este reducionismo lingüístico, insurgem-se aqueles que defendem uma outra leitura do dom, leitura que resgate a dimensão plural e permanentemente renovadora da experiência do vivido, da liberdade do sujeito na organização da ordem do mundo. Na perspectiva da fenomenologia, o trabalho intelectual não se produz a partir de um lugar abstrato, mas de um lugar visível, mesmo que os materiais utilizados para a criação intelectual, como memórias, vivências e crenças, sejam muitas vezes invisíveis para o autor. Esta é uma questão fecunda que suscita acima de tudo a busca de sentido fornecida pela nossa experiência cultural, psicológica, emocional, política e social, pela vivência no cruzamento da experiência do outro. Este sentido é determinado e singularizado pela expressividade do sujeito, pelo modo como se faz presente no mundo no interior de um contexto intersubjetivo particular, único caminho para se evitar “a ilusão de ver o que não se vê” (Merleau-Ponty, 1964b, p. 20), de desconhecer o impacto sobre os discursos objetivados, inclusive o científico de uma experiência comunitária, associativa, local, nacional ou transnacional que marca de modo particular a percepção do sujeito no mundo. Essas reflexões buscam situar um aspecto crucial na organização do pensamento crítico, a saber, a importância de contextualizar as condições de produção do conhecimento, dando conta simultaneamente do lugar de quem pensa, do outro pensado – que é pensante também – e daquilo que observa. A dificuldade de sair do pensamento operacional fundado na idéia de um corpo objetivado – mesmo que seja o corpo simbólico – para entrar num pensamento crítico – inspirado num corpo fenomenal e aberto à intersubjetividade – exige que o trabalho intelectual esteja sensibilizado para a importância de contextualização do pensamento, isto é, de analisar sob que condições ocorrem os trabalhos de tradução, adaptação e criação de idéias e teorias. Apenas a partir de tal sensibilização é que as experiências de criação do conhecimento, geradas em contextos sócio-históricos diversos, podem ser reorganizadas, respeitando-se as exigências, os modos de percepção e de vivências de outros contextos. Semelhante discussão é decisiva para se entender que muitas vezes a busca de originalidade teórica apenas camufla as dificuldades dos autores de contextualizar o pensamento. Vale a pena ilustrar este debate com uma situação prática exposta por Jessé de Sousa nas releituras que fez das obras de Gilberto Freyre e de Roberto DaMatta, tradicionalmente considerados como autores que oferecem análises originais da realidade brasileira (Souza, 2001a, 2001b). Demonstra Souza que apesar das tentativas de alguns de apontar Freyre e DaMatta como autores que pensam o Brasil a partir de um mesmo lugar, na prática enquanto o segundo privilegia um esquema dicotômico de dois sistemas – o europeu individualista e o patriarcal e pessoal – para explicar a realidade sociocultural brasileira, Freyre entende que ao longo da modernização brasileira os valores impessoais da re-europeização teriam vencido os valores pessoais do passado (Souza, 2001a, pp. 197-198). Essas considerações são importantes para lembrar que não basta que os processos de tradução simbólica de narrativas e esquemas explicativos sejam marcadamente originais, sendo fundamental entender como se fundam as pessoas morais, as estruturas de self que delimitam a percepção moral e cognitiva.8 O problema do trabalho intelectual não está apenas, pois, em destacar as diferenças culturais e de tentar padronizar certos registros teóricos como se eles fossem universais. Isto o estruturalismo antropológico o fez. O problema está em esquecer que a própria enunciação de tais registros já está marcada por certa presença perceptiva, por uma experiência particular de tradução simbólica de idéias e de teorias.9 Mesmo que vivenciada inconscientemente, tal tradução já delimita uma experiência intelectual particular que deve ser explicitada para que a crítica social possa revelar sua pertinência discursiva. Os próprios princípios da tradução são delimitados por duas fontes, lembra Bruno Karsenti. De um lado, há que se reconhecer a existência de princípios que são sempre formulados a partir de fatos sociais concretamente pensados; de outro, alguns fatos apresentam-se como mais interessantes para revelar aqueles princípios da tradução, que outros fatos disponíveis (Karsenti, 1994, p. 93).
Desde que a criação intelectual se inscreve num mundo intersubjetivo, é inevitável que as traduções e as classificações de idéias obedeçam a certas particularidades fenomenais. Para Gregory Bateson, o fenômeno do contexto, assim como o da significação, define a separação entre a ciência na acepção clássica e a ciência que ele se propunha a fundar, a “ecologia do espírito” ou ecologia de idéias que permitiria compreender as razões pelas quais certos sistemas de idéias sobrevivem e outros não. E ele acrescenta que a exploração do conhecimento implica “a identificação de uma rede mais vasta e dispersa de índices ou pontos de referências, a partir dos quais se define um território científico novo” (Bateson, 1977, pp. 14-15). Entendemos que tal rede, no âmbito de nossa discussão, tem pelo menos quatro pontos de intersecção: o discurso no seu contexto original; o lugar do autor-tradutor e de sua modalidade expressiva própria; as idéias enraizadas, em moda e dominantes no campo intelectual do autor-tradutor; e o senso comum do contexto em observação. O que se diz, ou não, a respeito de um autor ou de uma teoria, é resultado de uma presença perceptiva do intelectual-tradutor no seu mundo de idéias e no seu contexto sócio-histórico. Neste trabalho de contextualização das idéias há, inevitavelmente, um movimento de naturalização de certas narrativas, o que implica marginalização de outras idéias. O lugar de onde se pensa e se fala – lugar intelectual, científico, moral – delimita o campo de percepção do autor-tradutor, abrindo portas para o conhecimento e fechando outras. Tudo isso gera omissões aparentemente inexplicáveis. Ao mesmo tempo se naturalizam certas crenças intelectuais que, ao ganharem aura de verdade científica, inibem a apresentação e a discussão de outras narrativas sobre o tema.

Contextualizando os estudos sobre o dom

O momento político




David Le Breton comenta que as sociologias nascem em zona de turbulência, de falta de referência, de crise de instituições, “lá onde são eliminadas as antigas legitimidades” e onde há necessidade de “se dar significação à desordem aparente, de encontrar as lógicas sociais e culturais” (Lê Breton, 2006, p. 11). Este comentário me parece apropriado para situar o contexto histórico que delimita o trabalho de sistematização, por Mauss, dos estudos sobre o dom, na década de vinte do século passado. Este era um contexto de turbulências sociais, políticas, mas também teóricas. Pois foi entre as duas grandes guerras que o mundo passou a conhecer a emancipação dos dois principais paradigmas do século XX, o individualista mercadológico e o holista-burocrático: o primeiro, assentado sobre o mercado, o segundo, sobre o Estado.
A redação do Ensaio sobre a dádiva, em 1924, não foi mero exercício intelectual, mas responde às inquietações dele sobre os rumos hesitantes do movimento bolchevique na Rússia, na tentativa de criar as condições para a emergência do socialismo real. Simpatizante inicialmente da revolução russa (Graeber, 2006), Mauss cedo compreendeu que as tentativas dos bolcheviques de eliminar a economia de mercado, interpretada como um empecilho para o projeto revolucionário, estava condenada ao fracasso. Caillé e Graeber (2002) destacam a preocupação que teria tomado conta deste intelectual socialista francês quando constatou que os revolucionários russos teriam cometido um equívoco ao tentar implantar o socialismo pela eliminação do mercado. As reflexões de Mauss nos anos de 1920 implicam, pois, certa reorientação dos estudos da escola sociológica francesa num contexto marcado por fortes turbulências políticas (Primeira Guerra Mundial e revolução bolchevique) e pelos ares inovadores da modernização urbana e dos valores libertários expressos nas lutas pelos direitos de cidadania, no plano micro, e de reorganização da sociedade mundial, no plano macro. O drama vivido pela esquerda socialista em face dos impasses da revolução russa, em particular pela incapacidade deste movimento de eliminar a economia de mercado, desafiava os espíritos da época, levando Mauss a redefinir sua compreensão da sociedade, lembra D. Graeber (2006). Tal drama apontava para a necessidade de o pensamento crítico rever o lugar do mercado na modernidade, deixando de lado o viés maniqueísta das esquerdas (associação do mercado com o mal), para reinterpretá-lo como um mecanismo essencial às trocas nas sociedades complexas. Além do contexto histórico que delimita as preocupações de Mauss, não podemos deixar de lembrar a influência de seu tio, Émile Durkheim, um crítico severo do utilitarismo econômico, conforme observamos nas críticas formuladas por ele no segundo prefácio da Divisão do trabalho social, quando propõe a necessidade de regulamentar a atividade econômica, pois esta, deixada a si mesma, traria grandes danos para a sociedade. Referindo-se ao propósito de seu livro, Durkheim lembra ter insistido várias vezes sobre o “estado de anomia jurídica e moral em que se encontra atualmente a vida econômica” e que o mundo econômico nos dá o triste espetáculo de desordens de todos os tipos, o que exige regulamentação e uma força moral que se faça respeitar. Até porque é falso o antagonismo “que se quis estabelecer com excessiva freqüência entre a autoridade da regra e a liberdade do indivíduo” (Durkheim, 2004a, pp. VI, VII , VIII ). Embora o antiutilitarismo de Mauss tenha se voltado progressivamente para uma reflexão sobre os sentidos das práticas e das motivações da ação social, não se pode negar que a posição teórica e política do seu tio - contra a ação de desregulamentação do mercado sobre a ordem social –, tenha tido influência importante sobre sua trajetória. A crítica ao individualismo mercantilista, já presente em Durkheim, de um lado, e a tentativa de encontrar saídas para o pensamento de esquerda e para o movimento associacionista, neste contexto de revisão do debate da escola francesa e de incerteza da geopolítica européia, de outro lado, são ingredientes que levaram Mauss a rever progressivamente as teses socialistas, visto que estas demonstravam insuficiência para a crítica do utilitarismo econômico dominante.



