Cérebros, computadores, circuitos elétricos e químicos, e comunicação, sobretudo entre cérebros e computadores. Esses são os temas que nos deixam pasmos, crendo que vivemos um instante de ficção científica. Roberto Etchenique, doutor em química e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina, aborda essas temáticas nesta entrevista a Leonardo Moledo, do jornal Pagina/12, 17-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
"No mundo, existem dois grandes tipos de sistemas de informação. Um são os computadores, que são mais ou menos todos descendentes do primeiro computador digital, na década de 40. O outro grande grupo são os cérebros, todos descendentes de um organismo com gânglios neurais e com sistema nervoso que já tem entre centenas e milhares de milhões de anos."
Há um conto de Asimov em que existe outra inteligência no mundo.
Bem, eu acredito que há muitos mais sistemas de informação no universo, mas não acredito que haja outro sobre a face da terra. Há, sim, computadores analógicos que resolvem pequenos problemas, mas vão desaparecendo. A relação que temos atualmente entre os cérebros e os computadores (digitais) é muito díspar. O maior computador que existe até este momento tem a complexidade do cérebro de uma abelha. O cérebro de um homem ou de um golfinho é milhões de vezes mais complexo que o melhor computador. Agora estão começando a ser feitos computadores cem vezes maiores do que o de uma abelha, com o que nos aproximaríamos do cérebro de um peixe. Mas nem de longe ao cérebro de um rato.
Uma coisa que podemos colocar em consideração é como nos comunicamos com o cérebro e o computador. Em todo o mundo, nós nos vinculamos com o computador através de duas coisas: do mouse e do teclado. Eles nem sequer entendem a voz humana. A interface que temos com o mundo dos computadores é uma interface tosca, primitiva. Os nossos cérebros, pelo contrário, operam com outros cérebros (de outros homens ou de um cachorro, por exemplo) mediante sinais mecânicos (auditivos ou por meio da luz visível através dos olhos).
Seria interessante poder nos comunicarmos com os computadores assim como nos relacionamos com os nossos próprios cérebros. Vejamos um exemplo: se eu penso na multiplicação de 8 vezes 7, vem à mente o número 56. Por outro lado, se penso no cosseno de 22º, não surge nada à mente. Pois bem: se eu pudesse comunicar um computador com um cérebro, poderíamos pensar no seno de 22º, e o número viria à mente. Se nos comunicássemos com um computador, poderíamos nos lembrar de imagens que de outra forma não nos lembramos.
O que o senhor diz, então, é que seria ideal ter um computador como prótese, trabalhando praticamente sem interface. Como os óculos...
Ou os livros. O livro é essencialmente informação conceitual. Poderíamos colocar essa informação conceitual no cérebro guardada em algum lugar e lê-lo rapidamente. Todas essas coisas têm uma linha condutora: como relacionar o computador e o cérebro. O computador lida com sinais elétricos, enquanto que o cérebro lida fundamentalmente com sinais químicos. Há sinais elétricos, mas esses sinais funcionam como interface entre dois sinais químicos: a comunicação elétrica é muito básica e de baixa qualidade de informação. O cérebro lida bem com o circuito químico e pode modificá-lo: quando aprendemos, modificamos a forma que o nosso cérebro tem para enviar sinais químicos a outro lugar. O que eu faço no laboratório é tentar desenhar sistemas que permitam a comunicação entre os sinais químicos e os elétricos. Pegamos o cérebro (geralmente de um animal), colocamos eletrodos nele, recuperamos alguns neurônios e monitoramos o que acontece.
E fazem isso com cérebros de animais?
Fazemos com rodelas de cérebro de rato ou com cérebros de sanguessuga. A vantagem que a sanguessuga tem é que ela tem cerca de 20 cérebros e que, além disso, por ser um animal tão imundo, não dá pena.
Fazem esses experimentos com anestesia prévia?
Com a sanguessuga, não; com o rato, sim. De fato, depois da experiência, o rato vive normalmente. Podemos ver o que acontece no cérebro do rato por meio de elementos que mudam sua fluorescência quando os neurônios estão agitados. Podemos, dessa forma, mandar informação ao cérebro e receber informação. Com as técnicas que são usadas, só falta deixar uma janela transparente para que a luz passe (nisso consiste a operação que é feita na sala de cirurgia antes do experimento: em deixar uma janela transparente).
E então?
Entre isto que eu estou lhe contando e a compreensão cabal dos códigos que os cérebros usam, há uma distância enorme. Hoje sabemos que todos os computadores, mais ou menos, têm os mesmos códigos. Não estamos tão certos de que isso mesmo ocorra com o cérebro. A diferença de circuitos entre dois humanos diferentes é muito maior do que a diferença de circuitos entre dois PCs. Nossos drivers, provavelmente, vão se gerando pouco a pouco ao longo da vida. Há casos médicos para exemplificar: pessoas que nasceram cegas, que lhes foi diagnosticada (mal) uma cegueira cerebral na década de 40 (quando, na verdade, o que elas tinham era uma simples catarata), são operadas na década de 70 e voltam a ter olhos que funcionam. Mas, no entanto, continuam sem ver: o próprio cérebro rejeita os olhos. Tendo estado privado dessa função durante 30 anos, o cérebro usa o espaço para outra coisa. Se eu me dediquei 20 anos a provar vinhos, tenho uma parte do cérebro desenvolvida que outros não têm. Não está claro se, ao tomarmos essa parte desenvolvida de um cérebro e a extrapolarmos a outro, essa informação vai ser processada.
