quinta-feira, 24 de maio de 2007

Texto do prof. Sérgio Adorno sobre a atual situação da USP

Achei muito interessante, e uma visão um tanto quanto ponderada... Vale a pena divulgar!!

A USP E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Prezados(as) colegas:
Prezados(as) membros do Conselho Departamental e do Colegiado de Pós-Graduação,

Venho, como cada um de nós, acompanhando com enorme apreensão os rumos dos acontecimentos desde a ocupação do prédio da Reitoria da USP.
Não quero entrar na discussão a respeito do mérito das reivindicações estudantis. Como todos nós, persisto acreditando na autonomia universitária, antes de tudo da pesquisa e do ensino, com apoio na autonomia administrativa e orçamentária. Igualmente, reconheço princípios de justiça em movimentos que cuidam defender a pertinência do ensino público assim como lutam pela melhoria das condições que permitam a realização das atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão) e das atividades-meio (gestão administrativa) com vistas à formação de profissionais e pesquisadores capazes de responder aos desafios postos por uma sociedade cada vez mais sequiosa por justiça social.
O que me parece estar em discussão não são os fins do movimento, mas seus meios. Pessoalmente, como pesquisador que venho há anos estudando violência e a violação de direitos humanos, não posso, sob qualquer hipótese, deixar de reconhecer que o ato de ocupação fez apelo à violência. Mesmo que a atitude das autoridades universitárias tenha sido arbitrária e violenta em não atender prontamente os alunos – não as estou julgando, até porque não disponho de informações suficientes para fazê-lo –, um ato violento não justifica outro. Por que entendo que a ocupação valeu-se de meios violentos? Porque impõe, pelo uso ou ameaça arbitrários do uso da força, barreiras ao livre acesso daqueles(as) aos quais a comunidade universitária, pelo sim ou pelo não, confiou o governo de nossas atividades. Impedi-los de assumir seus postos, é impedi-los não apenas de responder por seus atos, inclusive o de zelar pelo cumprimento das leis e regulamentos que nos regem, como também o de poder negociar conflitos. Nunca é demais lembrar, o uso arbitrário da violência impõe o silêncio, o mais insidioso dos arbítrios porque impossibilita o outro de expressar-se, vale dizer de pensar criticamente e agir com sabedoria política.
Não é de se esperar que, em um espaço social e institucional onde viceja, por excelência, a ciência – como é a universidade – a violência seja recurso de pressão e imposição da vontade de uns contra a vontade de outros, por contraste ao recurso à persuasão e ao convencimento pela palavra, atributos da razão.
No decorrer dos acontecimentos, sei que foram feitos esforços para uma saída do impasse. Até onde tenho acompanhado, as autoridades universitárias estão tendentes a negociar e a atender parte das reivindicações, desde que o prédio seja desocupado. Por sua vez, os alunos – cuja representatividade política não me parece claramente definida haja visto o documento apócrifo publicizando as reivindicações logo no início do movimento (afinal, o DCE assumiu a liderança do movimento?) –, não parecem dispostos a aceitar a exigência da Reitoria, pretendendo inclusive explicitação de sua posição face aos decretos governamentais, o que parece ter sido atendido com o documento subscrito pelos três reitores das universidades estaduais, divulgado pela mídia impressa e eletrônica no final da semana passada e inserido no site da USP.
Diante do prosseguimento do impasse, à Reitoria pareceu não restar outra solução que não fosse recorrer à justiça para recuperar a posse do prédio. Se não o fizesse, poderia ser judicialmente interpelada, inclusive pelo Ministério Público, por improbidade administrativa.
Decisão judicial determinou a reintegração. Cabe, portanto, o cumprimento da decisão, como se espera no estado democrático de direito.