Emile Durkheim




O momento intelectual

A sistematização da teoria do dom estabelece uma continuidade inegável com relação à produção sociológica de Durkheim e à parceria deste com Mauss. Do ponto de vista conceitual, a teoria do dom situa-se, no nosso entender, no desdobramento final das três tópicas de Durkheim: a primeira tem a ver com a compreensão do fato social numa perspectiva funcional e histórica, que encontramos na Divisão do trabalho social; a segunda, que remete às representações coletivas dos fatos sociais, está presente em Formas elementares da vida religiosa, que redefine o fato social a partir das crenças e representações coletivas. A terceira, apenas esboçada, mas de grande relevância, diz respeito ao seu interesse de articular a discussão mais geral das representações coletivas com a preocupação do pragmatismo de associar as idéias às coisas e à experiência, de ligar o pensamento à vida, o que implica numa crítica importante ao racionalismo que foi captada acertadamente por Durkheim. A primeira e a segunda tópicas são bastante conhecidas. Por isso, vamos nos dedicar a avançar algumas considerações sobre a terceira. Esta sugere uma nova releitura do fato social, a partir do esforço de Durkheim de articular as representações coletivas com as experiências dos indivíduos em interação na vida cotidiana, esforço que o leva a oferecer um curso sobre Sociologia e Pragmatismo, entre dezembro de 1913 e maio de 1914 (Durkheim, 2004b). O caráter antiutilitarista do sistema do dom tem como importante referência a renovação da crítica intelectual durkheimiana presente neste curso. O resgate dos registros desta terceira tópica, que Mauss definiu como a coroação da filosofia de Durkheim, foi possível devido ao esforço do próprio Mauss de recuperar as anotações de aulas feitas pelos ex-alunos que sobreviveram à guerra. Tais anotações são a base do livro Pragmatisme et sociologie (2004b), que reúne anotações de sala de aula de alunos do autor, reunidas por Durkheim no pós-guerra. Neste curso, ele trata da relação entre a escola pragmatista norte-americana – representada por figuras como Peirce, James, Dewey e Mead – e a sociologia, buscando articular teoricamente suas reflexões sobre as representações coletivas, com as teses, aparentemente opostas, do pragmatismo social norte-americano, que tentava associar a produção intelectual sobre a verdade aos determinantes psicosociais e não utilitários das práticas interativas. Para o fundador da sociologia francesa, haveria no pragmatismo, em particular nas teorias mais sociológicas de C. Peirce e G. Mead, um sentido de vida e de ação individual que seria muito importante para os estudos da sociedade. De fato, há nesses autores uma preocupação evidente de pesquisar os fundamentos da vontade coletiva sem cair no excesso de formalização dos sistemas sociais, nem nos casuísmos racionalistas das teorias individualistas do contrato social. Se considerarmos, por exemplo, John Dewey, encontramos nele, lembra Honneth, uma teoria da cooperação reflexiva que é fundamental para se pensar a democracia e a associação nos dias atuais, e entender a democracia como uma forma reflexiva de cooperação comunitária que supera os limites das disputas entre republicanismo e procedimentalismo (Honneth, 2002, p. 267). Esta é uma pista importante para se explorar a relação entre dom, associação e democracia. Esta terceira fase da obra de Durkheim foi interrompida devido a alguns fatos: a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a morte de seu filho André, na guerra, e o falecimento do próprio Durkheim, em 1917, por não ter suportado a perda do filho. Mas esta fase constitui, no nosso entender, uma fonte de inspiração decisiva para Mauss conceber a tese do “fato social total”, que se funda, ao mesmo tempo, nas crenças coletivas e nas experiências concretas dos atores sociais, e que permite completar o desenho da filosofia moral libertária, inicialmente proposta por Durkheim.

O dom: do estruturalismo para o pós-estruturalismo

Essas observações são cruciais para a virada epistemológica que enfatiza uma leitura não-estruturalista do dom, mas que não recusa de algum modo a importância do estruturalismo. Não se trata de menosprezar o conhecimento científico para valorizar no seu lugar o saber comum e cotidiano, como o propõem alguns pós-estruturalistas. Trata-se de preservar a possibilidade do método científico sem desconsiderar a importância do individualismo contemporâneo em refazer as narrativas e o próprio método. Nessa perspectiva é de se perguntar: até que ponto o dom se constitui num sistema universal válido em todas as circunstâncias ou conhece ele igualmente as vicissitudes da relatividade da tradução que põe em suspeita a objetividade do método lingüístico? Analisando-se o privilégio adquirido pela antropologia estrutural neste trabalho de difusão do dom no Brasil – e, igualmente, o esquecimento de outras leituras possíveis desta contribuição de Mauss –, somos levados a concordar que as dificuldades da tradução também se fazem presentes neste caso. Por isso somos favoráveis a que se respeite a pluralidade de leituras do pensamento crítico para que se possa comparar e analisar as diferenças e as proximidades de interpretações até que se chegue a alguns consensos. Ou seja, a divulgação dos estudos sobre a dádiva não pode ser limitada a um modo único e verdadeiro que teria como autor-tradutor privilegiado, ao menos no Brasil, Claude Lévi-Strauss, e como disciplina central a antropologia estrutural.



Levi-Strauss





Nesse texto queremos demonstrar, ao contrário, que são diversas as modalidades de leitura da obra deste autor e, em especial, do Ensaio sobre a dádiva, de 1924 (Mauss, 2003), que Georges Gurvitch, na apresentação que fez da primeira edição de Sociologie et anthropologie, define como uma das obras-primas da sociologia francesa. No caso da diversificada obra de Mauss – autor com formação em filosofia, filologia, história, etnologia, sociologia e antropologia –, é possível relacionar diversas possibilidades de releituras desse ensaio. Guardando esta perspectiva, Marcel Fournier, importante biógrafo de Mauss, organizou recentemente, na revista Sociologie et Sociétés, uma coletânea intitulada “Présences de Marcel Mauss” (Fournier e Marcel, 2004), na qual relaciona autores que receberam influências diversificadas de Mauss, como Pierre Bourdieu, Jean-Pierre Vernant e Maurice Agulhon. Para os que propõem que a teoria do dom possui implicações teóricas, morais e políticas mais amplas que aquelas da antropologia estrutural – tese que defendemos neste texto –, há outros interlocutores importantes a assinalar, como Mary Douglas, no pensamento antropológico anglo-saxão, Claude Lefort e Alain Caillé, na filosofia política francesa, Maurice Godelier, na antropologia comparada, ou Jacques Godbout, na sociologia. Nessa perspectiva, entende-se que a força do estruturalismo antropológico na mediação do trabalho de tradução dos estudos sobre o dom no Brasil tenha contribuído de algum modo para deixar “invisível” uma importante leitura não-estruturalista que na França subsistiu de modo mais tímido durante a fase hegemônica do estruturalismo e que foi retomada com intensidade a partir da década de 1980 quando a hegemonia do estruturalismo passou a ser questionada. Tal releitura denominada por alguns de pós-estruturalista significou a abertura dos estudos sobre o dom a partir de novos contextos, em particular aquele do individualismo contemporâneo que leva necessariamente a se pensar “os dispositivos democráticos de outros mundos possíveis” (Corcuff, 2006, p. 86). Tal individualismo, diferente daquele narcisista que reforça o egoísmo e a separação, permite redefinir a obrigação do dom – que tem um peso importante na leitura tradicional do tema e, em particular, naquele do estruturalismo – a partir da liberdade do indivíduo de aceitar, ou não, os atos de doar, de receber e de retribuir. Há mais de duas décadas, vêm crescendo progressivamente as pesquisas, as teses, os cursos e os encontros que se apóiam numa outra compreensão do dom, que ultrapassa a leitura antropológica restrita oferecida pelo estruturalismo para incorporar percepções diferenciadas advindas de uma perspectiva pós-estruturalista e interdisciplinar. Esta releitura foi fornecida pelo cruzamento de disciplinas como a sociologia, a política e a filosofia, e a própria antropologia, que se libertou progressivamente do esquema teórico rígido do estruturalismo, o qual desvalorizava tanto a liberdade do indivíduo e dos grupos sociais como a importância do senso comum na invenção de modalidades diversificadas e plurais de organização do pacto cultural e social. O debate que se segue ao estruturalismo tem contribuído para retomar o espírito humanista e libertário da escola francesa de sociologia, em particular os estudos sobre o dom10 com perspectivas importantes para a renovação das ciências sociais. A importância que estamos dando às condições de tradução de contextualização sócio-histórica dos estudos sobre o tema, no Brasil, tem uma significação particular no que diz respeito ao lugar desta teoria na formulação de um novo movimento teórico. Os estudos sobre o dom na perspectiva pósestruturalista permitem avançar no campo das ciências sociais a crítica teórica de Merleau-Ponty ao dualismo cartesiano e resgatar o valor da intersubjetividade pela demonstração de que existe uma estreita ligação entre dádiva e simbolismo. Na origem, lembra Caillé, o símbolo é o próprio signo da aliança, e esta apenas é contraída pela dádiva. Não podemos apreender a dádiva abstratamente, “mas apenas a partir do que se passa entre os atores, a partir do que os une ao separá-los, campo de intermediação que o fenômeno do simbolismo institui e no qual consiste” (Caillé, 1998, p. 31). Na concepção do símbolo e do simbolismo não existe “nem indivíduo nem sociedade, mas somente um sistema de signos que mediatiza as relações que cada um mantém com cada um, construindo num mesmo movimento a socialização dos indivíduos e sua unificação em um grupo” (Karsenti, 1994, p. 87).11 Ora, se o símbolo e o dom são fenômenos que se complementam – quando não se completam no processo concreto de formulação de alianças geradoras do social –, então devemos reconhecer que o debate pós-estruturalista do dom tem importância estratégica para um pensamento crítico e plural e, como defenderemos neste artigo, para se pensar a emancipação de uma ciência moral e humanista.

