quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A POTÊNCIA DE NÃO: LINGUAGEM E POLÍTICA EM AGAMBEN



Por: Peter Pál Pelbart





Uma constatação trivial é evocada com insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Toni Negri ou mesmo Maurice Blanchot. A saber, de que vivemos hoje uma crise do ‘comum’.
As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a ‘vida’ supostamente ‘comum’, ou, mais precisamente, para defender uma forma-de-vida dita ‘comum’.
No entanto, sabemos bem que esta ‘vida’ ou esta ‘forma-de-vida’ não é realmente ‘comum’, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro. Se de fato há hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do ‘comum’ começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro.
Num outro contexto, Gilles Deleuze lembra que a partir sobretudo da segunda guerra mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são, meros clichês, os clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles e abrir-se para outras dimensões do comum.

Ora, hoje, tanto a percepção do sequestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer de maneira imanente, dado o contexto produtivo atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público ou como política, hoje o comum pode ser pensado como o espaço produtivo por excelência.
O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois no seu núcleo propriamente econômico, a prevalência do ‘comum’. O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação, e por conseguinte a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes.
Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente autoreferido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela expropriação do comum, privatização, cristalização do comum, empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo biopolítico não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.

Livre uso

A partir desse panorama por demais geral, caberia acompanhar o modo em que Agamben ao mesmo tempo compartilha e bifurca dessa abordagem, imprimindo aí a sua marca inconfundível. Partamos de Heráclito, que poderia servir de epígrafe a esse tema: Para os despertos um mundo único e comum é, mas aos que estão no leito cada um se revira para o seu próprio. Ora, o Comum para Heráclito era o Logos. A expropriação do Comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é sequestrada por um regime democrático-espetacular, e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se enraiza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação (1), atingimos um ponto extremo do niilismo. Mas a essa avaliação lapidar, que mais adiante tentaremos aprofundar, Agamben parece acrescentar um contraponto surpreendente. Se na sociedade do espetáculo nossa natureza linguística avança em direção a nós como que de costas, esse mesmo espetáculo carrega uma possibilidade positiva, a ser revirada contra ele, a saber, a possibilidade mesma desse bem comum.
"A época que nós vivemos é com efeito também a primeira onde pela primeira vez torna-se possível para os homens fazer a experiência de sua essência linguística mesma – não de tal ou qual conteúdo de linguagem, de tal ou qual proposição verdadeira, mas do fato mesmo que se fala." (2)
Ora, do que se trata, mais precisamente? Do acontecimento de linguagem, dessa experiência que concerne a matéria mesma do pensamento, a potência do pensamento, o intelecto, a liberdade. Para que tal possibilidade apareça em toda sua amplitude, não cabe pensar em termos dialéticos de uma reapropriação disso que foi expropriado, pois a linguagem não pode ser reapropriada, como se fosse um objeto roubado a ser reavido, é preciso pensar esse gesto em outros termos, a saber, a possibilidade e as modalidades de um livre uso da linguagem. Não subordiná-la a qualquer fim mais elevado, mesmo que seja a comunicação, como querem algumas filosofias recentes, não fazer dela um meio para uma finalidade outra – mas fazer a experiência política do ser-na-linguagem como "medialidade pura", o "ser-num-meio" como condição genérica irredutível dos homens. Trata-se de tornar visível esse meio enquanto tal, como um campo de ação e de pensamento.
O Comum seria precisamente esse "algo" inapropriável, que não pode ser pensado em termos de próprio ou impróprio, de apropriação ou expropriação, mas somente em termos de uso livre, de modo que o problema político essencial, segundo Agamben, se tornaria: Como fazer uso de um Comum? É com estas palavras que ele termina seu livro Moyens sans fin:
"Apenas se conseguirem articular o lugar, os modos e os sentidos dessa experiência do acontecimento da linguagem como uso livre do Comum e como esfera dos puros meios, as novas categorias do pensamento político - quer se trate da "comunidade inoperante", de "comparution", de "igualdade", de "fidelidade", de "intelectualidade de massa", de "povo por vir, de "singularidade qualquer" – poderão dar uma forma à matéria política que está diante de nós" (3).

Ora, há algumas indicações esparsas daquilo que Agamben entende por uso livre da língua, e mesmo de uma língua pura, como dizia Benjamin, irredutível a uma gramática e a uma língua particular, ou como Wittgenstein, quando se refere à experiência da pura existência da linguagem. Por vezes tem-se a impressão que Agamben tenta pensar a linguagem desvinculando-a de sua associação histórica com o Estado, assim como se trata de desvincular a vida do direito.
Como diz ele numa entrevista, onde resume parte da direção do seu pensamento nos últimos anos: "O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito.
Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez ‘política’ seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas. Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de ‘profanação’, que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem”(4).

Infância

É possível que se deva ler sua reflexão sobre a linguagem nesse mesmo diapasão, e até de sua obra como um todo, na direção desse uso livre que se explicita agora. No prefácio à edição francesa de Enfance et Histoire, ele lembra: "Nos meus livros publicados, assim como naqueles que eu não escrevi, vem à luz uma única reflexão obstinada: o que significa "há linguagem", o que significa "eu falo"?" E Agamben se refere então à pura exterioridade da linguagem, esse "desdobramento da linguagem em seu ser bruto" que Foucault abordava quando aludia à contribuição de Blanchot a um pensamento do fora. Ele insiste em que todo autor num certo momento de seu trajeto se depara com esse experimentum, que não consiste em recuar para aquela esfera do indizível em que as palavras nos faltam ou se quebram em nossos lábios, como diria Heidegger, porém aponta numa outra direção, a da infância (5).
A infância não é algo que se deveria buscar antes da linguagem e independente dela, numa realidade psíquica primeva da qual a linguagem seria a expressão. É inconcebível um sujeito pré-linguístico, visto ser a linguagem o lugar incontornável de constituição do sujeito. Se a infância não é um paraíso do qual teríamos sido definitivamente expulsos ao nos tornarmos falantes, é porque a infância coexiste com a linguagem, ela se constitui através de um de seus movimentos que a expulsa para produzir a cada vez o homem enquanto sujeito (6).
Um pouco como a raiz indo-européia, que serve como indicativo de origem mas que é presente e continuamente operante, língua nunca falada mas não menos real, e que garante a inteligibilidade da história linguística. Não se trata de uma origem localizável num segmento anterior do tempo, mas algo que não cessa de advir. É o que Agamben chama de história transcendental, limite e estrutura a priori de todo conhecimento histórico. Ora, o autor parece dar um estatuto similar à infância, que não deveria ser reduzida a um período localizado no tempo cronológico, nem a um estado psicossomático independente da linguagem, mas a uma dimensão-limite interior à linguagem. Aliás, só se pode falar de experiência, no homem, a partir dessa distância, interior à linguagem, entre ela e a infância. Caso contrário, a linguagem seria o lugar da totalidade e da verdade, porém não o lugar da experiência. Por exemplo, os animais não são desprovidos de linguagem, ao contrário, eles coincidem com ela, estão nela absolutamente, sem interrupção nem fratura. Eles porém não tem acesso a ela. O homem, ao contrário, que não é "o animal dotado de lingagem", mas antes o animal que dela está privado (7), enquanto tem uma infância, enquanto não é desde sempre falante, através da infância introduz justamente nela a discontinuidade e a diferença entre língua e discurso. "É a infância, é a experiência transcendental da diferença entre língua e fala que, pela primeira vez, abre à história seu espaço próprio" (8).