Não sejamos ingênuos, porém: a execução da decisão judicial implica recurso ao poder coercitivo, cuja atribuição é da competência legal da Polícia Militar. Sabemos que, se houver resistência dos alunos – e tudo indica que possa haver – as conseqüências poderão ser imprevisíveis, sobretudo para a integridade física de quem quer que seja e, no mínimo, para a preservação do patrimônio público e tudo o mais que esteja sob a guarda e tutela das autoridades universitárias, como documentos e registros oficiais.
Não sem razão, a comunidade uspiana guarda em sua memória as intervenções violentas da polícia (civil e militar) durante a ditadura. Tem motivos para desconfiar do apelo ao poder coercitivo mediante o uso – ainda que legítimo porque regulamentado no estado democrático de direito – da violência, mesmo que seja para o cumprimento de decisão judicial. Essa a razão pela qual foi produzida a moção, por iniciativa de docentes da FFLCH, que refuta “qualquer ação violenta de desocupação do prédio”.
Refleti sobre o documento e decidi não subscrevê-lo, porque creio que ele é insatisfatório. Ele silencia sobre questão fundamental. Ao silenciar, hesita sobre o papel das leis e do direito em sociedades democráticas.
De fato, também guardo profundas desconfianças quanto ao recurso à polícia militar. Igualmente receio que seu emprego possa produzir resultados indesejados, mormente porque – os estudos que venho desenvolvendo assim o indicam – não estou convencido de que a polícia militar possa exercer seu papel – neste caso, o de cumprir decisão judicial – sem apelo ao uso abusivo da força física. E, se compararmos a experiência internacional, por mais preparadas que as forças policiais sejam não é raro que intervenções em movimentos de protesto coletivo resultem em feridos, quando não em mortos. Inclino-me também à solução negociada.
O que a moção não diz é como a decisão judicial vai ser cumprida sem o recurso ao poder coercitivo, enquanto a resistência à desocupação se mantiver.
Esse silêncio pode ser interpretado de vários modos. Chamo a atenção para apenas três: primeiramente, a moção não aceita a decisão judicial. Bem, em tese, isso é legítimo. Se é assim, por que não propôs, como seria esperado no estado democrático de direito, o recurso à instância judicial superior para barrar os efeitos da decisão? Assim, seria suspenso o cumprimento da decisão e as negociações correriam por conta do livre jogo político. Poder-se-ia argumentar que a intermediação judicial é morosa. Todavia, não tem sido assim em casos de extrema urgência política, que envolvem decisões que não podem ser postergadas, tanto assim que o pedido de reintegração de posse mereceu resposta imediata. Eu confesso que me sentiria mais confortável se poucas palavras tivessem sido ditas a respeito.
Alternativamente, a moção reconhece a decisão judicial e indica por que meios o poder coercitivo vai ser exercido já que negociação e entendimento, por sua própria natureza, estão excluídos dessa modalidade de poder. Certamente, é preciso certa dose de imaginação política para anunciá-los, mas nunca é demais tentar essa sorte de “poder coercitivo alternativo”.
Mais preocupante, no entanto, é que o silêncio – seja quais forem suas razões – pode sugerir que a moção não reconhece legitimidade à intermediação judicial. Neste caso, pode-se estar sugerindo que a Reitoria não deveria ter ido bater à porta do poder judiciário. Mas, se ela não fosse, estaria deixando de cumprir leis que reclamam deveres e responsabilidades no trato da coisa pública. Em outras palavras, poder-se-ia estar dizendo que a negociação, em uma sociedade democrática, prescinde de leis, de pactos, da resolução de conflitos pelas vias institucionalmente reconhecidas como imperativas porque legítimas já que legitimadas pelo processo político que as assim constituiu.