O dom, o pós-estruturalismo e o individualismo contemporâneo

De certo modo, Mauss antecipou esta abertura dos estudos não-estruturalistas sobre o dom na sua fase de maturidade, em um texto intitulado “Fato social e formação do caráter”, que preparou para apresentação no Seminário Internacional de Ciências Etnológicas e Antropológicas, ocorrido na cidade de Copenhague, em 1938. Neste pequeno texto, há comentários reveladores a respeito do individualismo moderno que ele, então, passava a considerar fundamental para se pensar a modernidade. Diz ele que “é em oposição à vida coletiva que o indivíduo – o ser – de pura consciência e liberdade, se criou na vida”. Para ele, em outra passagem, o indivíduo tornou-se, nas sociedades modernas, sujeito e objeto, agente responsável da vida social: “Agora, o indivíduo é a fonte da mudança social. Ele sempre o foi, mas não sabia” (Mauss, 2004, p. 140).12 Esta intuição de Mauss é confirmada por M. Godelier, para quem nas sociedades modernas três coisas se modificaram fundamentalmente: a relação dos indivíduos com a sexualidade, o lugar dos homens e das mulheres na sociedade (e, portanto, a relação entre sexos) e o lugar das crianças (Godelier, 2004, p. 565). Esta emergência do individualismo reflexivo moderno não ficou indiferente a Mauss, como vimos ao lembrar suas notas para o congresso de Copenhague. Existem, então, outros autores de formações diversas na antropologia e na etnologia, mas, igualmente, na sociologia, na economia, na história e na filosofia que, sem negar a importância de Mauss para a fundação da antropologia estrutural, recusam-se a aceitar o reducionismo disciplinar que nega o valor da liberdade individual, em contraste com a própria posição de Mauss. Eles sustentam, em conjunto, que Marcel Mauss tem uma contribuição bem mais geral para a teoria crítica contemporânea, a qual não tem sido devidamente ressaltada. Esta contribuição, acrescentamos, tem uma relevância não apenas acadêmica, mas, sobretudo, política, pelo que significa como referência para uma crítica sistemática e poderosa do utilitarismo econômico, a partir dos horizontes abertos pelo pós-estruturalismo. Aqui, há, de fato, uma distância importante entre as expectativas nutridas por antropólogos e sociólogos com relação aos usos do dom. Se para os antropólogos na linha do estruturalismo a presença de sistemas fixos de trocas é decisiva para explicar as sociedades tradicionais, para os sociólogos, simpatizantes de uma abordagem pós-estruturalista, interessa na teoria do dom outra coisa, a saber: como a liberdade do indivíduo moderno subverte os sistemas de obrigação estabelecidos, para criar novos sistemas de reciprocidades ambivalentes e abertos. Por exemplo, o dom entre anônimos, como a doação de sangue, é um fenômeno típico dos tempos modernos, assim como o trabalho voluntário junto a desconhecidos (o que não acontece em sistemas de troca tradicionais, nos quais a proximidade sanguínea e étnica são fatores determinantes do dom), ou as trocas horizontais, chamadas de dádiva-partilha, entre homens e mulheres.
Para a sociologia e para a filosofia política contemporâneas, a atualidade crítica do dom se faz, portanto, a partir da relevância da reciprocidade aberta para se compreender a dinâmica e a complexidade das trocas nas sociedades dos indivíduos, trocas que são sempre determinadas por ambivalências constituídas entre os motivos da liberdade e da obrigação, do interesse e do “desinteressamento” (Caillé, 1998, 2002b, 2006). Em suma, há no próprio Ensaio..., e em outros textos do Mauss, uma leitura teórica alternativa menos voltada à explicação das sociedades tradicionais do que correlacionada com a modernidade. Afinal, como afirma Mauss no final de seu texto preparado para o Congresso de Copenhague, não se trata de cair num viés romântico de fazer o culto dos heróis, “mas de despertar nos homens o sentido do que eles são para a sociedade o sentido de mudanças sociais na sociedade que eles devem conservar cuidadosamente e (querer) decididamente” (Mauss, 2004, p. 140). Enfim, esta outra leitura – pós-estruturalista ou não estruturalista, dependendo do ângulo de observação – apenas foi realçada, nos inícios dos anos de 1980, no contexto de enfraquecimento das teses estruturalistas e do surgimento de “novas sociologias”, que resgatam a crítica antiutilitarista contida no dom e sua relevância para a consolidação da crítica moral humanista, presente no espírito socialista e associacionista de Durkheim e Mauss. Temos, então, duas explicações válidas da teoria do dom. Uma diz respeito, como já foi assinalado, à fama adquirida pela antropologia estrutural e pela associação do dom com o método lingüístico estrutural que permitiria apreender os sistemas separados da realidade, determinando as regras existentes entre tais sistemas. A outra tem a ver com o modo como Mauss busca, intencionalmente, com base nos estudos das sociedades arcaicas, desenvolver as linhas gerais de uma reflexão própria às sociedades modernas, que tem dois pontos de destaque: uma crítica da filosofia utilitarista e da teoria econômica dominantes nas sociedades contemporâneas, esboçada na conclusão de seu ensaio sobre o dom; e a valorização da liberdade de interação dos indivíduos na organização da vida social. Esta crítica é realizada indiretamente, a partir de uma etnografia que se inspira nos sistemas de trocas nas sociedades arcaicas para deduzir que sua universalidade atravessaria as sociedades modernas. Mauss sugere que o fenômeno do dom continua sendo fundamental para explicar a aliança na atualidade, revelando, claramente, sua intenção de demonstrar esta tese quando afirma que “é possível estender essas observações à nossas sociedades” (Mauss, 2003, p. 294). Este segundo aspecto leva certos autores a posicionar Mauss ao lado de Simmel, como fundadores do interacionismo crítico que defende a hipótese de que a sociedade se funda a partir das relações humanas (Papilloud, 2004; Caillé, 2002b).

Resgatando o estruturalismo pelo social

Podemos nos perguntar se o destaque dado a Lévi-Strauss como autor-tradutor privilegiado das idéias de Mauss – em larga medida, justificado pela sua relevância para a antropologia contemporânea – é, de fato, o problema central das divergências acadêmicas em torno do tema. Nossa opinião é que esta disputa é periférica e que tanto os antropólogos lévi-straussianos como seus críticos têm razão. Lévi-Strauss utilizou com muita competência a revelação de Mauss sobre as trocas simbólicas e generalizadas para propor teses interessantes, entre elas destaca-se a definição da família como fa-to social. Pois, ao resgatar o conceito maussiano de aliança para explicar a constituição do parentesco a partir do pacto social, ele rompe com a visão biológica de família, permitindo nova compreensão do fenômeno social. Na perspectiva de Lévi-Strauss, as relações de parentesco não derivam de grupos familiares isolados, mas se constituem por códigos, configurando um sistema de comunicação cultural e social, melhor dizendo lingüístico, como se observa na leitura de sua descrição minuciosa do parentesco (Lévi-Strauss, 1982). Isto não elimina, porém, uma questão central: os limites claros do campo de investigação científica do pai do estruturalismo para a explicação da sociedade moderna, como já foi lembrado. Pois Lévi-Strauss desenvolveu sua teoria das trocas a partir não do fenômeno urbano – como propõe Mauss na conclusão do Ensaio... – mas da organização das sociedades tradicionais, entre elas as tribos nambiquaras, de Mato Grosso (que ele visitou algumas vezes quando esteve no Brasil como professor da Universidade de São Paulo). Ou seja, as conclusões da antropologia estrutural – como, por exemplo, a do tabu do incesto –, não foram pensadas em contextos urbanos, mas a partir de grupos sociais organizados de forma tradicional, com influência decisiva do fato religioso. Em larga medida, as observações de Lévi-Strauss sobre esses grupos sociais tradicionais confirmam as observações de Mauss a respeito de haver uma obrigatoriedade fundadora de trocas e contratos feitos sob a forma de presentes, em sociedades como aquelas da Escandinávia, nas quais, apesar de aparentemente voluntárias, as trocas eram obrigatórias. No desenvolvimento deste raciocínio, já na introdução do Ensaio..., Mauss propõe que, de todos os temas complexos e dessa multiplicidade de coisas em movimento, ele gostaria de analisar apenas um dos traços que considerava profundo, mas isolado: “o caráter voluntário por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e, no entanto, obrigatório e interessado dessas prestações” (Mauss, 2003, pp. 187-188). Nessa perspectiva, é correta a ênfase que Lévi-Strauss dá ao valor da obrigação – sintetizado na sua tese sobre o tabu do incesto – que ele elaborou a partir da investigação do casamento prescrito entre primos cruzados (um primo se proíbe de casar com a irmã do primo na expectativa de que este renuncie igualmente a casar e possuir sua irmã). Mas, é apenas válida no que diz respeito a este tipo de sociedade, em que a moral coletiva e religiosa se impõe claramente sobre as condutas dos membros do grupo, não servindo para generalizações. Pois esta teoria da aliança, baseada no casamento prescrito, não pode ser estendida à sociedade moderna individualista, em que a constituição da parentela passa a ser largamente influenciada pela ação individual. Na verdade, a dádiva contém em si não apenas os fundamentos teóricos para os estudos sobre o simbolismo na contemporaneidade (assunto que voltaremos a tratar adiante), e que marcou os estudos antropológicos no século XX, mas, igualmente, uma crítica perspicaz do utilitarismo econômico e mercadológico a partir de um conceito de “fato social total”, cuja ambição deixa revelar os traços de uma ciência moral transdisciplinar.13 No Ensaio sobre a dádiva, a contribuição de Mauss para o debate antiutilitarista aparece no modo como ele demonstra estarem as idéias de mercado, de aliança, de trabalho, de contrato e de solidariedade irremediavelmente ligadas a certas fundamentações de caráter moral. A fundação do M.A.U.S.S. – Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais –, na França, em 1981, expressa adequadamente tal reação teórica, voltada para o resgate do legado teórico da escola francesa de sociologia e de seu valor para sistematizar uma crítica mais articulada do economicismo.14 A releitura da obra de Mauss por este movimento tem permitido retomar e ampliar o valor de sua crítica teórica e demonstrar sua importância para reorganizar os campos disciplinares nas ciências sociais contemporâneas. Este novo trabalho de tradução ocorreu num momento muito especial, o da crise do paradigma estruturalista nas ciências sociais a partir da “virada lingüística” dos fins dos anos de 1970 (Dosse, 1997) e, também, o de expansão de um intercâmbio intelectual muito rico entre a escola francesa e a escola anglo-saxônica. Este intercâmbio revela-se com particular interesse no interior do M.A.U.S.S., pois havia uma tentativa de articular a dádiva com a tradição pragmática norte-americana e com as escolas interacionistas (Caillé, 2002b; Chanial, 2001), retomando, de certa forma, o trajeto interrompido pelo pai da sociologia francesa. Nas páginas seguintes, voltaremos à teoria maussiana à luz desta interpretação pós-estruturalista e contextualizada, de modo a avaliarmos sua abrangência conceitual e sua contribuição para a renovação do campo intelectual.