O alcance dessa tese, enunciada em 1979, não é totalmente claro, à primeira vista, embora ressoe com as conclusões do ensaio sobre A Linguagem e a Morte, de 1982. No texto publicado alguns anos depois, em 1985, Agamben parece colher mais alguns frutos dessa maturação.
Ao relatar a obstinada meditação de Damasceno, no século VI, Agamben revela sua conclusão:
"Damasceno levantou um instante a mão e olhou a tabuleta em que ia anotando seus pensamentos. De repente, lembrou-se da passagem do livro sobre a alma em que o filósofo compara o intelecto em potência a uma tabuleta sobre a qual não há nada escrito. Como não havia pensado nisso antes? Era isso que tinha tentado agarrar, inutilmente, dia após dia, isto era o que sem descanso tinha perseguido por trás da cintilância daquela auréola indiscernível, ofuscante. O limite último que o pensamento pode alcançar não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, por mais livre que esteja de toda qualidade, porém a absoluta potência, a pura potência da representação mesma: a tabuleta para escrever. Aquilo que até então tinha pensado como o Uno, como o absolutamente Outro do pensamento era em contrapartida só a matéria, só a potência do pensamento. E todo o extenso volume que a mão do copista ia preenchendo de caracteres, não era mais do que a tentativa de representar aquela tábua perfeitamente rasa, sobre a qual ainda não tinha sido escrito nada. Por isso não conseguia concluir sua obra: aquilo que não podia cessar de escrever-se era a imagem daquilo que nunca cessava de não escrever-se" (9).
Talvez pudessemos associar esse relato com o problema da infância da linguagem, ao mesmo tempo um vazio e uma potência, interior à própria linguagem, sua condição de possibilidade, transcendental...
Numa outra passagem, intitulada justamente infância, o autor refere-se à curiosa espécie de salamandra albina, com seu aspecto infantil, quase fetal. Esse tenaz infantilismo, acrescenta o autor, não indica uma regressão na evolução, nem uma derrota da vida, mas uma hipótese de que o próprio homem teria descendido não de indivíduos adultos, porém de crias de um primata com prematura capacidade de reprodução – o que explicaria certos traços que são transitórios, nos outros animais, porém que no homem se tornaram definitivos. Com isto Agamben trata de imaginar um infante tão pouco especializado e tão "totipotente, a ponto de declinar qualquer destino específico e qualquer ambiente determinado, para ater-se unicamente a sua própria imaturidade e a sua própria privação" (10). Diferentemente dos animais submetidos à Lei do código genético, o infante em questão estaria atento às possibilidades somáticas arbitrárias e não codificadas, como que expulso de si e aberto a um mundo... "E sua voz, ainda livre de toda prescrição genética, não tendo ele absolutamente nada para dizer nem expressar, poderia, único animal, nomear em sua língua, como Adão, as coisas. No nome o homem se liga à infância, se ancora para sempre numa fenda que transcende todo destino específico e toda vocação genética" (11).
Reencontramos a língua adâmica, o poder de nomear como sendo o mais próprio da infância. O que significa, porém, a nomeação? Agamben recorda que os antigos distinguiam com cuidado o plano do nome (onoma) e o do discurso (logos). Antístenes, ainda antes de Platão, havia insistido pela primeira vez que das substâncias simples e primeiras não pode haver logos, apenas nome. Nesse sentido, o indizível não é de modo algum aquilo que não pode ser demonstrado na linguagem, mas aquilo que na linguagem pode apenas ser nomeado. Dizível, em contrapartida, é aquilo de que se pode falar num discurso definitório, embora enventualmente lhe falte um nome próprio. Entre o dizível e o indizível, a fronteira se dá no interior da linguagem, e não fora dela (12).
Esta dimensão de desconhecido que o nome preserva e resguarda em nada fere a potência da linguagem, e da relação mesma com o desconhecido. Como o diz Agamben, sobre o amor: "Viver na intimidade de um ser estranho, e não para aproximá-lo, para fazê-lo conhecido, porém para mantê-lo estranho, distante, e mais: inaparente – tão inaparente que seu nome o contenha inteiro." (13)

A vocação infantil da linguagem significa essa "inlatência", que não deveria ser reduzida a valores imortais ou codificados, fechados em qualquer tradição específica. Como diz Agamben, em algum lugar de nós o garoto aturdido neotênico (14) prossegue seu jogo real. É através desse jogo que os inúmeros povos e línguas da terra buscam manter aberta essa inesgotável inlatência, ao mesmo tempo que a diferem. Pois cada línga e povo, ao mesmo tempo, tentam afirmar o inafirmável, tornar a eterna criança, adulta.
"Só no dia em que a originária inlatência infantil fosse verdadeiramente, vertiginosamente assumida como tal, o tempo alcançado e a criança Aion despertasse de seu jogo e para o seu jogo, então os homens poderiam ao final construir uma história e uma língua universais não diferíveis, e deter seu vagar nas tradições. Este autêntico reevocar o soma infantil da humanidade se chama: o pensamento, isto é, a política" (15).

Contingência e possibilidade

Ora, talvez seja o momento de tentar juntar esses fios soltos – da linguagem, da infância, do pensamento, da política, para ao final retomar o tema na perspectiva biopolítica. Talvez nos ajude, primeiramente, a figura de Bartleby (V/ Nota do Blog, ao final deste texto).
Já no Idea de la prosa Agamben se refere ao limbo, onde estão também as crianças não batizadas, mortas unicamente com o pecado original, ao lado dos dementes e os pagãos justos. O limbo impõe uma pena privativa, não aflitiva – ali se carece da visão de Deus, mas eles sequer sabem dessa privação. É, diz Agamben, essa a natureza secreta de Melville, a mais antitrágica das figuras de Melville, embora aos olhos humanos não exista destino mais desolador do que o dele. É aí, em todo caso, que reside a raiz de seu "preferiria não". É uma espécie de inocência que desbanca a lógica humana e divina, e que equivale a um suplemento de potência. Ao retomar de maneira mais detida esse personagem, alguns anos depois, Agamben insiste em pensar a potência não apenas em relação ao ato que a realiza e a esgota, necessariamente, mas também como potência de não, potência de não (fazer ou pensar alguma coisa), pela qual se afirma a tabuleta em branco não apenas como estágio prévio à escrita, mas como sua descoberta última. Como no entanto pensar uma potência de não pensar (16)?
Se a tradição aristotélica nos habituou a fazer com que o pensamento não se subordine ao seu objeto (que também pode ser vil), mas pense a sua pura potência, e portanto seja pensamento do pensamento, fica resguardada a potência de não. Mas como poderia a teologia endossar tal impotência? O ato de criação poderia ser a descida de Deus a esse abismo da potência e da impotência? Segundo certa tradição, o homem alcança sua capacidade de criar, de tornar-se poeta, justamente quando ele também faz essa experiência da impotência.
Ora, Bartleby é a figura dessa reivindicação do poder não, desse abismo da possibilidade. Através de sua fórmula, ele instaura, como diria Deleuze, uma zona de indiscernabilidade entre a potência de ser (ou de fazer) e a potência de não ser (ou de não fazer), suspensão, epoché, deslocamento da linguagem do dizer para o puro anúncio, com o que Bartleby se torna um mensageiro, um anjo. Nessa zona, já não vale o princípio da razão suficiente enunciado por Leibniz ("há uma razão pela qual algo existe em vez de não existir"), já que é justamente o em vez de, o plutôt, o "de preferência" que está posto em xeque e evacuado, emancipando, diz Agamben, a potência tanto da razão como da vontade (17).
Talvez a experiência dessa zona de indiscernabilidade entre o ser e o não ser, nas antípodas do príncipe da Dinamarca, seja a marca de nosso contemporâneo niilismo, que já não consegue apenas corroborar a positividade do ser de nossa tradição ontoteológica. Talvez seja, como o diz o autor, uma outra ontologia que aí se anuncia, antes mesmo de Nietzsche: talvez Bartleby tenha sido o laboratório da potência destacada do princípio de razão e emancipada do ser assim como do não ser, lançada na absoluta contingência...(18)
É em Duns Scot que Agamben encontra a prefiguração de Bartleby, quando o filósofo concebe, ao mesmo tempo, o ato e a potência de não ser ou de ser de outro modo. "Por contingente eu entendo não algo que não é nem necessário nem eterno, porém algo cujo oposto poderia advir no momento mesmo em que aquele advém". Assim, alguém poderia agir de certa maneira e no mesmo instante poder agir de outro modo, ou não agir. A liberdade humana residiria precisamente, por parte daquele que quer, no poder de não querer, já que a vontade seria a única esfera que escapa ao princípio da contradição. Ao criticar os que negam a contingência, Duns Scot propõe a solução de Avicenas, que eles fossem torturados até o ponto de admitirem que poderiam não ser torturados...