Se eu, em um exercício algo arbitrário de aproximação, transpuser esse raciocínio para o domínio da violência urbana – com todo o cenário que os(as) colegas bem conhecem e acompanham, se não através de estudos que alcançam os mais variados objetos ao menos através do noticiário cotidiano – serei levado a descrer nas leis, nas agências encarregadas de controle da ordem pública e deslegitimar a justiça criminal como o lugar onde – a despeito de todas as críticas que vimos acumulando nas duas últimas décadas – é possível enfrentar os problemas e lutar por resolvê-los, ou seja encontrar saídas no interior da ordem constituída e não en dehors. Caso contrário, paradoxalmente, eu serei levado a atribuir a uma certa ordem natural – o jogo de forças que inclusive apela para armamentos cada vez mais poderosos, a “guerra de todos contra todos” etc. – o lugar onde o consenso pode ser conquistado (já que estamos em guerra).
Não há solução para o problema da violência e do crime urbano que não passe pela polícia e pela justiça criminal; não há solução, neste domínio, que possa prescindir do uso da força e do poder coercitivo legitimamente constituído, emprego esse utilizado por quem legalmente investido para tanto e exercido de modo responsável, com respeito aos limites legais, com prestação de contas à sociedade civil e com a mais resoluta recusa às formas abusivas e excessivas de seu emprego. Não é o poder coercitivo que é ilegítimo ou moralmente reprovável por sua própria natureza; o que o torna ilegítimo é ou a ilegitimidade de quem o emprega por não estar legalmente investido, ou a forma arbitrária ou violenta de que se reveste.
Em suma, entendo que há sim violência nos acontecimentos envolvendo a ocupação do prédio da Reitoria porque os atores não estão legalmente investidos do direito de recurso à violência para solução de conflitos nas relações sociais e institucionais. Mais preocupante é constatar que o apelo à violência coloca a comunidade universitária no mesmo espaço jornalístico destinado à violência urbana cotidiana. Ao invés de comparecer ao caderno de cultura, destinado à produção da obra de arte e da ciência e tecnologia, passamos agora a fazer figuração no noticiário policial. Espero que este não seja o prenúncio final de um projeto grandioso que começou com uma elite política de vanguarda, visionária e capaz de pensar um projeto de universidade décadas à frente – como foi o projeto de criação da USP – e culmine tristemente numa grande repartição pública tocada por “especialistas sem espírito, gozadores sem coração” (Weber).
No impasse da USP, não há solução que não passe pela recusa à violência, parta de onde vier. Mas, igualmente, não há solução que passe pela suspensão das leis e das decisões judiciais. Não há meia-democracia, senão seremos levados a dizer que há meia-ditadura.
Espero que a multiplicação de atores, para além da universidade – classe política, OAB e Ministério Público – possa ajudar a desfazer o nó. Está nas mãos dos alunos demonstrarem maturidade política neste delicado momento. A desocupação do prédio é o melhor sinal na disposição para negociar. Não se trata aqui de contabilizar vitórias e derrotas. Para os alunos, a mobilização da sociedade e sua encenação no espaço público, inclusive mediático, colocam em evidência suas reivindicações para além dos muros da USP. Pressionam pela discussão de temas candentes como o das relações entre o governo de estado e as universidades. Contribuem, ainda que de modo torto, para a composição da agenda política. Para as autoridades universitárias, a dura lição das ruas – a da urgência política, a do diálogo permanente, constante e mediado com todas as lideranças da universidade, sem o que episódios e acontecimentos como este tenderão a se repetir com mais e maior freqüência.
Por fim, espero que:
1 – as negociações desta segunda-feira (21/05) cheguem a bom termo, o que inclui a desocupação do prédio;
2 – seja restabelecida a liderança legítima do movimento estudantil;
3 – seja constituída uma comissão de alunos, professores e funcionários para encaminhamento das demandas, mais propriamente relacionadas com as condições de trabalho, de ensino e de pesquisa;
4 – seja constituída uma comissão, igualmente tripartite, para estudar com maior densidade as iniciativas do governo estadual para que se possa compreender seu alcance e extensão, inclusive eventuais motivações latentes, não manifestas;
5 – que se possa, mais à frente, mobilizar, ao menos a comunidade da USP, para refletir sobre um projeto universitário para as próximas décadas.