Elementos da teoria do dom

A noção de simbolismo





O ciclo do dom confunde-se com o ciclo da vida ao realçar a relação orgânica entre qualidade do vínculo e da aliança e finalidade da vida humana. Trata-se de uma questão de interesse moral e que tem implicações políticas na medida em que, como nos lembra J. Baechler, “um fim é a solução de um problema de sobrevivência posto à espécie pela sua natureza, uma solução que põe de imediato um novo problema: o que fazer para que a solução se torne real?” (Baechler, 2002, p. 63). O ciclo do dom permite compreender que a qualidade da relação entre o ser humano e a natureza em geral depende de uma questão moral: a capacidade de correr o risco de se relacionar com outros, com vistas à produção do mundo pelo trabalho, pela política, pela honra ou dignidade, mas, sobretudo, pelo interesse coletivo de se fazer alianças com vistas a tornar perene o movimento fluido das instituições sociais e culturais.15 Tal risco é devidamente assinalado por Mauss nas conclusões do Ensaio sobre a dádiva, ao propor que, de uma ponta à outra da evolução humana, não há duas sabedorias: “Que adotemos então como princípio de nossa vida o que sempre foi um princípio e sempre o será: sair de si, dar, de maneira livre e obrigatória; não há risco de nos enganarmos” (Mauss, 2003, p. 301). A maturação do ciclo do dom, esclarece, favorece o entendimento, a amizade, a aliança e a honra, do mesmo modo que, no lado contrário, sua interrupção é motivo para a inimizade, a desonra e a guerra. Como teoria relacional, o dom permite enfoques originais e múltiplas interpretações da realidade, inclusive a de repensar a produção econômica e o trabalho social não apenas a partir da exploração e do conflito, mas incorporando indicadores de bem-estar e de “vida boa”. Ao ampliar a compreensão da sociedade pela introdução do simbolismo,16 Mauss superou a dicotomia que tinha aprisionado Durkheim entre o sagrado e o profano (Caillé, 1998) e fez avançar a compreensão da sociedade superando outra dicotomia clássica da sociologia, aquela entre agência e estrutura. Mediante a concepção do simbolismo, diz Karsenti, percebe-se “que a oposição entre individual e coletivo perde literalmente toda pertinência. Ou melhor, temos que aceitar que esta distinção corresponde apenas a variações diferenciadas de um simbolismo único, característico de uma sociedade determinada” (Karsenti, 1994, p. 91). Enfim, neste trabalho de desconstrução de um mito de “economia natural” que teria existido, desde sempre, a partir da presença de um homo oeconomicus agindo motivado por seus interesses individuais e egoístas, vários autores concordam (Karsenti, 1994; Godbout, 1998a; Caillé, 2000b; Martins, 2005) que o mais importante na crítica de Mauss ao utilitarismo foi demonstrar que os bens que circulam na sociedade não são apenas materiais, mas, sobretudo, simbólicos. Diz Godbout que no ato de doação de algo a alguém, não é apenas a coisa que é dada, mas, também, a intenção (Godbout, 2000) ou o “hau”, o “espírito da coisa” (Mauss, 1999, p. 161). Assim, na organização da prática social, há sempre dois bens em circulação: um material, a coisa dada, um simbólico, a intenção oferecida. Merleau-Ponty entendeu claramente a importância de Mauss para as ciências sociais ao afirmar que sem negar os princípios da escola francesa ou os de Durkheim, ele conseguiu superar o erro de situar o observador fora do objeto observado, erro que impediria a “penetração paciente do objeto, a comunicação com ele” (Merleau-Ponty, 1960, p. 126). Mas esta penetração no fenômeno apenas pode ocorrer, explica o autor, se entendermos que o fato social não é uma realidade bruta, mas “um sistema eficaz de símbolos ou uma rede de valores simbólicos que se insere no mais profundo dos indivíduos”, levando-nos a compreender que não temos que escolher entre indivíduo e sociedade, pois são tudo totalidades ou conjuntos articulados (Idem, p. 125).
Por conseguinte, enfatiza Merleau-Ponty, Mauss, ao conceber o social como um simbolismo, permitiu-se os meios de respeitar a realidade do indivíduo, aquela do social e a variedade de culturas, sem tornar umas e outras impermeáveis entre si. “Uma razão ampliada deve ser capaz de penetrar até o irracional da magia e do dom” (Idem, p. 126). O fato social total A simpatia de Mauss para com o movimento associacionista do início do século XX, na França, levou-o a refletir em profundidade sobre os motivos variados da associação humana. Segundo ele, tais motivos não podem ser restringidos a certos determinantes particulares – econômicos, políticos e/ou culturais –, visto que tudo tem relevância para a constituição do vínculo social, sendo a sociedade um “fato social total”. A crítica ao utilitarismo mercantil, de um lado, o resgate da dimensão moral da vida social, de outro, levaram Mauss a rever e ampliar a noção de fato social de Durkheim. Para ele, a sociedade seria um “fato social total” e no interior do conjunto de prestações e contraprestações que definem a vida social em geral, a atividade econômica e mercantil seria apenas um aspecto particular deste conjunto, limitando-se pelo caráter dos rituais e das obrigações coletivas. A esse respeito, esclarece Karsenti que o dom permite revelar os comportamentos de homens concretos e não um conjunto de regras jurídicas ou morais definidas abstratamente. Nesse sentido, complementa ele, o fato social total, longe de indicar uma generalidade desencarnada, “emana da descrição de uma realidade constituída de experiências comuns que manifestam a vida do grupo como grupo: “O completo, mediante um singular desvio, se identifica ao concreto, concebido sob a forma da expressão viva de um grupo social considerado na sua globalidade” (Karsenti, 1994, p. 45). Neste esforço de entender as razões não econômicas das trocas sociais, Mauss foi levado a rever a premissa durkheimiana do fato social, reapresentando-o como “fato social total”. Esta revisão teórica aponta, portanto, para um acontecimento inédito das ciências sociais, que foi produzido entre Durkheim e Mauss, a saber, a invenção do simbolismo. Os estudos sobre as significações subjetivas das trocas, que o levam a valorizar a idéia de totalidade, foram sistematizados a partir das revisões feitas por Mauss das análises durkheimianas do sagrado, da religião e das representações coletivas, como o demonstra Camile Tarot (1999). A compreensão da sociedade como fato social total permitiu a Mauss superar as dualidades conceituais presentes no pensamento de seu tio, Émile, articulando de modo dialógico categorias aparentemente opostas, como o macro e o micro, o subjetivo e o objetivo, o individual e o grupal, o sagrado e o profano, o cultural e o social, a práxis e a teoria, o unidisciplinar e o multidisciplinar.17 A sistematização dos estudos sobre a dádiva levou Mauss, de certo modo, a uma ruptura parcial com o esquema teórico de Durkheim. Enquanto este via a obrigação como a condição central e incondicional da moral social, Mauss entendia que o sistema moral conhecia certa flexibilização, resultante da pluralidade de determinações. Assim, embora considere o dom uma obrigação em última instância, ele reconhece que, na prática, há uma ambivalência constitutiva do dom entre a obrigação e a liberdade, entre o material e o simbólico e que se insinuam no movimento de produção do fato social que é total. A atualidade da contribuição de Mauss para as ciências sociais pode ser, assim, sintetizada em dois pontos fundamentais: a definição da sociedade como um fato social total, permitindo articular adequadamente aquelas dicotomias tradicionais da sociologia já referidas, e a introdução do simbolismo como fundamento último das trocas entre pessoas morais. Trata-se de uma contribuição de importância paralela àquela do sujeito do inconsciente de S. Freud, com a