Em todo caso, a solução de Bartleby, ao interromper as cópias que lhe dita o patrão, é interpretada por Agamben como uma maneira de renunciar à Lei. Como um novo Messias (Deleuze dizia: um novo Cristo), ele não vem para redimir aquilo que foi, mas para salvar o que não foi, para atingir da Criação aquele momento de indiferença entre a potência e a impotência, que não consiste em recriar, nem em repetir, mas em des-criar, isto é, onde aquilo que foi e poderia não ter sido se esfumace naquilo que poderia ter sido e não foi (19). É todo um tema benjaminiano presente no autor.

Mas recuemos ainda um passo, na direção daquela potência (de não ser), de que Bartleby é o anti-herói, e que serve a Agamben para pensar o estatuto do sujeito em situações políticas extremas, como a do campo. Em Ce qui reste d´Auschwitz Agamben refere-se, no interior da língua, a essa dupla potência: possibilidade de dizer, e impossibilidade de dizer, potência e impotência. A possibilidade de dizer deve trazer em si, para ter lugar, a impossibilidade de dizer, isto é, seu poder-não-ser, isto é, sua contingência.
"Essa contingência, essa maneira pela qual a língua vem a um sujeito, não se reduz à sua proferição ou não proferição de um discurso em ato, ao fato de que ele fala ou então se cala, que ele produz ou não produz um enunciado. Ela diz respeito, no sujeito, ao seu poder de ter ou de não ter a língua. O sujeito, portanto, é essa possibilidade que a língua não seja, não aconteça – ou, melhor, que ela não aconteça senão através de sua possibilidade de não ser, sua contingência. O homem é o falante, o vivente que tem a linguagem, porque ele pode não ter a língua, porque ele pode a in-fantia, a infância. ... A contingência... é um acontecimento (contingit) considerado do ponto de vista da potência, como emergência de uma cesura entre um poder-ser e um poder-não-ser. Essa emergência toma, na língua, a forma de uma subjetividade. A contingência é o possível experimentado por um sujeito" (20).
Um mundo desprovido da contingência, onde tudo é necessidade e impossibilidade, é um mundo sem sujeito, pura substancialidade. Se o sujeito é o campo de forças sempre atravessado pelas "correntes impetuosas, historicamente determinadas, da potência e da impotência, do poder-não-ser e do não-poder-não-ser", Auschwitz designa precisamente a ruína histórica e traumática pela qual a necessidade foi "introduzida à força no real. Ele é a existência do impossível, a negação a mais radical da contingência – portanto a necessidade a mais absoluta." Aqueles prisioneiros que tinham desistido, que tinham renunciado a sobreviver, que tinham entregue suas vidas à fatalidade, e que por isso eram chamados de muçulmanos, representam a catástrofe do sujeito, sua supressão como lugar da contingência, eles encarnam a existência do impossível. É onde a frase de Goebbels parece ganhar seu sentido: a política como a arte de tornar possível o que parecia impossível.

Nas condições da pós-política contemporânea, dado o controle biopolítico da vida, assistimos, como no campo de concentração, ao "apagamento do sujeito como local de contingência", ao seu desabamento no reino da necessidade, testemunhamos a redução da subjetividade à condição da mais crua objetividade dessubjetivada. No contexto contemporâneo, a vida nua dá a ler-se nesse rebaixamento da vida à sua mera atualidade, de onde foi evacuada a própria possibilidade. Se a reflexão sobre a linguagem tem na obra de Agamben papel tão relevante, é porque um outro "uso" desse Comum poderia restituir à subjetividade essa dimensão de "infância", contingência, possibilidade, revelando a tarefa eminentemente política aí embutida, sob o signo do messianismo, a saber – subtrair-se à cronologia, sem saltar para um além.

O mesmo pode ser dito da imagem, ou do cinema. Num curto artigo sobre Guy Debord (21), Agamben lembra que a mídia nos oferece os fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá portanto um fato "em relação ao qual somos impotentes. A mída gosta do cidadão indignado, mas impotente", o homem do ressentimento. Já um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibí-la enquanto tal, como o fazem Godard ou Debord, introduzem uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade.

É onde intervém uma curiosa interpretação da frase dita por Deleuze numa conferência sobre o cinema ("O que é o ato de criação?"), a saber, de que criar é resistir. Para o filósofo italiano, essa criação que equivale a uma resistência deve ser entendida como o ato de des-criação da realidade. "Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte do que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define antes de tudo por sua capacidade de des-criar o real" (22).
Não é nosso propósito aqui pôr em questão uma interpretação tão singular, embora não faltem elementos para tanto, dada a dimensão eminentemente afirmativa da filosofia de Deleuze, sorvida em Bergson ou Nietzsche, onde a aposta na diferença desloca inteiramente o lugar da negatividade. Mas, insisto, não se trata aqui de contestar ou subscrever o trajeto teórico de Agamben, com suas fontes filosóficas tão peculiares, e que dariam margem a comparações interessantes com outras concepções de linguagem, de pensamento, de potência (de não), mesmo de criação. Preferimos, mais do que polemizar, compreender de que modo, em paralelo com o diagnóstico cruel sobre o contexto biopolítico contemporâneo que se lê em suas últimas obras, vários de seus textos, mesmo anteriores, deixam entrever uma linha quebrada que permite pensar o avesso da vida nua tal como ele a concebe. Se percorremos algumas dessas vias sinuosas, como o são sempre em Agamben, para sondar, na contramão da expropriação da linguagem, que é por definição o Comum, o que seria o seu uso livre, sua dimensão de infância, de contingência, de potência (de não), de subjetividade, foi para cercar mais de perto o que para ele se poderia entender por política, nesse contexto em que o campo tornou-se o paradigma por excelência.

Notas

1. G. Agamben, Moyens sans fin, Paris, Payot, p. 95.
2. Idem p. 128.
3. Idem, p. 131.
4. Entrevista com Vladmir Safatle, "Folha de S. Paulo", 18/10/2005.
5. G. Agamben, Enfance et Histoire, Paris, Payot, 1989, p. 11.
6. Idem, p. 63.
7. Idem, p. 76.
8. Idem, p. 68.
9. G. Agamben, La Idea de la prosa, Barcelona, Ediciones 62, 1989, p. 14.
10. G. Agamben, "Idea de la infancia", in La Idea de la prosa, op. cit, p. 79.
11. Idem.
12. G. Agamben, "Idea del nombre", in La Idea de la prosa, op. cit. p 89-90.
13. G. Agamben, "Idea del amor", in La Idea de la prosa, op. cit, p. 43.
14. Neotênico: parado num estádio incompleto do desenvolvimento, durante o qual se tornam os animais aptos para a reprodução.
15. G. Agamben, La Idea de la prosa, op. cit. p. 80.
16. G. Agamben, Bartleby, ou l´acte de création, Paris, Circe, 1995, p. 27.
17. Idem, p. 49.
18. Idem, p. 53.
19. Idem, p. 84.
20. G. Agamben, Ce qui reste d´Auschwitz, Paris, Payot, 1999, p. 191.
21. G. Agamben, Image et mémoire, Paris, ed. Hoëbeke, 1998.
22. Idem.