Sérgio Adorno
Professor Titular de SociologiaCoordenador do NEV-CEPID/USP

Grupo de Estudos...

Pessoal,
Complementando o belo texto de Novalis, modestamente ressucitei nosso pequeno texto sobre o Grupo de Estudos (abaixo). A idéia aqui é que cada um promova, sempre que quiser, qualquer alteração (por exemplo, suprimindo ou adicionando algum autor, ou alterando a ordem; ou ainda, polemizando com o próprio texto !).
"Grupo de estudos de Teoria Social Contemporânea





1. JUSTIFICATIVA

Choques históricos recentes sinalizaram a erupção da contemporaneidade. Uma nova configuração tecnológica, econômica, política e social emergiu e solapou as estruturas simbólicas da modernidade. Novas formas, marcadas pela fluidez e instabilidade, desafiam a Teoria Social moderna e põem em questão antigos paradigmas, como família, classes sociais, Estado, partidos políticos, sindicatos etc. E mesmo a separação analítica sujeito/objeto é relativizada, propiciando o ressurgimento das religiões em um ambiente de degradação ambiental e incerteza quanto ao futuro do planeta.
A reflexão sociológica não se encontra alheia a esses fenômenos contemporâneos: autores pouco estudados no curso de graduação vêm construindo diferentes abordagens acerca desses problemas, o que torna essencial o desprendimento das amarras burocrático-institucionais para que possamos acompanhar - e talvez desenvolver – as reflexões que estejam à altura de tais desafios.

2. EIXO TEMÁTICO

Para uma abordagem aprofundada e objetiva, torna-se necessária a definição de certos temas, que constituirão um eixo para a seleção dos autores e textos e para o desenvolvimento das reflexões.
Para tanto, ficaram definidos as seguintes indagação e eixos temáticos, intimamente relacionados entre si e que não serão, necessariamente, tratados de maneira separada:
1. a (im-)possibilidade da reconstrução da via coletiva e/ou política de contestação aos paradigmas do capitalismo tardio, bem como os caminhos que essa via poderia tomar;
2. a validade (ou não) dos conceitos de fetichismo, alienação e racionalidade, bem como as novas abordagens teóricas acerca da natureza desses fenômenos.
3. as alterações na subjetividade e na construção do “eu” em razão da emergência de uma nova configuração tecnológica, econômica e cultural.

3. METODOLOGIA

As reuniões serão realizadas quinzenalmente e privilegiarão uma atmosfera de livre debate, reflexão ampla e não metódica, bem como a soma dos conhecimentos e experiências dos participantes nas mais diversas áreas. Dessa forma, a seleção de textos e autores funcionará com eixo temático, não prejudicando a interdisciplinaridade e a livre associação com outros autores já tratados ou quaisquer outros. Não obstante, enfatize-se a necessidade de manter as linhas gerais já definidas, assim como a necessidade de todos promoverem um prévio preparo individual para as reuniões, mediante a leitura dos textos selecionados e, sempre que possível, da busca de informações gerais acerca do autor, de seu contexto e, sobretudo, de informações acerca dos diálogos e debates que o autor tenha travado.

4. AUTORES

1. Jean Baudrillard (“seminário” de apresentação do autor e das obras “A Sociedade de Consumo”, “Simulacros e Simulação” e “Sombra das Maiorias Silenciosas”);
2. Situacionismo, Guy Debbord e anarquismo cultural (texto base para consulta: “A Sociedade do Espetáculo” e “Comentários à Sociedade do Espetáculo” – recomenda-se pesquisa acerca do autor, bem como do Situacionismo e das manifestações modernas de anarquismo cultural – Zona Autônoma Temporária, intervenções urbanas etc).
3. Zygmunt Bauman (textos: “Modernidade Líquida” e “Identidade”).
4. F. Jameson e Jean-François Lyotard (textos: “Pós-Modernismo: a lógica cultural do Capitalismo tardio” e “A cultura do dinheiro”; “A Condição Pós-Moderna” )
5. C. Lasch , R. Sennett e Daniel Bell;
6. Slavoj Zizek.(textos base: “Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional” e qualquer dos demais textos do livro “Zyzek Crítico – Política e Psicanálise na Era do Multiculturalismo”; verificar ainda as obras de Zyzek: “Arriscar o impossível – conversas com Zyzek”)
7. Ernesto Laclau. (texto sugerido: “Hegemonia Y Estrategia Socialista”; ver ainda o livro que traz o debate Zyzek x Laclau x Bulter: “Contingency, Hegemony, Universality”).
8. G. Agamben (textos: “Homo Sacer” e “Estado de Exceção”)
9. Deleuze
10. C. Castoriadis
11. J.Habermas (texto: “O Discurso Filosófico da Modernidade”).
12. Niklas Luhmann"


















Possível princípio norteador

Amigos,
escrevo aqui um dos fragmentos logológicos de Novalis, o de número 3, pois acho que expressa muito bem os intentos das discussões deste blog.

