terça-feira, 19 de agosto de 2008

As três crises



Cada vez mais intensos, os solavancos das finanças mundiais podem provocar crise sistêmica, e depressão semelhante à de 1929. A esta derrocada estão entrelaçadas a escassez de alimentos e da alta dos combustíveis. Vivemos as conseqüências de 25 anos de neoliberalismo. Mas quando diremos basta?


Por: Ignacio Ramonet

Nunca havia acontecido antes. Pela primeira vez na história da economia moderna, três crises de grande amplitude – financeira, energética e alimentar – estão em conjunção, confluindo e combinando-se. Cada uma delas interage sobre as demais, agravando, de modo exponencial, a deterioração da economia real.

Por mais que as autoridades se esforcem em minimizar a gravidade do momento, o certo é que nos encontramos diante de um sismo econômico de magnitude inédita, cujos efeitos sociais, que mal começaram a se fazer sentir, explodirão nos próximos meses com toda a brutalidade. A numerologia não é uma ciência exata e o pior não costuma ser previsto, mas 2009 pode muito bem se parecer com o nefasto ano de 1929...

Como temíamos, a crise financeira continua aprofundando-se. Aos descalabros de prestigiosos bancos norte-americanos, como o Bear Stearns, o Merrill lynch e o gigante Citigroup, somou-se o recente desastre do lehman Brothers, quarto maior banco de negócios, que anunciou, em 9 de junho, um prejuízo trimestral de 2,8 bilhões de dólares. Como foi a primeira perda desde o lançamento de suas ações na Bolsa, em 1994, o resultado teve efeito de um terremoto financeiro, nos já violentamente traumatizados EUA.

A cada dia difundem-se notícias sobre novas quebras. Até agora, as entidades mais afetadas admitem prejuízos de quase 330 bilhões de dólares, e o Fundo Monetário Internacional estima que, para escapar da catástrofe, o sistema necessitará de cerca de 950 bilhões de dólares (o equivalente à metade do PIB do Brasil).

A crise começou nos Estados unidos, em agosto de 2007, com a desconfiança nas hipotecas de má qualidade (subprime) e propagou-se por todo o mundo. Sua capacidade de se transformar e se espraiar por meio da contaminação de complexos mecanismos financeiros faz com que se assemelhe a uma epidemia fulminante, impossível de controlar. As instituições bancárias já não emprestam dinheiro entre si. Todas desconfiam da saúde financeira de suas rivais.

Ao fugir dos mercados de ações e imóveis, os especuladores fazem apostas gigantescas em contratos para entrega futura de petróleo e alimentos. É a financeirização generalizada da produção capitalista
Apesar das injeções maciças de liquidez efetuadas pelos grandes bancos centrais, nunca se vira uma seca tão severa de dinheiro nos mercados. E agora o maior temor de alguns é uma crise sistêmica — ou seja, que o conjunto do sistema econômico mundial entre em colapso.

Da esfera financeira, o problema passou para o conjunto da atividade econômica. De um momento para outro, as economias dos países desenvolvidos sofreram um desaquecimento. A Europa encontra-se em franca desaceleração e os Estados Unidos estão à beira da recessão.

O setor imobiliário é onde melhor aparece a dureza desse ajuste. Durante o primeiro trimestre de 2008, o número de vendas de moradias na Espanha caiu 29%! Cerca de dois milhões de apartamentos e casas estão sem compradores. O preço das propriedades continua a desmoronar. O aumento dos juros hipotecários e os temores de uma recessão lançaram o setor numa espiral infernal, com ferozes efeitos em todas as frentes da imensa indústria da construção. Todas as empresas desses setores estão agora no olho do furacão. E assistem, impotentes, à destruição de dezenas de milhares de empregos.

Da crise financeira passamos à crise social. E políticas autoritárias voltaram a surgir. O Parlamento Europeu aprovou, em 18 de junho passado, a infame “diretiva retorno” [1]. Imediatamente, as autoridades espanholas declararam sua disposição em favorecer a saída da Espanha de um milhão de trabalhadores estrangeiros...

Em meio a essa situação de espanto, ocorre o terceiro choque do petróleo, com o preço do barril em torno de US$ 140. Um aumento irracional (há dez anos o barril custava menos de US$ 10) devido não apenas a uma demanda despropositada mas, especialmente, à ação de muitos especuladores, que apostam no aumento contínuo de um combustível em vias de extinção. Retirando-se da bolha imobiliária, que desinfla, os investidores alocam somas colossais em contratos para entrega futura de petróleo, o que pode levar o preço do barril a algo em torno de US$ 200. Ou seja: está ocorrendo uma “financeirizacão” do petróleo, com conseqüências como formidáveis aumentos de preços da gasolina, em muitos países, e a ira de pescadores, caminhoneiros, agricultores, taxistas e todos os profissionais mais afetados. Em muitos casos, eles exigem de seus governos ajudas, subsídios ou reduções dos impostos, com grandes manifestações e enfrentamentos.