Nota do Blog acerca do livro de Melville:

Bartleby, o escrivão - Uma história de Wall StreetHerman MelvilleTradução: Irene HirschPosfácio: Modesto Carone

Para ler a nova edição deste clássico de 1853, o leitor começa pelo desafio de descosturar a capa (puxando para baixo a linha vermelha que a lacra) e cortar as páginas não refiladas do livro (com a espátula plástica que acompanha o livro). Só assim, aos poucos, poderá desemparedar este personagem enigmático da ficção moderna que, no dizer do filósofo francês Gilles Deleuze, "desafia toda a psicologia e a lógica da razão". A famosa fórmula de resistência que o personagem oferece às ordens do advogado-patrão - "Acho melhor não" - e, mais tarde, de recusa ao próprio trabalho de escrivão e copista para o qual foi contratado, desperta uma sucessão tragicômica de acontecimentos. A cada resposta evasiva de Bartleby abre-se a fresta para a entrada do insólito nas atitudes e sentimentos despertados no dono do escritório, nos colegas de trabalho e até mesmo nas vizinhanças de Wall Street. Eleito por Jorge Luis Borges como uma das obras mais importantes para a humanidade e precursora de Kafka, a nova edição da novela de Melville reabre o caso do escrivão de Wall Street, investigado pela filosofia e pela crítica literária de todos os tempos.

Agamben e a "Comunidade que vem"



Comunidade que vem: a comunidade como acontecimento.
Entrevista especial com Sabrina Sedlmayer



O comum e a experiência da linguagem (Belo Horizonte: Ed. UFMG) é o mais recente livro organizado por Sabrina Sedlmayer, César Guimaraens e George Otte. Nos ensaios da obra, diversos autores exploram os interessantes conceitos de A comunidade quem vem, de Giorgio Agamben, ou seja, exploram a idéia de como ir além da formação da comunidade, operando, assim, o conceito de comunitário.
Sobre este livro, a IHU On-Line conversou com Sabrina, por e-mail.

Nesta entrevista, Sedlmayer afirma por que acredita que o pensamento de Agamben é tão importante para pensarmos a sociedade contemporânea. Fala também sobre a importância da linguagem na formação das sociedades e da própria obra A comunidade que vem. “A comunidade que vem seria formada pelo qualquer. Singularidade sem identidade, que não almeja a pertença a nenhum grupo, classe. Tais singularidades se apropriariam do seu ser na linguagem. Comunidade como acontecimento”, afirmou.
Sabrina Sedlmayer é graduada em Psicologia, pela Universidade Federal Minas Gerais. Realizou mestrado e doutorado em Estudos Literários, também pela UFMG. É professora na mesma universidade. Escreveu diversas obras, tais como: Pessoa e Borges: quanto a mim, eu (Lisboa: Vendaval, 2004); Lavoura arcaica: um palimpsesto (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1999); e Ao lado esquerdo do pai (Belo Horizonte: UFMG, 1997).


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Por que o pensamento de Agamben é tão importante para pensarmos a sociedade contemporânea?


Sabrina Sedlmayer - Primeiro, pela capacidade aguda de análise do presente. Não apenas da situação jurídica que toca a política atual, mas também pela leitura cerrada que dedica a cada excerto literário, filme ou fotografia que evoca em sua obra. Ao estudar os dispositivos de poder presentes na vida contemporânea, ao descrever os processos governamentais que sistematicamente separam a vida nua da vida citadina e civil, ao demonstrar como a vida se transformou em objeto do poder soberano, ao pontuar problemas éticos e ontológicos que nos envolve no mais pardo cotidiano Agamben se coloca de uma forma lúcida e interpela quem lê. Sujeito, poder, lei, história, experiência, negatividade são categorias e conceitos que Agamben aprofunda. E este é apenas um dos aspectos que o diferencia radicalmente do pensiero debole italiano ou de outros teóricos denominados pós-modernos.
Em segundo lugar, acrescentaria o poder de articulação de temas e teorias diversas. A produção intelectual de Giorgio Agamben oferece ao leitor uma variedade de reflexões que perpassam a literatura, a estética, o direito e a política, entre outros campos da arte e da filosofia. E em grande parte dos seus livros, como em Idea della Prosa (1985), Mezzi senza fine (1996), La comunitá che viene (2001), L’aperto (2002), Profanazioni (2005), encontramos uma forma de escrita muito peculiar: mescla de ensaio crítico e prosa poética, similar em alguns aspectos aos fragmentos benjaminianos (1). E o que o leitor encontra nessa instigante experiência de linguagem quase sempre está presente em outras obras de sua autoria (só que de forma mais analítica e interpretativa) dedicadas a temas propriamente filosóficos ou políticos. No pequeno ensaio “Elogio à profanação”, por exemplo, Agamben discorre sobre essa figura paradigmática para a compreensão de todo o seu pensamento, o homo sacer que, como se sabe, é o protagonista da famosa trilogia sobre o estado de exceção, espécie de work in progress que se iniciou em 1995. No ensaio, de um jeito aparentemente pouco pretensioso, ele trabalha obliquamente este tema lado a lado com exemplos sobre a museificação do mundo, jogos, infância, cinema.
Em terceiro lugar, a erudição. Causa espanto como o pensamento agambeniano migra da poesia medieval ao melancólico flaneur, de uma gravura da Bíblia hebraica do século XIII a Bartleby, o escrivão de Melville na nascente Wall Street no final do século XIX. Eric Méchoulan (2), em um curioso ensaio, coloca Agamben na linhagem de Baudelaire e de Benjamin, a dos colecionadores fetichistas. Eu acrescentaria o adjetivo “saturnino” aí.
A pesquisa etimológica é outra aliada desse pensador italiano. Agamben se coloca, em sua obra, como uma espécie de leitor. Leitor capaz de alterar o que se dava por constituído e organicamente fechado, como o fez com a descoberta de uma desconhecida tese de Benjamin, sendo esta agregada hoje à maioria das edições de “Sobre o conceito de história”. Creio que este lugar, o do estudioso que lê, sempre talmudicamente, tem a ver com o própria etimologia da palavra religião que Agamben escava: religio não estaria ligada a religare (o que une o divino e o humano), mas sim a relegere, a releitura. E Agamben promove releituras, de forma inquieta, vacilante.
Nesse sentido, interessante pensar, com Jeanne Marie Gagnebin (3), quando diz que Benjamin, como Proust, teve a preocupação de salvar o passado no presente graças a uma percepção de semelhança capaz de transformar os dois tempos. E não é isto que Agamben promove quando relê os campos de concentração nazi lado a lado com os atuais campos de concentração do nosso Terceiro Mundo?


IHU On-Line - O que exatamente pretende Agamben com "A comunidade que vem"?