"A letra é apenas um auxílio da comunicação filosófica, cuja essência própria consiste no suscitamento de uma determinada marcha de pensamento. O falante pensa produz - o ouvinte reflete - reproduz. As palavras são um meio enganoso do pré-pensar - veículo inidôneo de um estímulo determinado, específico. O genuíno mestre é um indicador de caminho. Se o aluno é de fato desejoso da verdade, é preciso apenas um aceno, para fazê-lo encontrar aquilo que procura. A exposição da filosofia consiste portanto em puros temas - em proposições iniciais - princípios. Ela é só para amigos auto-ativos da verdade. O desenvolvimento analítico do tema é só para preguiçosos ou inexercitados. Estes últimos precisam aprender a voar através dele e a manter-se numa direção determinada. (...) Genuíno filosofar-em-conjunto é portanto uma expedição em comum em direção a um mundo amado - no qual nos revezamos mutuamente no posto mais avançado, que torna necessária a tensão máxima contra o elemento resistente, no qual voamos".

Introdução à Sociedade do Espetáculo

DEBORD E A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
Nilldo Viana
Guy Debord nasceu em 1931 e suicidou-se em 1994. Apesar de ter escrito sobre sua própria vida em seu livro Panegírico, não nos deixou muitas informações sobre sua história. Alguns fatos fragmentários, tal como o seu gosto por bebidas alcóolicas, as suas relações com criminosos comuns e políticos, sua recusa da sociedade moderna. Sabemos, porém, de sua ação política através da Internacional Situacionista e de seu pensamento através de suas obras, em especial, A Sociedade do Espetáculo. Aqui nos interessa sua análise da sociedade moderna, do que ele denomina sociedade do espetáculo. Além de alguns textos menos importantes, a sua visão da sociedade moderna está expressa de forma mais acabada em A Sociedade do Espetáculo. Está é também uma das principais obras que expressam as concepções da Internacional Situacionista, organização contestária da qual Debord foi um dos mais destacados representantes e que existiu de 1957 a 1972. Debord busca na vida cotidiana a base da contestação social de nossa época. O espetáculo produzido pela sociedade capitalista fundamentada na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado abre caminho para sua teoria crítica da sociedade moderna, da qual trataremos no presente ensaio. A Sociedade Espetacular Marx afirmou que, à primeira vista, a sociedade capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” (1). Parafraseando Marx, Debord afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1997, p. 13). O que é o espetáculo? Debord nos apresenta inúmeras características do espetáculo. Ele “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”; é também uma cosmovisão; resultado e projeto do capitalismo; o “modelo atual da vida dominante na sociedade”; a “afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre desta escolha; “a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente”; “a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”; o sentido da prática total; “a principal produção da sociedade atual”; herdeiro da filosofia baseada nas categorias do ver; “sonho mau”; etc., etc. Richard Gombim esclarece com mais precisão o significado do espetáculo: “a degradação e a decomposição da vida cotidiana correspondem à transformação do capitalismo moderno. Nas sociedades de produção do século XIX (cuja racionalidade era a acumulação de capital), a mercadoria tinha-se tornado um fetiche na medida em que era considerada como figurando um produto (objeto), e não uma relação social. Nas sociedades modernas, em que o consumo é a ultima ratio, todas as relações humanas têm sido impregnadas da racionalidade do intercâmbio mercantil. É o motivo por que o vivido se afastou ainda mais numa representação: tudo aí é representação. É a este fenômeno que os situacionistas chamam espetáculo (a concepção de Lefebvre é mais neutra: o espetáculo moderno, para ele, deve-se simplesmente à atitude contemplativa dos seus participantes). O espetáculo instaura-se quando a mercadoria vem ocupar totalmente a vida social. É assim que, numa economia mercantil-espetacular, à produção alienada vem juntar-se o consumo alienado. O pária