diferença de que, em Mauss, a noção de pessoa moral não se limita às injunções de crenças coletivas, como em Durkheim, nem ao cognitivismo individualista, da psicologia experimental. A pessoa moral, em Mauss, supera ambas as posições pela ênfase sobre o valor da relação na constituição da sociedade. A proposição do dom como base de uma ciência moral e humanista18 explica-se pelo seu reconhecimento como fenômeno de caráter relacional e paradoxal que articula diferentes planos do conhecimento, como aqueles formados pelos pares do objetivo e do subjetivo, do micro e do macro, do profano e do sagrado, do individual e do social. Trata-se de um sistema de conhecimento, ao um só tempo, simples e complexo. Simples, na medida em que busca explicar a realidade, inicialmente, não a partir de estruturas regulamentadas, mas, diversamente, a partir de um sistema informal, aquele das trocas diretas entre indivíduos e grupos no plano da vida cotidiana. Complexo, porque ambiciona ultrapassar o campo restrito do plano microssociológico para demonstrar que as regras paradoxais que delimitam as trocas da vida cotidiana se reproduzem igualmente na esfera macrossociológica dos sistemas formais, de forma sub-reptícia certamente, mas decisiva para selar por meio da confiança a validade dos contratos jurídicos e administrativos. Ele teve sucesso na empreitada teórica do “fato social total” – que é uma categoria abrangente do ponto de vista teórico e disciplinar –, quando entendeu que a aliança nasce de uma expressividade coletiva e compartilhada – gestos, rituais, trocas, mortes etc. – que envolve todos os membros do grupo, acionando, para isso, os recursos afetivos, cognitivos, materiais e espirituais existentes na comunidade. Do mesmo modo, percebeu que a construção da aliança entre pessoas morais exige que o conjunto de recursos visíveis e invisíveis (materiais e simbólicos) disponíveis na tradição e na memória circule permanentemente, envolvendo todos os participantes em ações recíprocas de doações, recebimentos e retribuições. A recusa de participar de tais atividades – festas, rituais, serviços gratuitos, trabalhos conjuntos etc. – em geral é percebida pela comunidade como um sinal negativo, como se fosse uma manifestação de descaso ou mesmo de inimizade. Enfim, a idéia de “fato social total” pressupõe a presença de sistemas de reciprocidades das atividades humanas, sustentados por um simbolismo generalizado em todos os planos da vida, começando com mais intensidade afetiva e menos regulação cognitiva no plano do cotidiano (do indivíduo, da família, dos amigos etc.) e se estendendo com menos intensidade afetiva e mais regulação cognitiva para as estruturas formais (da economia, da política, da religião, da ciência etc.). Isto é, tudo o que se troca – tudo o que se dá, que se recebe ou que se retribui – é carregado de sentidos duplos: as palavras são pronunciadas com gestos expressivos, os presentes são dados com boas ou más intenções, as ordens são proferidas com sentimentos de orgulho ou de baixo-estima, as mercadorias são vendidas com imagens de sedução ou de repulsão. Pela associação do dom com o simbolismo generalizado, Mauss conseguiu demonstrar que as coisas materiais ofertadas, as hospitalidades dadas e os serviços prestados são plenos de significações que, num lado, favorecem a aliança e o vínculo e, no lado contrário, a inimizade. Compreendido como “fato social total”, o sistema do dom deixa de constituir uma teoria do domínio particular de determinada disciplina – seja ela a antropologia, a etnologia, a história, a sociologia, a política, a lingüística ou outra qualquer –, para aparecer como o fundamento de uma ciência moral antiutilitarista poderosa, que oferece os recursos conceituais necessários à crítica do pensamento mercantilista hegemônico e à revalorização do indivíduo dentro dos sistemas de obrigações coletivas. A força crítica do dom está no seu caráter paradoxal, permitindo compreender a sociedade como um conjunto de fatores diversos que se entrecruzam, mas que não se submetem funcionalmente a uma determinação qualquer, seja ela a religião – nas sociedades tradicionais –, ou a economia de mercado – nas sociedades modernas. O reconhecimento do paradoxo do dom explica-se, por outro lado, pela sua possibilidade de demonstrar, a partir do simbolismo, que a realidade social e cultural é fabricada por significações compartilhadas por indivíduos e grupos sociais, que sustentam a invenção do mundo em vários planos: no micro e no macro, no individual e no social, no sagrado e no profano, assim como, podemos acrescentar, no masculino e no feminino, no similar e no diverso. Do mesmo modo, ao permitir compreender que essas trocas entre indivíduos, grupos e nações são, em geral, incertas, indeterminadas e assimétricas, o sistema do dom contribui para que se entenda que a regra de equivalência típica da economia de mercado – um bem dado implica em um bem pago – não é uma regra geral, como propõem os doutrinadores liberais e utilitaristas, mas a exceção. Analisando a sociedade a partir do “fato social total”, percebe-se, diferentemente, que grande parte das trocas segue uma regra assimétrica que se estende no tempo, gerando um endividamento simbólico coletivo dos membros da coletividade e expresso em regras, rituais, proibições e permissões. Certamente o reconhecimento da existência de trocas assimétricas não significa que estamos na ordem da democracia. Ao contrário, inúmeras sociedades tradicionais e mesmo modernas instituem sistemas de dominação a partir de assimetrias, como vemos no Brasil, por exemplo, a partir da instituição do clientelismo. Mas, o simples reconhecimento da pluralidade de lógicas de organização do imaginário sócio- histórico e das práticas concretas, sejam elas simétricas ou assimétricas, é fundamental para se desnaturalizar a ideologia mercantilista e utilitarista que se propõe a aparecer como a única e legítima lógica de organização da vida moderna. Tal reconhecimento da diversidade é fundamental para se entender que, por trás do fetichismo da troca econômica simétrica, que está na base da lógica mercantil e cujo lema é trabalhar para consumir e acumular, há um desejo – assimétrico – bem mais amplo de compartilhar a vida, pois esta não pode ser vivida individualmente, mas apenas coletivamente. Tal consciência coletiva implícita é a base de uma ordem moral geral ligada ao anseio de preservação da sociedade e, em última instância, do ser humano, que é o motivo primeiro e último da constituição do vínculo social, da aliança e da política solidária. Na verdade, o “rochedo no qual se assenta a vida social”, como lembra Mauss na conclusão do Ensaio..., apenas é detectado quando entendemos que os bens que circulam no interior da sociedade são sempre portadores de um duplo sentido, material e simbólico. A tese do fato social total surge, na obra de Mauss, quando ele compreende que todos os eventos possuem uma significação simbólica para a vida social. Ao assim proceder, ele aprofunda a tese de Durkheim acerca da existência de uma obrigação social que sobredetermina a liberdade individual. Mas, ao mesmo tempo, o autor entende que as regras podem ser transgredidas ou negadas, pela vivência da liberdade, fazendo do que era paz, guerra, e vice-versa. Mauss faz este aprofundamento ao introduzir uma compreensão simbólica da prática social não redutível apenas aos aspectos materiais ou aos valores utilitaristas baseados nos cálculos, nas necessidades e nas preferências. Pela valorização do simbólico, ele concluiu que tudo na sociedade é importante para esclarecer sua origem e funcionamento,sendo de particular relevância aqueles fatos que consideramos banais e irrisórios, como os risos, os gestos, as falas, os rituais, as danças, além, é claro, dos serviços e dos bens materiais (Mauss, 2003, p. 191).