Sabrina Sedlmayer - Não sei se é interessante pensarmos em termos de ações pragmáticas. Não creio que o livro A comunidade que vem ofereça apenas estratégias de ação política. Agamben rejeita e critica a potência empírica que deseja alcançar apenas a atividade. Não é a toa que elege Bartleby, de Melville, como referência crucial para que se entenda a potência passiva. Talvez Agamben tenha escrito A comunidade... para dar prosseguimento a questão ontológica, pois, como se sabe, grande parte do pensamento filosófico do século XX relegou este problema. Ele faz, inclusive, uma advertência ao leitor, na segunda parte deste livro:
“Os fragmentos que se seguem podem ser lidos como um comentário do § 9 de O Ser e o Tempo e da proposição 6.44 do Tractatus de Wittgenstein. Nesses dois textos, o que está em questão é a tentativa de definir um velho problema da metafísica, a relação entre essência e existência, quis est e quod est” (p. 70 da edição portuguesa, publicada pela Editorial Presença).
Ao enlaçar a ontologia à ética/política para tratar da relação entre existência e essência, Agamben constrói, sim, categorias políticas capazes de articular, como ele mesmo afirma, o lugar, o modo e o sentido do presente. E o quodlibet (qualquer) é central para a compreensão deste conceito de comunidade que não se encontra aqui e agora, mas está sempre por chegar, por vir. Trata-se de uma subjetividade ligada a uma lógica de campos de força, e não como substância ou uma coisa que pensa. Para Agamben, o sujeito é o que resulta da relação entre os seres vivos e os dispositivos. O que resta.


IHU On-Line - De que forma a linguagem interfere e influência a construção das sociedades e das comunidades dentro das sociedades?


Sabrina Sedlmayer - Gostaria de responder a esta pergunta enlaçando-a com a idéia da comunidade que vem: é essencial que os homens experimentem a linguagem como forma de recuperarem a sua natureza comunicativa e lingüística. Mas como distinguir, nessa nova humanidade, a “exterioridade singular” da publicidade midiática? Se pensarmos na avalanche de testemunhos, depoimentos e relatos da vida íntima que invadiram a literatura, a mídia impressa e eletrônica (pense nos auto-complascentes blogs) nos últimos anos mais problemático se torna a questão. É difícil inserir a presença desse qualquer, dessa existência comum, como contraponto a esses modos de subjetivação que usam a linguagem apenas como exercício de conquista identitária, afirmação de pertença a um grupo ou a uma classe. Susan Sontag (4) indaga por que, na contemporaneidade, “se atribui valor demais à memória e valor insuficiente ao pensamento”.
Acho que Agamben também aposta na potência do pensamento e em formas de existência que escapam da noção de pertença. Como professora de literatura, gosto particularmente do lugar que Agamben confere à poesia, por exemplo. Ela é estância onde se dá a falta; ao contrário da técnica, que crê é no valor da experiência. Na literatura, seja de Kafka (5), Proust (6), Baudelaire (7) e tantos outros não se usa a linguagem para falar da experiência, mas para falar justamente do que não é experimentável. Daí a defesa de uma negatividade, de uma crítica que, como diz Agamben “não consiste em reencontrar o próprio objeto, mas em garantir sua inacessibilidade”.
Uma autobiografia sem fatos não iria na contramão da sociedade do espetáculo? A experiência da linguagem não é o avesso do politicamente correto? “I would prefere not to” não é capaz de interferir e influenciar modos de subjetivações engessados pelos ditames do mercado financeiro? A literatura como defesa do atrito, como diria a ensaísta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes (8), não atropelaria as narrativas de auto-ajuda?


IHU On-Line - As formas que antes garantiam aos homens um contorno comum e asseguravam o laço social perderam sua força de espírito e entraram em colapso?


Sabrina Sedlmayer - Será que alguma vez um “contorno comum” que assegurava o laço social existiu?


IHU On-Line - A comunidade que vem, para você, é como diz Agamben, ou seja, uma comunidade de imigrantes, mestiços, sem-terras?


Sabrina Sedlmayer - É mais complexa. Não se trata de uma comunidade identificável nesses termos. Esta comunidade, lembre-se, é sem pressupostos. Não está ligada a categorias relacionadas a nenhuma identidade nem ao conceito de individualidade e de propriedade (qualidades, atributos). A comunidade que vem seria formada pelo qualquer. Singularidade sem identidade, que não almeja a pertença a nenhum grupo, classe. Tais singularidades se apropriariam do seu ser na linguagem. Comunidade como acontecimento. Gosto muito do que Raul Antelo (9), em um texto intitulado “Ontologia da potência”, diz a propósito dessa comunidade não comunitária desenvolvida também por Jean-Luc Nancy (10): necessidade de se trocar o ego sum pelo ego cum. E, para desenvolver o principium individuationis, Agamben recupera a escolástica, Duns Scot, Spinoza, a doutrina dos filósofos medievais e, principalmente, o problema aristotélico da passagem da potência ao ato (a meu ver o ponto mais importante para o entendimento de como essa forma comum passa a singularidade). Trata-se de um conceito complexo, pois envolve uma ética e uma política, e principalmente, um questionamento ao atual Estado governamental que deseja homogeneizar o mundo.


Notas:


(1) Walter Benedix Schönflies Benjamin foi um crítico literário e ensaísta alemão. Foi refugiado judeu alemão e, diante da perspectiva de ser capturado pelos nazistas, suicidou-se.


(2) Eric Méchoulan é professor do departamento de literatura francesa da Universidade de Montreal, no Canadá. É, também, diretor do programa de filosofia do Collège International de Philosophie, em Paris, na França.

(3) Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp, autora, entre outros, de História e Narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1994) e de Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997).

(4) Susan Sontag foi uma famosa escritora, crítica de arte e ativista estadunidense. Graduou-se em Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles, A vontade radical, Assim vivemos agora, O benfeitor, Contra a Interpretação e Na América, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prêmios do seu país, o National Book Award. Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times. Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib".


(5) Franz Kafka foi um escritor checo de língua alemã. A escrita de Kafka é marcada pelo seu tom despegado, imparcial, atenciosa ao menor detalhe, e que abrange os temas da alienação e perseguição. Os seus trabalhos mais conhecidos são A metamorfose, Um artista da fome, O processo, América e O castelo. Os seus contos são julgados como verdadeiros e realistas, em contato com o homem do século XXI, pois os personagens kafkanianos sofrem de conflitos existenciais, como o homem de hoje. Morreu num sanatório perto de Viena, onde se internara com tuberculose. Desde então, seu legado - resgatado pelo amigo Max Brod - exerce enorme influência na literatura mundial.


(6) Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor francês. Assistiu na École libre des sciences politiques aos cursos de Albert Sorel e Anatole Leroy-Beaulieu; e na Sorbonne aos de Henri Bergson cuja influência sobre a sua obra será essencial. Em 1900, faz uma viagem a Veneza e se dedica a questões de estética. Publica várias traduções do crítico de arte inglesa John Ruskin (1904). Paralelamente a artigos que relatam a vida mundana publicados nos grandes jornais (entre os quais Le Figaro), escreve Jean Santeuil, uma grande novela deixada incompleta e que continuará a ser inédito, e publica Os prazeres e os dias (Les Plaisirs et les Jours), uma reunião de contos e poemas.


(7) Charles-Pierre Baudelaire foi um poeta e teórico da arte francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.


(8) Silvina Rodrigues Lopes é professora do Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É autora de, entre outras obras, Aprendizagem do incerto e A alegria da comunicação.


(9) Raul Antelo é doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor titular de Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo já sido professor visitante da Duke University, da Yale University e da Tinker Foundation. Possui uma vasta produção como ensaísta. Participou de importantes congressos e seminários internacionais, debatendo com intelectuais e artistas como Jorge Schwartz, Décio Pignatari, Davi Arrigucci Jr., Nicolau Sevcenko e Jorge Luis Borges. É autor de Transgressão e modernidade (2001)e Maria con Marcel Duchamp en los trópicos (2006), entre outros.