moderno, o proletário de Marx, não é já tanto o produtor separado do seu produto como o consumidor. O valor de troca das mercadorias acabou por dirigir o seu uso. O consumidor tornou-se consumidor de ilusões”(Gombim, 1972, p. 82). A sociedade moderna passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência. Ele domina os homens a partir do momento em que a economia desenvolveu-se por si mesma, sendo o reflexo fiel da produção das coisas e a objetivação infiel dos produtores. Esta temática de Debord vai de encontro com as teorias da sociedade de consumo. Baudrillard, por exemplo, irá tratar do mundo dos objetos e da esfera do consumo. Lefebvre também não deixou de lado o problema da sociedade de consumo, qualificada por ele de “sociedade burocrática de consumo dirigido”. Erich Fromm irá analisar a passagem da valorização do ser para o ter. Arendt fez considerações sobre a sociedade de consumidores e assim por diante (1). Mas a sociedade de consumo para Debord é a sociedade do espetáculo, da reificação, para utilizar expressão lukacsiana. Porém, isto difere sua abordagem das demais, pois aqui a passagem do ser para o ter é complementada pela passagem para o parecer. Nesta sociedade, há a produção circular do isolamento (através do automóvel, da televisão, etc.). Desta forma, a temática da separação e do isolamento assumem um papel central na concepção de Debord. O consumo e a imagem (representação reificada) ocupam o lugar da ação direta, do diálogo. Provocam o isolamento e a separação. Debord retoma a discussão em torno do fetichismo da mercadoria. A mercadoria surge como força que ocupa a vida social e constitui a economia política, “ciência dominante e ciência da dominação”. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social (...). A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura” (Debord, 1997, p. 31). A abundância da produção de mercadorias produz a preocupação da classe dominante com o proletário enquanto consumidor, criando o “humanismo da mercadoria”, encarregado do “lazer” do trabalhador. “Assim, ‘a negação total do homem’ assumiu a totalidade da existência humana” (Debord, p. 32). Neste contexto, o consumo deve aumentar sempre, mas este aumento só é possível pelo motivo de que contem em si uma privação, “a privação tornada mais rica”. O consumismo derivado daí leva a uma “sobrevivência ampliada”, produzindo também a produção de pseudo-necessidades para garantir esse processo de expansão da produção e do consumo. Na sociedade em que domina o espetáculo, a oposição a ela também é envolvida por ele. As lutas “espetaculares” são ao mesmo tempo falsas e reais. São falsas por não colocarem em questão a sociedade do espetáculo e por serem, elas mesmas, espetaculares. São reais pelo motivo de que expressam lutas reais entre classes ou frações de classes. Segundo Debord, A resistência das regiões subdesenvolvidas não difere muito desta caso. Tal como ele colocou: “a sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde a base material ainda está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudo-bens a desejar, também oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução” (p. 39). A sociedade do espetáculo também transforma a revolta em rebelião puramente espetacular, através da transformação da insatisfação em mercadoria. O mesmo ocorre, com algumas diferenças de pormenor, no capitalismo de estado (2). Segundo Debord, “a satisfação denuncia-se como impostura no momento em que se desloca, em que segue a mudança dos produtos e a das condições gerais de produção. Aquilo que, com o mais perfeito descaramento, afirmou sua própria excelência definitiva transforma-se no espetáculo difuso e também no espetáculo concentrado. É apenas o sistema que tem que continuar: Stálin tanto quanto a mercadoria fora de moda são denunciados por aqueles mesmos que os impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior” (Debord, p. 47). Neste contexto, Debord analisa o marxismo a partir da obra de Marx. Coloca em evidência o ponto de vista revolucionário da teoria de Marx e sua transformação em ideologia, tanto pela social-democracia quanto pelo bolchevismo. Debord faz uma severa crítica a diversas correntes políticas, tais como o