O dom e o interacionismo crítico




Dom e compreensão




Como é possível a sociedade? Com esta pergunta C. Papilloud abre seu texto sobre uma reflexão comparativa entre Mauss e Simmel, para defender a tese de que esses dois autores são os reais precursores de uma abordagem inédita da relação humana, que pode ser definida como interacionismo crítico. Para Papilloud, a conversão de Maus para as teses interacionistas significou certo distanciamento de Durkheim, o que ficou evidente quando Mauss e Paul Falconnet escreveram o texto “Sociologia” para a Grande enciclopédia, no ual afirmam que o social se reconhece “pela presença de suas ações e reações, de suas interações” (Mauss, 1901, apud Papilloud, 2004, p. 61).
A. Caillé também propõe que o sistema da dádiva constitui uma abordagem interacionista, por excelência. Mas uma abordagem interacionista que não se limita ao plano microssociológico, pois considera com o mesmo valor a esfera macrossociológica. A compreensão do sistema do dom como uma modalidade particular do interacionismo teria ficado encoberta pela maneira como Lévi-Strauss inseriu o dom dentro dos estudos antropológicos (Caillé, 1998). Ao reduzir o dom a um sistema de troca relativamente rígido e próprio de sociedades tradicionais, a antropologia estrutural teria dificultado que viesse à tona a contribuição fundamental de Mauss para as ciências sociais e para o entendimento do dom como fato político, interativo e dinâmico. É necessário, assim, romper o véu que isolava o dom dentro das ciências sociais (e da filosofia moral, acrescentamos), o qual induzia os pesquisadores a vê-lo como um fenômeno de interesse meramente antropológico e estrutural, com pouca relevância para outras disciplinas, sobretudo para aquelas relacionadas com o interacionismo. Devese notar que há diferentes escolas interacionistas, que não se situam apenas nos Estados Unidos e que se enraízam historicamente em outros países. Nesse sentido, Caillé lembra que, tal como os interacionismos de Simmel e de Elias, aquele de inspiração maussiana se diferencia do norte-americano por algumas razões. Em primeiro lugar, a excessiva ênfase dos estudiosos norte-americanos no plano microssociológico – no chamado “face a face”. No caso do interacionismo em Mauss, diferentemente, “não somente é o conjunto das interações entre as pessoas que ele tende a considerar, na escala da sociedade no seu todo, mas também as relações das pessoas com os objetos, com as coerções materiais, em suma, com a morfologia social”. Desse modo, conclui Caillé, temos aqui uma espécie de “interacionismo generalizado”, que tem mais a ver com a sociologia histórica comparativa weberiana e com o marxismo do que com a psicologia social (base do interacionismo norte-americano) (Caillé, 2002b, p. 247).
Nesta tentativa de enquadramento da teoria do dom como uma abordagem interacionista aberta a uma compreensão ampliada da sociedade, é importante relacionar como o símbolo da aliança surge na teoria maussiana do simbolismo: Ora, esta [a aliança] não é outra coisa senão a do político. A questão sobre a qual Mauss encerrava o Ensaio sobre o dom. Pois tudo em Mauss leva de fato a esta questão do político [...] os símbolos só têm vida e significação enquanto representam, comemoram, performam ou renovam um dom, uma ad-sociação ou, de modo mais geral, o político. Enquanto podem ser compreendidos e portanto traduzidos uns nos outros (Idem, pp. 251-253). Ou seja, a passagem de um entendimento do dom como uma regra rígida para uma leitura pósestruturalista, que o compreende como uma significação da aliança, abre inevitavelmente perspectivas promissoras de uma aproximação dos estudos sobre o dom com o interacionismo crítico. Este entendimento da teoria do dom dentro de uma tradição teórica compreensiva e fenomenológica, que dialoga em diferentes níveis com as sociologias de Simmel, de Weber, de Schutz e do interacionismo simbólico, sobretudo o de Goffman, é importante para situarmos os caminhos de investigação possíveis a partir do dom. A compreensão e a explicação deste sistema não pressupõem o estudo do indivíduo nem do grupo, tampouco o estudo dos planos macro ou microssociológico, considerados isoladamente. A idéia da sociedade como um “fato social total” explica-se pelo valor da circulação das coisas entre os indivíduos e os grupos. Nesse sentido, ao fazer a crítica aos limites da teoria marxista sobre o trabalho, Vandenberghe esclarece – reiterando comentário de Godbout (1998b) a este respeito – que o valor da dádiva não é ligado nem ao uso nem à troca, mas ao vínculo, ao relacional, reforçando a compreensão interacionista da dádiva. Assim, conclui: “Invertendo a caracterização do fetichismo da mercadoria feita por Marx, poderíamos dizer que as relações entre as pessoas (na dádiva) não mais aparecem como uma relação entre coisas, mas que as relações entre coisas agora aparecem como uma relação entre pessoas” (Vandenberghe, 2004, p. 110). Esta observação é interessante para entendermos que, ao se enfatizar a relação entre pessoas na dádiva, a circulação dos objetos, ou o “espírito das coisas” – o hau, dos antigos –, tanto pode reforçar práticas emancipatórias como, ao contrário, práticas conservadoras. Tudo depende, logo, da vivência da associação e da aliança, o que nos leva necessariamente a articular, no sistema do dom, interação e experiência vivida, sociologia interativa e sociologia fenomenológica.
Os estudos sobre a dádiva despertam, inevitavelmente, certa curiosidade sobre a ação social direta, sobre as modalidades de existência das práticas sociais no plano microssocial. Isto não anula, todavia, o interesse da teoria da dádiva para os estudos macrossociológicos, das organizações formais. Na verdade, quando nos debruçamos sobre os requisitos da confiança entre atores sociais e agentes institucionais no interior de organizações como as burocrático-legais ou, então, as mercantis, ou ainda nas práticas do mundo do trabalho, observamos que esta confiança não pode ser obtida nem pelas cláusulas contratuais livres entre parceiros, nem pela obrigação legal. Ao contrário, a confiança exige certo risco, qual seja, o de acreditar que aquele outro com quem me relaciono não vai me trair, embora nada assegure isso. Há um risco inerente ao dom pelo fato de não haver certeza de que o donatário vai receber a ação ou vai retribuí-la. Tudo é possível! (Fixot, 1994, p. 187). Este risco não pode ser simetricamente calculado, ele está aberto às incertezas. Isto explica, portanto, o interesse dos parceiros comerciais ou dos agentes burocráticos de que as pessoas se conheçam, que tenham antecedentes de honestidade e lealdade. Pois, no lado contrário, sob o peso da desconfiança e da corrupção, os sistemas formais inevitavelmente se degradam. Mas, é certamente no âmbito das relações interpessoais que a dádiva aparece com maior nitidez. Porque é no plano da ação direta que se constrói primeiramente a sociedade, onde são edificadas as bases intersticiais das organizações formais e informais. Ali, nascem as redes sócio-humanas – sistemas de trocas diretas entre familiares, vizinhos e amigos –, as quais existem de maneira subjacente a outras redes, como as sociotécnicas – que aparecem como exigência de gestão das organizações formais – ou as socioinstitucionais – que aparecem como exigência de governança entre Estado e sociedade civil, envolvendo agências governamentais e não-governamentais (Martins e Fontes, 2004).
O mercado de trabalho também não pode funcionar a contento caso patrões e empregados, ou produtores e consumidores, desconfiem das intenções uns dos outros. Em todos esses casos, os contratos devem ser legitimados por um mínimo de confiança no outro, uma aposta indiscutível no dom, de modo que o interesse objetivo revelado pela mercadoria ou pela lei possa aparecer como algo natural, como se o contrato encerrasse em si mesmo uma cláusula oculta de confiança e respeito, o que é falso. Isto é, apesar de o dom funcionar mais visivelmente nas socialidades primárias,19 ele continua a aparecer como recurso fundamental para permitir, no plano das socialidades secundárias, que os parceiros dos campos mercantil ou burocrático se disponham a incorporar livremente as regras do jogo, como se confiar nas regras sem duvidar de sua validade fosse algo eminentemente natural. A dádiva funciona, assim, em geral, nos dois registros, o primário e o secundário, embora tenha maior visibilidade no primeiro.

Dom e vida associativa




A contribuição de Mauss para a crítica teórica se faz pela demonstração de que o dom não é apenas uma teoria ingênua, fundada supostamente sobre as intenções generosas e altruístas do ser humano, servindo para repensar o conjunto das instituições sociais a partir dos seus fundamentos morais e normativos que variam de sociedade para sociedade. As tentativas de estigmatizar o sistema do dom como uma teoria ingênua, escondem preconceitos e ignorância a respeito de um pensamento que se apóia num sistema de motivações complexas da ação social. A teoria do dom constitui uma saída teórica importante para dar conta da complexidade e da diversidade das motivações sociais, inclusive aquelas utilitárias, presentes na vida cotidiana.
Mauss não rejeita, simplesmente, as teses liberais. Ao contrário, ele buscou esclarecer que o interesse é um motivo importante da prática social, mas que a própria idéia de interesse é complexa, na medida em que, além do interesse materialista e calculista, pode-se falar de interesse pela honra e pelo poder não apenas em função de si mesmo mas também para o outro. Na vida real, o interesse do sujeito não se centra, necessariamente, apenas na sua própria pessoa, mas na de todos com quem mantém interação na vida privada ou na vida pública. Cada um de nós revela, em algum momento da vida cotidiana, um interesse que transcende o ego e se transporta para o outro – seja ele alguém da família, um conhecido ou um mero desconhecido –, e este tipo de ação se faz, no mais das vezes, de forma espontânea. Não custa lembrar que tal compreensão ampliada do motivo do interesse não tem apenas valor teórico, mas prático, uma vez que pode impactar favoravelmente a reconfiguração das políticas públicas e de novas modalidades de participação da sociedade civil na organização da esfera pública, por exemplo. O caráter paradigmático do sistema do dom traz uma contribuição inestimável para repensar as abordagens teóricas e metodológicas na sociologia, em diversos campos: do trabalho, da família, da religião, do desenvolvimento e da política, entre outros. De fato, a idéia da sociedade como um “fato social total” fabricado a partir de bens simbólicos e materiais não apenas amplia o entendimento da ação social, como permite, igualmente, se atravessar mais facilmente as fronteiras interdisciplinares, tudo em benefício de um pensamento moral e político mais complexo. Para isso, é importante chamar a atenção sobre o fato de que a teoria do dom é eminentemente relacional, não se fixando, por conseguinte, nem na estrutura nem na agência, mas no ciclo incessante de prestações e contraprestações de bens materiais e simbólicos. O ciclo de endividamento simbólico suscitado pela circulação de bens (bens simbólicos, como intenções, gestos, gentilezas e rituais, e bens materiais, como serviços a terceiros, auto-ajuda, utensílios ou mesmo mercadorias) institui necessariamente vínculos e alianças que estão na base da produção das identidades, dos lugares e das estruturas. Em contrapartida, quando alguém deixa de cumprir as expectativas coletivas geradas pelo endividamento mútuo (ao se aceitar algo de alguém, necessariamente entramos em dívida com esta pessoa, mas, caso não queiramos manter a reciprocidade, basta não retribuirmos o gesto, a intenção ou o bem dado) desfaz-se o vínculo e a aliança. Esta compreensão dinâmica da ação social tem, na prática, o mesmo efeito que significa a passagem da descrição da realidade externa, de um momento inicial em que ela é apreendida, como uma fotografia, para um outro momento, em que é apreendida pelas imagens de um vídeo. A perspectiva de sistematização de uma nova leitura do dom tem pertinência clara no sentido de enfatizar o valor do fato associativo e do movimento associacionista (Martins, 2005; Chanial, 2001) e/ou a importância de se pensar um novo paradigma da ação coletiva que enfatize o valor da solidariedade e da participação na sociedade civil. Esta observação é mais do que justificada num mundo globalizado, em que crescem as demandas por reconhecimento, por participação e por inclusão e as reações violentas pelas recusas desses direitos à cidadania e à vida saudável. No desenvolvimento de uma sociologia do dom, prestamos especial ênfase ao modo de organização das socialidades primárias, isto é, à esfera microssociológica, com a intenção de verificar as perspectivas de construção de uma discursividade crítica no interior delas, via redes locais, como a família, a vizinhança e as associações. Uma discursividade que considere tanto o confronto de saberes diferenciados (técnicos e populares) como as negociações e as alianças alinhavadas entre agências governamentais, não-governamentais (ONG s, Igrejas), associações de bairro e atores sociais, no âmbito local. O desafio, no fundo, é observarmos se as possibilidades inscritas nas redes sociais existentes nas municipalidades e nas comunidades são suficientes para incrementar o surgimento de práticas associativas mais horizontais e abertas a novas modalidades de solidariedade e de cooperação, práticas essas que legitimam o surgimento de uma esfera cívica e pública politicamente consistente. Pois, apenas a partir de uma esfera com esta característica, isto é, ancorada nas trocas diretas, é possível pensar numa experiência de cidadania democrática ampliada, plural e participativa, que respeite as diferenças e as universalidades dos sistemas simbólicos e de poder.