Como se todo esse contexto não fosse bastante sombrio, a crise alimentar agravou-se repentinamente e chega para nos lembrar que o espectro da fome continua ameaçando quase um bilhão de pessoas. Em cerca de 40 países, a carência de alimentos provocou levantes e revoltas populares. A reunião de cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), foi incapaz, em 5 de junho, em Roma, de chegar a um consenso para retomar a produção de alimentos no mundo. Aqui também os especuladores, fugindo do desastre financeiro, têm parte de responsabilidade — porque apostam num preço elevado das futuras colheitas. Até mesmo a agricultura está se “financeirizando”.

Este é o saldo deplorável de 25 anos de neoliberalismo: três veneosas crises entrelaçadas. Já está na hora de os cidadãos gritarem: “Basta!”.




[1] "Europa se blinda ante los inmigrantes”, Sami Naïr, El País, Madri, 18 de junho de 2008.


Fonte: Le Monde Diplomatique (http://diplo.uol.com.br/2008-08,a2516)

Geni e o Zepelim

Uma vez criei aqui um marcador "vidas revolucionárias". Queria poder usar o mesmo marcador para vidas ficcionais; trata-se de Geni.
Acredito que isso tem a ver com o que conversamos ontem: Geni é mais inteira do que eu, mais feliz e mais rica...


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Geni e o Zepelim



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir


Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni


Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni


Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

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Comentários de jholland - em 19/08:

Permita-me fazer alguns comentários no próprio corpo da postagem, correndo o risco, talvez, de ser redundante.
Para mim, o tema central da discussão de ontem - o próprio ponto de partida para o Grupo de Estudos - é a imobilidade: como caracterizá-la, qual o seu alcance, como superá-la ?
S. Zizek tem um texto em que dialoga com a famosa frase cristã: "Perdoai-os Senhor, pois eles não sabem o que fazem". Para Zizek, não se trata mais de refletir sobre a ignorância - que nos leva à imobilidade - mas saber porque, sabendo de tudo, continuamos imóveis.
Isso me leva a dar o passo seguinte: creio que a imobilidade resulta de uma particularidade da Filosofia Ocidental - pois, tal como voce observou ontem, talvez todo o Ocidente esteja alicerçado em um grande equívoco. Qual é esse equívoco? A renúncia a uma cosmologia, associada à alienação de si mesmo.
Explico.
Se antes um certo equilíbrio resultava de uma cosmologia religiosa, o Iluminismo tratou de desmontar o edifício metafísico que sustentava essa cosmologia. (O processo, no entanto, foi lento, durou quase 2 séculos). A partir de meados do século XIX até meados do século XX, tivemos o período áureo da Política. Nesse período, a Utopia socialista conseguiu - bem ou mal - aproveitar os escombros dessa metafísica para mobilizar corações e mentes, tentou fundar uma espécie de cosmologia sem Deus (o sistema hegeliano-marxista é um exemplo disso, mas não o único). Entretanto, o que sobreveio a esse período - o fim da Política - não é propriamente uma ruptura, mas talvez uma continuidade desse movimento iniciado pelo Iluminismo. Em outras palavras, a filosofia ocidental, a postura do homem ocidental moderno, levou-o à crítica niilista, cujo resultante é a imobilidade.
Qual seria o cerne dessa postura ? Como disse acima, ela tem a ver com a conceitualização do próprio mundo, que elimina a possibilidade de nos relacionarmos e vermos a realidade como ela é. É o império do conceito e do simulacro. Volto, então a repetir o que já disse em outra ocasião: construímos uma auto-imagem, uma persona, e, através dela, pensamos ver o mundo, quando na verdade estamos apenas olhando no espelho. Essa é a razão pela qual, penso, a maioria esmagadora do mundo não se importa, assenta-se confortavelmente no sofá e espera apenas se distrair da melhor forma possível até que a morte lhes sobrevenha. Não há um sentido real de vida e do Outro.
Essa é a raiz da imobilidade.
Ainda que alcançemos postos importantes em uma burocracia qualquer, na esperança de "fazer o mínimo pelo outro", o que provavelmente ocorrerá é que, no processo cotidiano, seremos engolfados pelos jogos de poder, pelos jogos do ego, pelos jogos de linguagem, pelas seduções do consumo, do amor ou do sexo e, principalmente, pela premente necessidade de uto-preservação que essa auto-imagem nos impõe e que nos escraviza até quando sonhamos.
Não somos aquilo que pensamos ser; não somos a imagem que fazemos de nós mesmos e que tão ciosamente tentamos preservar. Para termos uma pequena idéia do que somos, devemos começar a observar o que fazemos. Isso nos dará apenas uma pequena avaliação, uma primeira aproximação, porém ela, por si mesma, já nos revela o quão distantes somos em relação àquilo que pensamos que somos.
Creio, então, que a questão volta a ser a ignorância, porém num registro mais profundo. Pois somos ignorantes de nós mesmos e, portanto, do Outro e do próprio Mundo. O que vemos - assim, como a definição de nossos prórpios problemas e prioridades - não advém de um conhecimento genuíno sobre nós e o Outro, mas apenas das interações com nosso espelho quebrado, nossa pobre auto-imagem.
Sobre esse assunto, ver por exemplo, a postagem no Metamorficus: http://metamorficus.blogspot.com/2008/08/conhece-te-ti-mesmo.html