anarquismo, a social-democracia, o kautskismo, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo. Para ele, a social-democracia e o bolchevismo inauguram a ordem de coisas que expressa o espetáculo moderno: “a representação operária opôs-se radicalmente à classe” (Debord, p. 68). Qual é a alternativa para a sociedade do espetáculo? Como se pode trilhar um caminho alternativo que não passe pela social-democracia, pelo bolchevismo ou pelo anarquismo? Debord retoma a resposta dada já na década de vinte pelos chamados “comunistas conselhistas” (Korsch, Pannekoek, Mattick, Rühle, etc.) (3): os conselhos operários são a forma de emancipação proletária. Tais conselhos rompem com a idéia de representação, tanto parlamentar (social-democracia) quanto a vanguardista-partidária (bolchevismo). Segundo Debord, “a organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica formulada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada” (p. 85). Assim, ele propõe os conselhos operários como alternativa global para a alienação global: “quando a realização sempre mais avançada da alienação capitalista em todos os níveis, ao tornar sempre mais difícil aos trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade de sua miséria, ou nada, a organização revolucionária deve ter aprendido que não pode combater a alienação sob formas alienadas” (Debord, p.85). Aqui notamos um aspecto do situacionismo e do pensamento de Debord que continua extrema e ortodoxamente marxista: “vemos o que esta concepção tem de radical; o corte que ela opera com todo o movimento de esquerda deste meio século confere-lhe um tom milenarista, herético. Sobre um ponto, entretanto, ela parece dar ainda prova de ortodoxia: o sujeito revolucionário, o portador da revolução, o emancipador, permanece, para a Internacional Situacionista, o proletariado” (Gombin, 1972, p. 86). Enfim, estas são as principais colocações de Debord sobre a sociedade do espetáculo e de suas características.
Observações Finais
A obra de Debord representa uma determinada concepção de sociedade moderna. Trata-se de uma concepção que parte de uma perspectiva crítica e de oposição a esta sociedade. Debord se filia ao chamado esquerdismo, sendo um representante da Internacional Situacionista. Porém, ele faz sua crítica da sociedade moderna de forma diferente do que a esquerda tradicional costuma fazer. Os conceitos mais importantes para a esquerda tradicional são os de exploração, imperialismo, etc., e o locus privilegiado de debate é a esfera da economia e da política. Isto será criticado de forma intensa pelos representantes da Internacional Situacionista e por Debord em particular. A separação entre economia e política e entre estas “esferas” da realidade e as demais. A própria separação é questionada como um produto da ideologia espetacular. A realidade foi separada mas não existe tal separação na realidade. Debord focaliza sua crítica à sociedade moderna concebendo-a como sociedade do espetáculo e esta se caracteriza pela generalização do fetichismo da mercadoria que invade a vida cotidiana. A crítica da vida cotidiana torna-se o fundamento da crítica à sociedade moderna. O espaço (e juntamente com ele o urbanismo, a arquitetura, etc.), o tempo, o lazer, a cultura, a arte, a comunicação e tudo o mais é perpassado por esta alienação generalizada da sociedade contemporânea. Tendo em vista que a alienação é total, então Debord propõe a contestação total do capitalismo moderno (Debord, 1961). Segundo Gombin, “esta consiste numa multidão de atos espontâneos tendentes a modificar radicalmente o espaço-tempo atribuído pela classe dominante. A nova revolução não poderia, pois, aspirar à simples tomada de poder, a uma renovação da equipe ou da classe dirigente: é o próprio poder que é necessário suprimir para realizar a arte, que é o objetivo último. A realização da poesia, que será também a sua ultrapassagem, exige, evidentemente, um reconhecimento dos seus próprios desejos (asfixiados pela sociedade do espetáculo e rebaixados a pseudo-necessidades): a palavra livre, a comunicação verdadeira (e não mais unilateral e manipulada), a recusa do trabalho produtivo como trabalho produtivo, a recusa igualmente da hierarquia, de toda a autoridade