Contribuição da teoria do dom para a crítica do pensamento utilitarista hegemônico

A força do dom como “princípio ativo” de uma crítica teórica capaz de se contrapor à doutrina utilitarista dominante ficou tolhida, já dissemos anteriormente, pelo modo como a antropologia estrutural traduziu o dom no seu próprio domínio conceitual, limitando, por conseguinte, seu impacto à análise das sociedades tradicionais e inibindo a compreensão do seu potencial para o entendimento das sociedades contemporâneas. Mas, com a crise do estruturalismo no contexto da globalização de idéias nos fins dos anos de 1970, houve um maior intercâmbio de pesquisadores, gerando uma aproximação fértil, geográfica, temática e conceitual das grandes escolas do pensamento humanista, sobretudo as francesa, anglosaxônica e germânica. No que diz respeito especificamente à escola francesa de sociologia, a crise do estruturalismo permitiu resgatar a contribuição de Mauss a partir de uma crítica cultural e social renovada pela filosofia política francesa e pela filosofia analítica inglesa, a primeira enfatizando o tema da democracia, a segunda, o tema da linguagem da vida cotidiana. Nessa mesma direção, a aproximação da tradição renovada de Mauss com o interacionismo norte-americano, nos anos de 1980, permitiu flexibilizar a vinculação excessiva do dom com a obrigação moral coletiva, o que abriu caminho para realçar o papel da liberdade individual ou do dom do indivíduo na constituição da prática social. Em suma, o debate que se sucede à crise do estruturalismo propiciou compreender que o sistema do dom aplica-se, igualmente, às sociedades tradicionais e às modernas, às sociedades fundadas em crenças a-históricas e àquelas fundadas na criação histórica, sendo ele peça central para se repensar a economia, a política e a democracia numa perspectiva antiutilitarista. O reconhecimento do valor do dom para a explicação da sociedade moderna individualista implica, necessariamente, que os motivos fundamentais das prestações e das contraprestações humanas não são apenas de caráter obrigatório e dados pelas crenças e tradições, como verificamos nas sociedades tradicionais estudadas pelos antropólogos clássicos. Semelhantes motivos são também de caráter livre e espontâneo, gerados pelos desejos e utopias de indivíduos e grupos sociais, como é próprio das sociedades contemporâneas. Do mesmo modo, os indivíduos e pessoas morais não se relacionam apenas pelo interesse por si, mas pelo interesse pelo outro, ou, então, interesse pelo poder, ou pela honra ou pelo prestígio. Enfim, ao se desprender da imagem egoísta e individualista, o interesse torna-se “desinteressamento”, ou seja, interesse que se desprende de sua referência para se tornar outra referência de si ou interesse do outro (Caillé, 2006). Por conseguinte, mais do que uma mera atualização do sistema do dom, este reconhecimento da presença de motivos variados da ação humana aponta para uma crítica teórica de valor moral indiscutível. Esse projeto intelectual re-humanizante, que está presente na obra de Mauss, não é um fato isolado. Ele se cruza, na verdade, com outras contribuições relevantes para esse tipo de crítica ao reducionismo utilitarista e ao pensamento objetivista, como aquelas oferecidas ao longo do século XX por autores como Simmel, Mead, Merleau-Ponty, Goffman, Habermas, Castoriadis, Lefort, Taylor, entre outros. No seu conjunto, as obras desses autores evidenciam o valor da liberdade para a emancipação do ser humano, mas a partir de um lugar diverso daquele do liberalismo clássico, que é basicamente centrado no interesse individual. Tal diferença se evidencia pelo fato de que esses autores entendem a liberdade como um motivo que extrapola o mero interesse individual ou grupal, para encerrar um valor humano coletivo imprescindível para uma perspectiva democrática e participativa ampliada. A leitura do Ensaio sobre a dádiva a partir da ótica de um sistema teórico interdisciplinar mais amplo – que incorpora, paradoxalmente, motivos diversos da ação humana, como os de liberdade e obrigação, do interesse e do desinteresse – permite introduzir uma série de inovações significativas para o pensamento humanista crítico. Para atingir o dogma utilitarista, Mauss buscou demonstrar, por exemplo, o equívoco de reduzir as origens da vida social à idéia de uma “economia natural”, fundada numa representação abstrata denominada homo oeconomicus, como propõem os economistas clássicos. Na crítica ao utilitarismo materialista, em conseqüência, Mauss buscou reinterpretar a economia do mercado com base em uma abordagem socioantropológica e interacionista mais ampla, pela qual o mercado é visto como um mecanismo de regulação entre outros. Tal opção teórica levou-o a rediscutir em profundidade outras noções complementares, como aquelas relacionadas ao contrato, ao trabalho e à utilidade, e novas modalidades de compreensão e interpretação da realidade vivida que, no seu conjunto, revelam uma complexa teoria das motivações humanas. Por isso consideramos que o sistema da dádiva encerra as bases de uma ciência moral de caráter interdisciplinar, fundamental para o avanço do novo movimento teórico nas ciências sociais, sem negligenciar a contribuição decisiva do estruturalismo na demonstração do simbolismo para as práticas culturais e sociais.

Notas

1 N uma primeira aproximação, a título de esclarecimento para os que não são iniciados no assunto, podemos dizer que o sistema do dom consiste num conjunto de prestações e contraprestações que se expandem ou se retraem mediante uma tríplice obrigação – doação, recepção e retribuição de bens materiais e simbólicos –, sendo constatada sua presença em todas as sociedades existentes, tradicionais e modernas, conforme deduzimos da leitura de Marcel Mauss.

2 P ara Alain Caillé, os dois outros paradigmas, o individualista e o holista, apresentam-se sempre como verdades abstratas e intemporais. Função, estrutura, valores e cálculo, interesse individual e boas razões apresentar-se-iam sempre pelas mesmas modalidades independentemente de tempo ou lugar. Em contrapartida, o paradigma do dom deixa tudo aberto às investigações histórica, etnológica ou sociológica sem trazer respostas prontas. Nesse sentido, o dom seria antiparadigmático (Caillé, 2002b, p. 81).

3 Segundo Axel Honneth, a tese de Durkheim sobre a divisão do trabalho social é um insight importante para a compreensão da solidariedade social, na medida em que demonstrou que tal solidariedade nas sociedades modernas depende das formas democráticas e reflexivas da divisão do trabalho (Honneth, 2002, p. 275). Ora, tal releitura é curiosa, uma vez que as teses de Durkheim sobre a divisão do trabalho eram vistas como provas de um funcionalismo que fazia do fundador da sociologia francesa um autor, sob certos aspectos, suspeito. A retradução de Honneth traz novas luzes sobre o tema.

4 E videntemente, estamos nos referindo aqui à tradição do catolicismo tradicional. Pois, no lado oposto, vimos surgir no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, uma outra tradição religiosa católica, como a da Teologia da Libertação,
que defende a reinterpretação de temas importantes, como o da caridade, com impactos positivos sobre o socialismo associativo de movimentos como, por exemplo, o MST e o da economia solidária.

5 O papel do pai da antropologia estrutural na formulação de uma certa leitura do dom pode ser mais bem compreendido a partir do esclarecimento fornecido a este respeito pelo sociólogo canadense Marcel Fournier, o mais importante biógrafo de Mauss. Num fórum especial sobre as “Novas Sociologias”, no Encontro Anual da Anpocs, em 2004, Fournier esclareceu que Lévi-Strauss, em uma carta a um amigo, teria dito que Mauss teve o mérito de chegar até o rio, mas ele, Lévi-Strauss, é que teria feito a travessia das águas. Embora esta afirmativa sirva para reforçar a vinculação de Mauss com a antropologia estrutural, ela é, em si, insuficiente. Não pelo fato de que Lévi-Strauss não tenha feito bom uso do sistema teórico do dom, mas porque este sistema se abre para outros usos e entendimentos, e, sobretudo, para a construção de uma crítica teórica e moral mais ampla.

6 Como veremos mais adiante, ao realçar a ambivalência da ação social o dom permite demonstrar que as motivações humanas não podem, em absoluto, se limitar à função do egoísmo e do interesse material.

7 Contra um pensamento operacional, próprio da antiga ciência experimental de base cartesiana que entende a criação humana como o produto de um processo de informações concebido sobre o modelo da máquina humana, Merleau-Ponty propõe, na sua última obra escrita em vida, L’oeuil et l’esprit, um corpo que acorde outros corpos associados, os “outros” que não são meus congêneres (Merleau-Ponty, 1964a, pp. 12-13). E porque o corpo vê e se move, ele tem as coisas em torno de si mesmo; elas (as coisas) estão incrustadas na própria carne como um anexo ou um prolongamento dele, fazendo parte da definição plena do corpo, sendo que o mundo é feito do próprio corpo (Idem, p. 19).

8 Souza escapa dos perigos do culturalismo, presentes nessas narrativas que insistem sobre a originalidade, recorrendo com oportunidade à genealogia do indivíduo moderno realizada por Charles Taylor em A fonte do self (2005). Tal recurso facilita explicar que a noção de indivíduo é complexa e contraditória e que o self pode conhecer diferentes formas generalizantes, que não se reduzem nem àquela do individualismo moderno ocidental (Souza, 2001a, p. 182) nem a de leituras dicotômicas e culturalistas sobre a pessoa moral. Não cabe aqui entrar nesta discussão riquíssima da ontologia moral do Ocidente, formulada por Taylor, mas é necessário sublinhar sua pertinência para o que aqui estamos discutindo, a saber, que a genealogia do trabalho intelectual e a consideração pela análise reflexiva das condições lingüísticas, culturais, emocionais e, sobretudo, morais, presentes no vivido, são decisivas para se delimitar a construção do conhecimento num certo lugar e num certo tempo.

9 Clifford Geertz, com base em sua vasta experiência de antropologia comparada, oferece mais elementos para situar este debate sobre a ação intelectual no “terreno”. Afirma ele que nossa compreensão de nós mesmos e de outros – nós mesmos entre outros – “é influenciada não apenas pelo intercâmbio com nossas próprias formas culturais mas, também, e de maneira bastante significativa, pela caracterização que antropólogos críticos, historiadores e outros, fazem das formas culturais que nos são alheias, transformando-as, depois de retrabalhadas e redirecionadas, em secundariamente nossas” (Geertz, 2001, pp. 17-18). Geertz está pensando aqui nas vicissitudes do antropólogo no “terreno” e dos perigos de se fazer “imaginação moral” esquecendo-se do imperativo da diversidade cultural.

10 Já há material relevante disponível na Revue du Mauss sobre a produção teórica pós-estruturalista nos últimos 25 anos. No Brasil, porém, o trabalho de retradução dos estudos sobre o dom ainda necessita de maior visibilidade acadêmica, embora iniciativas práticas venham ocorrendo nas grandes associações científicas como Anpocs, SBS – Sociedade Brasileira de Sociologia e a ABA – Associação Brasileira de Antropologia.