(10) Jean-Luc Nancy é um filósofo francês considerado um dos pensadores mais influentes da França contemporânea. É professor emérito de filosofia da Universidade Marc Bloch, de Estrasburgo, na Alemanha, e colaborador das Universidade de Berlin e Berkeley, na Alemanha e nos Estados Unidos, respectivamente. É considerado um pensador original que recorre, por conta própria, os caminhos abertos Heidegger, Bataille ou Derrida, interlocutor de Blanchot. Aborda, em sua obra Sentido, ou o final do sentido como diagnóstico do nosso tempo mais preciso ainda que o fim da história ou das ideologias, a antologia de todos nós. Também tem abordado temas como a globalização.

Lacan e a arte zen do psicanalista: uma leitura da abertura e primeiro capítulo do Seminário I


(Por: André Camargo Costa) (*)

No primeiro parágrafo da abertura do Seminário I, sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan parte do peculiar modo de agir de um mestre zen para caracterizar a epistemologia e, no desenvolvimento subseqüente, a prática da psicanálise. O presente artigo visa a investigar esta curiosa associação.


À primeira vista, abordar psicanálise e budismo em um mesmo texto pode soar estranho. Afinal, trata-se, de um lado, de um método científico ocidental do final do século 19, dedicado à investigação e tratamento da dor psíquica e, de outro, de uma tradição religiosa oriental muito mais antiga.

É essa intrigante combinação, contudo, que dá início à longa seqüência dos Seminários de Lacan. Com efeito, o primeiro Seminário, de 1953, começa assim:

“O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la.”1

As histórias zen, em que se inspira esse parágrafo inicial, são conhecidas pelo seu caráter profundamente enigmático, cujo objetivo é romper com os padrões de pensamento em que se ancora a dúvida do perguntador. Assim como piadas, elas não podem ser explicadas nem compreendidas com o intelecto: são gestos, e apontam diretamente para a verdade.

Essa escola enfatiza a experiência direta de realização: “não se deixe levar por ouvir dizer, ler, nem pelo legado de outros, nem pela autoridade dos ensinamentos, nem por argumento, reflexão, método ou respeito a um mestre ou a uma tradição...”: a verdade só pode ser agarrada com as mãos nuas.

Qual seria, no entanto, a relação disso com a psicanálise, a ponto de Lacan iniciar um seminário sobre os escritos técnicos de Freud mencionando o zen? Será possível que esta fala tenha recebido destaque porque o psicanalista, em seu ofício, se identificava com o ofício de um mestre zen?

Voltemos ao texto. Lacan dizia que o mestre zen dá a resposta quando o discípulo está a ponto de encontrá-la. E prossegue assim:

“Essa forma de ensino [a técnica zen] é uma recusa de todo sistema. Descobre um pensamento em movimento – serve entretanto ao sistema, porque apresenta necessariamente uma face dogmática. O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente a dialética.” 2

A transição do zen para o pensamento freudiano, portanto, acontece de forma direta, sem mediações, dentro de um mesmo parágrafo. O texto os coloca lado a lado; qual é, porém, a natureza desta relação? Trata-se de uma analogia, de uma simples aproximação ou de uma contraposição? E, afinal, de onde vem o interesse de Lacan pelo zen, que justifique utilizá-lo para introduzir os problemas da técnica?

A atração de Lacan pelo Extremo Oriente é razoavelmente conhecida. Sabe-se, por exemplo, que sua “busca do absoluto” chegou a conduzi-lo por duas vezes ao Japão, a primeira em 1963 e a segunda em 1971.3 Também chegou a planejar uma viagem à China, cancelada de última hora.

Estudante apaixonado da língua e do pensamento chineses, Lacan considerava o Confucionismo uma das grandes filosofias do mundo. Por quatro anos (entre 1969 e 1973), o psicanalista francês tomou aulas particulares com um sinólogo. Tendo em vista uma de suas preocupações centrais, a formalização da tópica do Real, Simbólico e Imaginário, ele mergulhou com seu professor no estudo do clássico fundador do taoísmo, o Tao Te Ching.

Segundo um mestre taoísta chinês, O Livro do Caminho [Tao] e da Virtude, escrito entre 250 e 350 a.C., na China, é “um texto profundo e ao mesmo tempo simples porque apresenta, por meio da linguagem, aquilo que se experimenta na sua ausência”.4 Daí o profundo interesse de Lacan.

Mas o foco dos estudos lacanianos recai em particular sobre a passagem que fala da origem das coisas: “o Tao de que se pode falar não é o Tao. Para compreendê-lo, é necessário abandonar a linguagem e os nomes. O Tao encerra o princípio de todas as coisas, mas ele mesmo não tem forma e nem corpo: é silencioso, eterno e imutável. O Nada é a essência do Tao, a fonte original de onde brotam o Céu e a Terra. Do Céu e da Terra brotam as inúmeras coisas. A ausência de intenção é necessária para se contemplar as inúmeras coisas; a aspiração, para contemplar a Luz. Nada e Existência possuem nomes diferentes, mas ambos provêm do Tao. O maior dos mistérios é o Tao, a fonte da criação das inúmeras coisas.”5 De acordo com Roudinesco, a noção de vazio extraída deste livro “será utilizada por Lacan para sua nova definição do real no quadro de sua teoria dos nós.” 6

Haveria, portanto, um papel de destaque, ainda que apenas nos bastidores, para a noção de um vazio taoísta neste momento da teorização lacaniana. A passagem da formalização da tópica do Real, Simbólico e Imaginário para o modelo dos matemas e dos nós, neste sentido, revela a busca de Lacan por um modelo teórico capaz de dar conta da transmissão do inefável.

A necessidade de pensar como se articulam campos para além da linguagem, isto é, o que não se expressa nem como imagem e nem como símbolo, conduz a tópica lacaniana a uma mudança de ênfase radical: o lugar determinante antes ocupado pelo Simbólico agora cabe ao Real.

Estas teorizações, ao mesmo tempo, revelam uma vocação positivista presente de modo cada vez mais nítido no pensamento de Lacan. Tratava-se da pretensão de constituir, apoiada na clínica da psicose, uma ciência exata do Real. Lacan, acima de tudo, não queria ser mal-interpretado.7

Neste ponto, avançamos até as formulações próprias à primeira metade dos anos 70, e aparentemente muito distantes do que em princípio nos interessa: o seminário de 1953, sobre os escritos técnicos de Freud. No entanto, apesar do intervalo de cerca de 20 anos, é possível apontar entre a abertura deste seminário, onde consta a referência ao zen, e esta teorização final, apoiada sobre elementos do taoísmo, importantes pontos de contato.8 Essas associações, particularmente em relação ao além-da-linguagem, à ruptura de sentido e ao vazio fértil, deverão ser reencontradas na seqüência do texto.

Antes de empreender esta breve excursão histórica pelos interesses de Lacan acerca das disciplinas orientais, em que terminamos por destacar a relevância da idéia de vazio em seu pensamento, nos perguntávamos qual a relação entre a técnica zen de apontar diretamente para a verdade e a epistemologia freudiana, já que, na abertura do Seminário, o psicanalista francês as coloca lado a lado.

Lacan parece julgar a técnica zen uma via privilegiada para introduzir o seu tema. Tomando em consideração o fato de que Freud jamais fez menção ao budismo, podemos supor que o zen oferece uma perspectiva singular de onde abordar questões fundamentais da prática da psicanálise? Vejamos.