e de toda especialização. O homem libertado não será mais o homo faber, mas o artista, quer dizer, o criador das suas próprias obras. A revolução, será, portanto, um ato de afirmação da subjetividade de cada um no terreno da cultura, que é o terreno mais vulnerável da civilização moderna. Porque é a arte que revela em primeiro lugar o estado de decomposição dos valores: o que Marx e Engels não viram ou não quiseram ver; ora, a cultura, ao mesmo tempo que reflete as forças dominantes da sua época, é também e já o projeto de sua ultrapassagem. Os grandes artistas foram também grandes profetas revolucionários: Latréamont, Rimbaud, que ultrapassaram a sua época na e pela sua obra. Trata-se de retomar esse fio que, depois, se perdeu (pois que a obra de arte moderna se tornou uma mercadoria como qualquer outra). Trata-se de recriar uma linguagem de comunicação na comunidade do diálogo: a contestação será também a procura dessa linguagem, é o motivo por que será antes de mais uma revolução cultural. O dadaísmo e o surrealismo começaram a destruir a linguagem (alienada) antiga: mas não souberam encontrar um novo estilo de vida. O seu fracasso explica-se pela imobilização do assalto revolucionário desse primeiro quarto de século. (...). Parafraseando os esquerdistas, poderíamos dizer que os homens serão felizes no dia em que forem todos artistas” (Gombin, 1972, p. 92-94). Desta forma, a modernidade é a sociedade do espetáculo. O reino do fetichismo e do consumo. Um mundo fragmentado, separado. A modernidade, tal como Lefebvre já havia colocado, é a última estratégia da dominação burguesa. Neste sentido, para Debord, a sociedade moderna é a negação da humanidade e somente a recuperação desta poderá promover a negação da sociedade moderna. Enfim, trata-se de uma concepção severa e verdadeira sobre a sociedade moderna e a modernidade. Uma acusação do seu caráter alienante, fetichista, espetacular.
Bibliografia
ARENDT, Hanna. A Condição Humana. 8a edição, Rio de Janeiro, Forense, 1997.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
DEBORD, Guy. Considerações sobre a Sociedade do Espetáculo. In: A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
DEBORD, Guy. Panegírico. Lisboa, Antígona, 1995.
DEBORD, Guy. Perspectives de Modification Consciente de la vie Quotidiene. In: Internacionale Situationniste, nº 6, Agosto de 1961.
FROMM, Erich. Ter ou Ser? 10a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
GOMBIN, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972. LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo, Ática, 1990.
LÊNIN, W. O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. São Paulo, Global.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2a edição, Rio de Janeiro, Elfos, 1989.
MARX, Karl. O Capital. 3a edição, vol. 1, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. O Capitalismo de Estado da URSS. in: Revista Ruptura.
VIANA, Nildo. A Utopia Concreta Contra o Realismo Político. in: Revista Ruptura.
Notas
(1) O processo de mercantilização das relações sociais é o elemento fundamental para explicar a sociedade de consumo e está intimamente ligado com a questão da composição orgânica do capital. Sobre a mercantilização das relações sociais, cf. Viana, Nildo. A Utopia Concreta Contra o Realismo Político. in: Revista Ruptura.
(2) Debord é um dos teóricos que defendem que o regime da antiga União Soviética, Leste Europeu, China, Albânia, etc., era um capitalismo de estado, não tendo nada a ver com uma sociedade autenticamente socialista. Os primeiros defensores desta tese foram os esquerdistas russos de oposição ao bolchevismo e os esquerdistas alemães, holandeses e italianos, duramente criticados por Lênin, em O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo.
(3) Os comunistas conselhistas também foram chamados de “comunistas de esquerda”, de “comunistas de princípios”, de “esquerdistas” e de “comunistas internacionalistas”. Fizeram feroz oposição ao regime soviético e ao leninismo, tanto do ponto de vista filosófico quanto político e econômico (sobre tal corrente e sua influência sobre a Internacional Situacionista, cf. o livro citado de Gombim).
Fonte: Núcleo de Pesquisa Marxista (http://www.npm.hpg.ig.com.br/ ).