Eu pensava em coisas mais básicas...
Há uma experiência interessante que se faz com um macaco. Conectam-se eletrodos na cabeça, e imobiliza-se o macaco em uma cadeira. O macaco está conectado a um computador, que está conectado a um braço mecânico. O macaco aprende que, se pensar em determinadas coisas, o braço mecânico se mexe e leva a banana à sua boca. De alguma forma, o computador detecta como o cérebro codifica a informação que envia aos braços, ou às diferentes extremidades, para agarrar alguma coisa. Isso tem implicações médicas muito fortes, como é de se imaginar. O maior problema não é entender o que é a consciência, ou a inteligência, ou os códigos, mas sim coisas mais banais como entender de que maneira pode-se evitar que o sistema imunológico rejeite os eletrodos implantados. Pouco a pouco, isso vai sendo solucionado.
E o que estão fazendo especificamente no laboratório?
Estamos tentando fazer compostos para espiar esses cérebros que funcionam com luz visível. O que existe até agora são compostos que funcionam com luz ultravioleta (que destrói o tecido celular). Neste momento, temos os compostos para serem usados com luz visível mais eficientes do mundo.
Todas essas pesquisas são inquietantes. Por exemplo, penso que seria maravilhoso aprender um idioma mediante um chip. Mas há outras coisas, como por exemplo os livros. O livro parece uma invenção que não pode se modificar muito, como o copo para tomar água. Modifica-se o material, um pouco a forma, mas a essência é a mesma.
Bem, agora está mudando um pouco. Os primeiros livros, logo que a imprensa foi criada, tentavam imitar o pergaminho. Com o tempo, deram-se conta de que isso não servia para nada, que o importante são as letras que eles têm dentro. Atualmente, o suporte do livro está mudando: não resta muito tempo ao papel. O problema de Botnia não é gerado porque a humanidade é boa e a Finlândia é má. Ele é gerado porque as pessoas querem papel, e as fábricas de papel mais contaminadoras são as de papel bom, o que significa encher o ambiente com compostos cheios de enxofre e mal-cheirosos.
Como o livro está mudando?
Hoje, estamos indo rumo a um livro vergonhoso e de má qualidade e que funciona muito mal (talvez tão mal como o livro de Gutenberg) que é o e-book, o livro que é como uma telinha, onde se pode virar as páginas. Mas ele tem pouca luz, má resolução, o livro é grande, caro e pode ser roubdo no metrô. Não é uma excelente alternativa. Pois bem: isso provavelmente irá mudar, vai ficar mais barato, melhorar. De todos os modos, vai continuar sendo mais ou menos o mesmo. Palavras.
Palavras, palavras, palavras.
O que muda é o suporte material. A essência do livro não é o papel, isso mudou: foi pedra, foi argila, foi papiro, foi pergaminho. A próxima será silício (não acredito que dure muito) e depois, por que não, nada. Como no filme Fahrenheit 451, em que cada um aprendia um livro de memória.
E depois, pode-se compartilhá-lo. Por que não lembrar os livros? Não todo o tempo, mas sim quando queremos. Tê-los incorporados dentro de nós e acessá-los. Alguém pode pensar que isso nos torna um pouco andróides, pouco humanos. Sim: como os óculos.
Dá a sensação de que são um pouco mais do que os óculos.
Mas, provavelmente, em seu momento, os óculos eram mais do que óculos. Eram mais avançados, por exemplo, do que um bastão.
O que eu me pergunto é se esse tipo de coisas não é uma extrapolação um pouco exagerada para este momento. Por exemplo: os óculos estão muito bem, mas colocar um microscópio e um telescópio no olho...
Se fosse possível, oticamente, quantas pessoas veriam com microscópio e telescópio? Todo mundo! Ou por acaso não temos um celular na mãe desde que foi possível? Não é algo normal. Não é normal que um ser humano fale com outro ser humano que esteja na outra face da Terra. Os seres humanos não evoluíram para isso.
Não biologicamente, mas sim culturalmente.
Nos últimos 200 ou 300 anos. A cultura do último milhão de anos do ser humano foi viver em bandos de 50 pessoas e matar o inimigo.
Eu não digo que tenho uma objeção. Acho que, talvez, é uma coisa desnecessária. O livro, salvo pelo problema das florestas, parece que alcançou uma estabilidade que não sei se é preciso modificar. A pergunta é se não estamos indo um pouco longe. Mesmo que faltem séculos para acessar essa tecnologia quase de ficção científica.
Sim...
Sim. Eu imagino um supercomputador parecido com o que Asimov descreve em "A Fundação e a Terra": uma mesa com algumas mãos desenhadas; alguém coloca as mãos, logo sente que essas mãos se afundam e ali está em contato com o computador, que projeta um mundo virtual sobre sua mente. É completamente externo: o indivíduo não tem nada, conecta-se por meio de suas mãos. É uma espécie de realidade virtual.