Há decerto muita coisa concentrada naquele pontapé inicial do mestre zen. Ao iniciar uma palestra desse jeito inusitado, ele rompe o campo do convencional. Para Lacan, trata-se fundamentalmente de um gesto de recusa; ao se expressar de modo a rejeitar o que dele se espera, gera um efeito de ruptura; o vazio de seu gesto, porém, convida mais à plenitude do sentido do que à tagarelice de seus discípulos.

O comportamento desconcertante do mestre zen tem por objetivo romper com padrões de pensamento condicionados, isto é, com formas equivocadas, caducas, de constituir a realidade. Desaloja.

Ao mesmo tempo, trata-se da expressão direta de sua verdadeira natureza. O mestre zen é um ser liberto; ele liberta-se das convenções sociais rompendo com os limites impostos pelo ego, e com isso se torna capaz de enxergar para além dos conceitos e definições. A morte do ego o põe em contato com a natureza vazia da realidade convencional.

Lacan fala da técnica zen como uma recusa de todo sistema. Esta palavra, sistema, adquire um papel fundamental adiante, no mesmo texto. Ele afirma:

“O absurdo fundamental do comportamento inter-humano só é compreensível em função desse sistema – como o denominou de forma feliz Melanie Klein, sem saber o que dizia, como de hábito – que se chama o eu humano, a saber, esta série de defesas, de negações, de barragens, de inibições, de fantasias fundamentais, que orientam e dirigem o sujeito.” 9

Aí está o ponto. Trata-se de definir, no âmbito da clínica psicanalítica, a pertinência e o alcance da superação desse sistema, o eu. Este é o ponto nuclear, até mesmo, é o ponto de mira do texto que estamos examinando, para onde converge toda sua argumentação.

Sabemos que o pontapé de Lacan neste seu seminário, além de atingir Melanie Klein, dirigia-se de modo especial a um sistema de pensamento, a chamada Ego Psychology. O mestre da psicanálise francesa considerava esta corrente psicanalítica americana, ligada à figura de Anna Freud, uma versão domesticada, uma espécie de deturpação puramente adaptativa da peste em seu potencial subversivo, enraizada nas pulsões desestabilizadoras do id. Este é o caráter que ele procura resgatar, sob o signo do retorno a Freud.

É dentro deste espírito provocador que Lacan encerra sua introdução aos escritos técnicos de Freud, lançando mão de uma questão bastante incisiva e que, ao mesmo tempo, condensa admiravelmente as trilhas abertas pela sua fala. Ele pergunta aos seus ouvintes:

“O conjunto do sistema de cada um de nós – falo desse sistema concreto que não precisa já ter sido formulado para que esteja aí, que não é da ordem do inconsciente, mas que age na maneira pela qual nos exprimimos cotidianamente, na mínima espontaneidade do nosso discurso – está aí algo que deve efetivamente, sim ou não, servir, na análise, de medida?” 10

Examinemos com mais cuidado sua postura. Trata-se, em última instância, de atacar uma concepção de análise fundada numa relação entre analista e analisando de ego a ego. O entendimento da prática psicanalítica a partir de uma lógica binária, identitária, gera ilusões de complementariedade e de simetria e, neste sentido, alimenta expectativas de completude.

A relação analítica não é marcada por uma lógica da identidade, mas por uma lógica da diferença, da dissonância: a palavra do analisando, nos momentos de fato analíticos de uma sessão, não cumpre a função de comunicar, mas de revelar: a associação livre pressupõe um nível de tensão interna do discurso, um grau de abertura a rupturas de sentido imprevisíveis.11

No interior do modelo criticado por Lacan, não haveria espaço vazio, e tampouco abertura. A figura do analista tende a deslizar para lugares incompatíveis com a atividade analítica; trata-se, portanto, de um modelo que mantém e reforça o narcisismo e a onipotência, e encoraja a encarnação de ideais de ego.

O analista cujo eu serve de medida do que é o real solidifica-se em pura presença; ele se distanciará da concavidade própria à escuta analítica, uma presença em ausência. O analista acabará por se converter em uma figura fálica intensamente catexizada, à qual o analisando deverá se apegar com um afã masoquista.

Ao submeter-se à fascinação exercida pela personalidade do analista, o analisando sacrifica a construção da própria subjetividade. Permanece, por assim dizer, subjetivamente colado a seu analista, numa espécie de pacto vampírico. O conluio intersubjetivo assim constituído deverá engessar de modo irremediável a dinâmica transferencial deste tratamento.

Quando o paciente adota o analista que se oferece como referencial narcísico e identificatório, o par estabelece uma aliança perversa que conduz a subjetividade à centralidade no eu – a crença na existência última de um falo todo-poderoso – e portanto à obturação do vazio constitutivo da existência. Recusa-se a condição fundamental de desamparo do sujeito humano, a condição de perpétua insuficiência simbólica da linguagem frente às insistentes demandas pulsionais.

A relação transferencial sadomasoquista paralisa o analista no gozo com a anulação da singularidade do outro, enquanto este outro se submete passivamente. Uma dinâmica que revela a impossibilidade de sustentar a experiência-limite no abismo do além-da-linguagem, ali onde se esconde a face sombria da morte, da loucura e da inexistência, mas também toda possibilidade autêntica de criação, de sublimação, de espontaneidade, de singularidade e de genuína fruição. O eu eleva-se à condição de um ídolo fálico e ambos, na verdade, analista e analisando, acabam submetidos. O superinvestimento do ego é essencialmente resistencial, e tem o efeito de tamponar o vazio radiante de onde brotam as associações livres.

Trata-se, portanto, de uma verdadeira tragédia da servidão na psicanálise, como a denominou Joel Birman, forjada pela incapacidade de lidar com a angústia do sem-nome:

“... [o analista] lançará mão, inequivocamente, de seus ideais fálicos, de suas utopias de algibeira, para apaziguar sua angústia e a do analisando. Com isso, inevitavelmente promoverá um pequeno assassinato da alma, pois vai impedir que um sujeito possa se constituir a partir da experiência limite do desamparo. Empreender um pequeno assassinato implica, pois, fazer obstáculo para que um estilo singular de existência possa se constituir numa individualidade, fundado na experiência trágica da feminilidade.” 12

Qual, então, a posição do eu do analista numa análise para que ela não fique obstruída – de suas manias, de seus dogmas, suas crenças e valores, seus humores, suas coerências e incoerências, de seus hábitos de fala, de pensamento e de comportamento – de sua vaidade?

Lacan relativiza a importância do eu na estrutura da situação analítica atribuindo à palavra um papel mais decisivo que o de mero coadjuvante. É como pretende romper com a lógica binária da pura relação intersubjetiva: propondo uma lógica ternária, em que à linguagem cabe uma posição central.

Precisamente aí ele faz intervir esse terceiro elemento: analista, analisando, a linguagem. Teríamos, então, em princípio, três corpos: o eu do analista, o eu do analisando e a palavra, elemento sobre o qual recai o acento lacaniano; esta tríade comporia a estrutura da situação analítica. Mas não fiquemos por aí. Determinemos, a partir do próprio texto, a tríade analítica em outros termos: o eu, a linguagem e seu negativo, o vazio.

Cabe lembrar, antes de prosseguir, em que terreno estas questões se enraízam. São temas metapsicológicos, mas de incidência muito viva no modo como a clínica é concebida e praticada. Diz Lacan: “É sempre em função da questão o que fazemos quando fazemos análise? que esse comentário de Freud foi trazido aqui por mim.”13 E o que está em pauta, deve ficar claro, é a relação entre o eu, a linguagem e o vazio.

Assim, vale a pena procurar entender, a partir do texto, como estes temas se articulam em relação a um modo – deste Lacan, de 1953 – de conceber a clínica psicanalítica, e usá-lo para retomar a questão que colocamos mais acima – sobre o papel do eu do analista numa análise – iluminada por alguma contribuição que o budismo possa nos oferecer. Esse é o caminho que devemos seguir até a conclusão do artigo.