11 A idéia de totalização do social, que propõe Mauss a partir do dom e que será discutida mais adiante, implica, lembra Karsenti, num importante deslocamento epistemológico que apresenta Mauss como peça fundamental no nascimento da lingüística que, como se sabe, foi fundada oficialmente por Saussure no seu Cours de linguistique general, ministrado no ano de 1916 (Karsenti, 1994, p. 88).

12 “Agora, é o indivíduo que é a fonte da mudança social. Ele sempre foi, mas não o sabia. As leis eram decididas por seus príncipes e suas religiões. Seus costumes pareciam-lhe sair de suas técnicas. E estas últimas estavam cravadas no artesanato, permitindo-lhe mais a ingeniosidade do que a inovação. O engenheiro surgiu lentamente com as primeiras máquinas. E as sociedades modernas mudam rapidamente como nunca antes visto. Trata-se, mesmo considerando todas as dificuldades, da ação do indivíduo” (Mauss, 2004, p. 140).

13 E sta crítica, que tem uma significação preciosa, tanto cultural como também social e política, aproxima Mauss de outro grande teórico antiutilitarista do século XX, Karl Polanyi, que demonstrou na sua obra clássica, A grande transformação, a dependência estreita da economia de mercado com a cultura histórica de uma época e de uma determinada civilização.

14 A sigla M.A.U.S.S. tem dois significados: prestar uma homenagem a Marcel Mauss, um dos fundadores da escola francesa de sociologia e sintetizar o descontentamento de um grupo de intelectuais com a “fragilidade da ciência econômica e de suas pretensões explicativas” (Caillé, 1989, p. 7). No início, antiutilitarismo significava apenas antieconomicismo. Na declaração de intenções do M.A.U.S.S, os signatários do documento assinalam que “o objetivo do movimento era sobretudo de relançar ou de lançar uma discussão e uma informação científica sobre a questão das dimensões não mercantis e não monetárias da troca”. “Não se trata de opor a axiomática do interesse a um certo espiritualismo do desprendimento, da gratuidade ou da ação não finalizada, mas de opor a esta axiomática limites precisos de legitimidade, tanto atuais como passadas, metodológicas e antropológicas. Para isto, importa reabrir o debate que havia sido iniciado sobretudo por Mauss, Malinowski e Polanyi [...]” (Bullletin du MAUSS,1982, p. 9). Apenas nos fins da década de 1980, esta crítica antiutilitarista difusa transforma-se numa crítica antiutilitarista propositiva, que elege o sistema do dom como veículo central para se avançar na desconstrução do caráter restritivo das teses economicistas dominantes, e na crítica à proposta ingênua da economia de mercado como uma economia natural que existiria desde sempre, estando hipoteticamente na origem e no desenvolvimento de todas as sociedades humanas.

15 N esse sentido, a crítica antiutilitarista de Mauss fica muito próxima daquela empreendida por um filósofo moral da contemporaneidade, Charles Taylor. Para este autor, o utilitarismo clássico equivoca-se ao tentar rejeitar as distinções qualitativas e hiperdimensionar a quantificação e o cálculo (Taylor, 2005, p. 39). Ambos os autores buscam desnaturalizar o utilitarismo e provar a existência de uma fundamentação moral por trás das motivações utilitaristas. Mauss critica a idéia de uma economia natural, que existiria desde sempre; Taylor, ideais como o self desprendido que, ao objetivar o mundo circundante, inclusive as emoções, produz uma espécie de distanciamento e agir instrumental sobre o mundo, que gera ilusões como a da economia natural, por exemplo. Ambos sublinham uma “valorização forte” (noção proposta por Taylor) dos bens à nossa disposição, no sentido de que tais bens precisam de uma distinção qualitativa, uma vez que, lembra Taylor, eles funcionam “em algum sentido como padrão para nós” (Idem, p. 36).

16 A valorização do simbolismo não significa a desconsideração dos condicionantes sociais, históricos e mesmo biológicos do ser humano. Ao contrário, amplia a compreensão do sujeito humano ao permitir sair de uma concepção objetivista para uma outra mais ampla, que integra os planos da interioridade e das redes de inserção do self no mundo. Pelo simbolismo pode se compreender, enfim, que as próprias nomeações desses condicionantes – o que chamamos de biológico, corporal, objetivo ou subjetivo – varia de cultura para cultura e depende dos esquemas perceptivos prevalecentes em diferentes sociedades. Esta idéia de uma corporeidade humana como fenômeno social e cultural, como motivo simbólico é bem desenvolvida em A sociologia do corpo, de David Le Breton (2006).

17 E m Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty critica o dualismo cartesiano e a exaltação que ele considera ilusória da separação entre sujeito e objeto. Pensa ele, diferentemente, que tudo que o indivíduo percebe é extensão dele, e o olhar objetivado – que cria a ilusão da separação entre o sujeito e o objeto – é secundário com relação à sua expressividade, a seu “sentir total” que engloba o subjetivo e o objetivo. Para o autor, tal separação apenas é possível, do ponto de vista lógico, pela leitura simplificada da percepção fenomenal que enfatiza a exterioridade do corpo, produzindo uma “imagem empobrecida” do verdadeiro corpo, que apenas se revela integralmente na sua expressão fenomenal (Merleau-Ponty, 1999, p. 493). Pensamos que a idéia de sentir total deste filósofo está intimamente ligada àquela de fato social total de Mauss.

18 N o número especial de comemoração dos dez anos de fundação do Boletim do MAUSS (depois transformado em revista), em 1992, intitulado “Dez anos de evolução das ciências sociais: metamorfose do MAUSS”, Alain Caillé propõe, num texto provocativo intitulado “É preciso criar uma nova disciplina nas ciências sociais e qual?”, a fundação de uma filosofia política que teria a eficácia da ciência. Para ele, a filosofia política atual seria a melhor representação de um modelo normativo para as ciências sociais (Caillé, 1992, p. 40). Sem desconsiderar esta proposta, pensamos todavia que os avanços no debate sobre o dom desde então têm revelado existir uma força moral que termina se impondo ao elemento político, embora nele se inspire para assegurar a sua aderência normativa e prática. Daí considerarmos que a expressão “ciência moral humanista” pode também ser apropriada para pôr em relevo a questão dos incondicionantes da ação social e sua importância na constituição da aliança e, também, da democracia.

19 I nspirado nos estudos sobre o dom, Caillé propõe haver uma tendência da sociedade moderna a provocar a separação crescente entre dois registros de socialidades, que permanecem bastante imbricados em sociedades mais tradicionais. O primeiro registro é o das socialidades primárias, no qual as relações entre as pessoas são mais importantes do que os papéis funcionais que elas desenvolvem. Trata-se do registro da família, dos parentes, dos amigos e dos vizinhos. No registro das socialidades secundárias, ao contrário, a funcionalidade dos atores sociais vale mais do que suas personalidades, como se observa nas práticas do mercado, do Estado e da ciência. Nenhuma administração governamental pode funcionar caso não exista o espírito do serviço público, assim como uma pátria não sobrevive caso ninguém se disponha a morrer por ela (Caillé, 2002a, p. 196). O mesmo se pode dizer do serviço médico. Os hospitais e as clínicas médicas não podem funcionar eficazmente caso não haja algum tipo de solidariedade entre médicos, enfermeiras, funcionários e familiares em torno do sofrimento do doente, espelhando, em cada personagem envolvido, a proximidade inexorável da morte e da finitude.

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Palavras-chave: Dádiva; Teoria social; Marcel Mauss; Movimento antiutilitarista.

Os estudos sobre o dom oferecem uma contribuição inestimável para a teoria social hoje, que ultrapassam os usos oferecidos pela antropologia estrutural. Eles são relevantes para se repensar o social e a política e permitem um diálogo em profundidade com várias outras correntes do pensamento. Ao se reavaliar o dom na atualidade, sobretudo a partir das novas leituras contemporâneas sobre o tema, como aquela oferecida pelo M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), descortina-se também uma outra compreensão da escola sociológica francesa e de Marcel Mauss, em particular, o primeiro a sistematizar os estudos sobre a dádiva.

FROM Lév i-Strauss TO M.A.U.S.S. – ANTI-UTILITARI AN MO VEMENT IN THE SOCIAL SCIENCES: GIFT ITINERARIES

Paulo Henrique Martins

Keywords: Gift; Social theory; Marcel Mauss; Anti-utilitarian movement. Studies on the gift offer an invaluable contribution to the current social theory, surpassing utilizations offered by the structural anthropology. They are relevant for rethinking the social and politics allowing a deep dialog with many other thinking currents. In reevaluating the gift today, especially from the standpoint of new contemporary versions on the theme, such as the one offered by the so-called M.A.U.S.S. – Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (Anti-Utilitarian Movement in the Social Sciences), another comprehension of the French sociological school of is uncovered, particularly Marcel Mauss, the first one to systematize the studies on the gift.

De LÉvi-Strauss AU M.A.U.S.S. – MoUv EMENT Ant iUt ilita rist E DANS LES SCIENCES SOCIALES : ITIn ÉRAIR ES DU Don
Paulo Henrique Martins
Mots-clés:
Don; Théorie sociale; Marcel Mauss; Mouvement antiutilitariste. Les études sur le don offrent une contribution inestimable à la théorie sociale d’aujourd’hui, qui dépasse les usages offerts par l’anthropologie structurelle. Ils sont importants pour repenser le social et la politique et permettent un dialogue en profondeur avec plusieurs autres courants de pensée. Lorsqu’on évalue le don dans l’actualité, surtout à partir dês nouvelles lectures contemporaines sur le sujet, comme celles proposées par le M.A.U.S.S. (Mouvement Antiutilitariste dans les Sciences Sociales), appara»t également une autre compréhension de l’école sociologique française et, particulièrement, de Marcel Mauss, qui a été le premier à systématiser les études sur le don.










Fonte: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol.23, n.66 - fevereiro/2008