Há outro problema, que é de que não sabemos quase nada sobre o cérebro.
É verdade. Sabemos coisas muito toscas.
União com máquinas vai libertar o cérebro do corpo
O desenvolvimento da neurociência deverá libertar o cérebro do corpo e permitir, por exemplo, que seres humanos explorem o espaço usando máquinas capazes de transmitir movimentos e sensações. A previsão foi feita pelo do neurocientista paulistano Miguel Nicolelis. "Em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância". Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA) e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra, Nicolelis disse também que está "à beira de demonstrar que é balela" a ideia de que o córtex cerebral se divide em áreas.
O pesquisador é pioneiro no estudo de interações entre cérebro e máquina, e já realizou proezas tecnológicas como fazer um robô no Japão andar impulsionado por ondas cerebrais de uma macaca nos EUA. O objetivo do trabalho é desenvolver próteses neurais que permita a pessoas paralisadas andarem novamente. Nicolelis foi entrevistado pelos jornalistas Gilberto Dimenstein, membro do Conselho Editorial da Folha e Hélio Schwartzman, articulista do jornal, e pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ. A mediação foi de Claudio Angelo, editor de Ciência.
Trechos da entrevista publicados pelo jornal Folha de S.Paulo, 10-06-2009.
O cérebro unificado
Nós vamos publicar daqui a poucas semanas registros do córtex visual em que 12% das células respondem à informação tátil e vice-versa. Faz cem anos que essa ideia [de que o cérebro se divide em "casinhas", cada uma com uma função] se cristalizou. Nós estamos à beira de demonstrar que isso é balela. A função, no cérebro, não é determinada geograficamente. Ela é determinada de acordo com as demandas da tarefa que se impõe ao cérebro. Então, se uma pessoa perde a visão e ela tem que navegar pelo mundo sem o sistema visual, ela remapeia o atributo táctil por todo o córtex, inclusive o visual. Nós estamos abandonando essa ideia de que o cérebro é um grande mosaico e partindo para noção de que o cérebro é uma grande democracia.
Parkinson
[Sobre o tratamento contra Parkinson com estimulação elétrica desenvolvido por sua equipe na Duke.] Quando começamos a olhar para animais [camundongos] que desenvolviam um Parkinson muito violento e muito rápido, tudo levava a crer que a atividade do cérebro parecia uma crise epiléptica. Então falamos "isso é uma crise epiléptica, vamos tratá-la como se fosse uma". As vantagens de estimular atrás da medula espinhal são várias: é mais seguro, muito mais fácil, muito mais barato. Mas a grande vantagem, do ponto de vista teórico, é que muda a forma de olhar para o cérebro. Ao invés de tentar tratar um lugarzinho, que era o que a teoria anterior achava, você está tratando o circuito inteiro. Do ponto de vista filosófico, isso é uma mudança radical. Já temos os modelos para primatas prontos e nós vamos fazer boa parte desses estudos lá em Natal. Espero que, se os resultados em macacos forem tão bons quanto eles foram nos roedores, no ano que vem a gente começa a fazer esses estudos em humanos.
Corpo mecânico
O pensamento nada mais é do que uma onda elétrica pequenininha, se espalhando pelo cérebro, numa escala de tempo de milissegundos. O que fizemos [com primatas] foi descobrir que é possível ler esses sinais e extrair deles comandos motores capazes de reproduzir num braço mecânico ou numa perna robótica a intenção motora daquele cérebro.
Telecinesia
E nós fechamos o circuito: o macaco usou sinais do córtex motor para controlar a prótese e a prótese [usando sensores, quando o pé atinge o chão] mandou informação de volta sem usar o corpo para nada. O cérebro se libertou do corpo de vez. Isso quer dizer que, a longo prazo, nosso alcance como humanos vai mudar completamente. Você vai ter a chance de atuar voluntariamente em um ambiente a milhares de quilômetros da sua presença física. No futuro, em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância. A Agência Espacial Europeia analisou nossos trabalhos e concluiu que não tem sentido mandar humanos para Marte. Nós vamos de qualquer jeito, manda algo que nos represente pelos nossos pensamentos.
Universidades
Se estivesse na situação de um jovem hoje, pensaria muito antes de ir para a universidade. Ela precisa mudar demais, se reestruturar tremendamente. As divisões são do século 19, elas têm muito pouco a ver com a realidade. Precisamos criar mecanismos para acelerar e desburocratizar o processo de formação de cientistas. No mundo inteiro.
”Ciência do mal”
A ciência transformou-se em uma coisa misteriosa. Sempre que fazia uma palestra, a primeira pergunta era: "E se isso for usado para o mal?". Vejo na imprensa no mundo inteiro esse afã de "e se fizer um gene desses errado, vai surgir um Frankenstein que vai destruir a raça humana". Pode? Pode. Mas tudo pode. O Palmeiras pode ganhar o título neste ano. Mas as chances são remotas.
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