Lacan ensaia uma espécie de desconstrução do eu ao longo deste texto. Já o citamos, mais acima, tratando-o como “uma série de defesas, de negações, de barragens, de inibições, de fantasias fundamentais, que orientam e dirigem o sujeito”.14 Ainda antes disso, afirma categoricamente que “o eu está estruturado como um sintoma. No interior do sujeito, não é senão um sintoma privilegiado. É o sintoma humano por excelência, é a doença mental do homem.” 15

Devemos assinalar, neste ponto, a proximidade desta concepção do ego como o sintoma humano por excelência, conquanto seja aquilo que o orienta e dirige, com o tratamento budista da questão do eu. Segundo os ensinamentos budistas, a crença na existência de um eu independente, separado de todo o resto, bem como a organização psíquica e o modo de vida sustentados por esta crença fundamental, estão na raiz de todo sofrimento humano.

Em função desta visão restrita da realidade, vivemos tempos de degenerescência. Vamos produzindo problemas em um nível individual, sem nos preocuparmos com as conseqüências, e deixamos para a coletividade e para as gerações futuras a tarefa de resolvê-los. Neste grupo se incluem, por exemplo, a poluição, o derretimento das calotas polares, o sucateamento dos sistemas de saúde, educação, saneamento básico, etc., todos resultantes de visões imediatistas e autocentradas. Para o budismo, a desatenção com esta produção maciça de dificuldades que, cedo ou tarde, nos atingirão a todos, é uma espécie de miopia própria a nós, seres confusos, encarcerados nos desejos individuais.

Responder de modo unilateral às demandas do eu só aumenta a sensação de isolamento e de suspeita em relação ao outro, em função do conflito insolúvel entre este eu e o ambiente de cuja salubridade depende sua felicidade. A confusão mental associada à sensação de não pertencer a uma comunidade maior, pela necessidade contínua de proteger os próprios interesses, nos condena a sentimentos de perplexidade, inquietação, embotamento e vazio. Um estado de dispersão de si enraizado na preocupação excessiva consigo mesmo, que faz perder de vista a natureza insubstancial e interdependente de tudo o que há.

Em última instância, aquilo que sustenta esta visão separativa do eu é o mundo convencional dos conceitos – o eu só pode ter sua existência assegurada em meio aos labirintos da linguagem; mas a realidade conceitual ofusca a onipresença do absoluto. A cegueira a esta dimensão fundante da experiência humana, eis, para o budista, a doença mental do homem.

Mais adiante, no mesmo texto, Lacan coloca o problema do eu 16 da seguinte forma: “O que é que é o ego? Em que, o sujeito, estará ele preso, que é, afora o sentido das palavras, bem outra coisa – a linguagem, cujo papel é formador, fundamental na sua história.” (p. 26)

O que fica evidente na posição lacaniana é o caráter imaginário, isto é, sem substância, do eu – em oposição ao caráter simbólico do sujeito do inconsciente. Trata-se apenas de uma pálida imagem num espelho, com a qual, entretanto, ficamos embevecidos, hipnotizados. Incapazes de apreender quem de fato somos, identificamo-nos com aquela imagem, reduzindo-nos a ela, o que representa, no entanto, uma terrível armadilha. Sacrificamos a totalidade de nossas possibilidades existenciais, os mais altos cumes de prazer e dor, à regularidade da nossa superfície consciente, em nome da previsibilidade e do controle – e a vida se banaliza. A partir do desenvolvimento da concepção do estádio do espelho, de onde provêm estas reflexões, o eu é considerado o núcleo do registro do imaginário na tópica lacaniana.

Aqui emerge com clareza a predileção de Lacan, nos limites da segunda tópica freudiana, pela instância do id, em detrimento da ênfase colocada no ego pelos seus contemporâneos: “Para ele, trata-se de mostrar que o eu não pode surgir no lugar do isso, mas que o sujeito (je) deve estar ali onde se encontra o isso, determinado por ele, pelo significante.”17

Então, apesar de ser aquilo a que nos referimos e a que fazemos referência o tempo todo, o ponto capital de articulação das coisas e eventos do mundo, não há anterioridade ou exterioridade do eu em relação à linguagem; ele se faz de carne representacional. E, ainda que haja apropriação individual da linguagem, ela tampouco pode ser reduzida ao eu, como uma produção sua, mas, ao contrário, pertence ao campo do coletivo. Daí a natureza puramente ilusória e ofuscante do ego: “tudo aquilo a que se acede, embora não seja, por outro lado, senão uma espécie de obstáculo, de ato falho, de lapso.” 18

O eu, portanto, compõe-se de lado a lado de matéria não-eu, própria ao campo formal, vazio, da representação; ele é regido pelo funcionamento da linguagem, ao mesmo tempo em que dela crê se utilizar como instrumento de comunicação.

Mas além de permitir as trocas simbólicas inter-humanas, e com isso a criação e manutenção de comunidades, a linguagem estabelece cenários para a emergência subjetiva, ou seja, suas malhas constituem condições de revelação, de realização ou de atualização de um sentido de si, ou ainda a sua negação, a alienação psíquica. O sujeito encontra as condições de alienação e de realização de si na sua articulação com a linguagem, isto é, a possibilidade de habitar – ou de constituir – um mundo provido ou desprovido de sentido.

Neste ponto encontramos uma área de sobreposição entre o eu budista e o eu da psicanálise, pois, é bom que se diga, os dois termos não se recobrem senão de forma parcial. O conceito de ego é um dos mais problemáticos da teoria freudiana.19 De todo modo, afastado progressivamente da sua vinculação com a consciência, e assumindo porções legitimamente inconscientes, há uma complexa tessitura metapsicológica subjacente ao conceito freudiano.

O eu do budismo, em contrapartida, não é um conceito formal, ou seja, não tem o seu sentido codificado; trata-se apenas de uma noção. É uma espécie de releitura do eu consciente extraído da experiência imediata, que repousa sobre a base segura da auto-evidência. Mas o pensamento budista, assim como a psicanálise, sem no entanto preocupar-se em defini-lo, demonstra que esse eu carece de essência ou substância. Ambos rompem com o princípio da identidade, ao rejeitar a idéia de uma consciência absolutamente autônoma, uniforme ou transparente a si mesma. Em termos do entendimento do eu, psicanálise e budismo convergem quando concebem o eu enraizado na linguagem, sendo que o campo da linguagem não esgota a totalidade da experiência humana.

Basta lembrar que a palavra não diz, nem pode nunca dizer tudo. A palavra diz o que diz a partir de um fundo que vai de murmúrios, gemidos e gritos, até o mais profundo silêncio. A linguagem não recobre o mistério do sentido; é desta tensão da linguagem com o seu negativo, o silêncio, o branco das entrelinhas, que irrompe, como um relâmpago, o imprevisível transbordante do sentido.

Nesta acepção falávamos de um vazio fértil; assim como uma janela, cujo valor reside em sua transparência, em sua vacuidade, que, ao nada conter, nos deixa conhecer toda a amplitude do mundo lá fora, podemos falar, citando Fédida, numa potência radiante do vazio – um vazio que explode em luz.

Fédida não fala de janelas, mas de telas e aquarelas, o que, de certo modo, pode ser bem parecido. Diz ele:

“É notável que as aquarelas sobre papel, de Cézanne, tenham um poder de irradiação da luz a partir do vazio. O branco do papel é a matéria das vibrações. Com efeito, pensamos em Cézanne – e também em Paul Klee – para evocar a potência radiante do vazio – como cheio de luz – sempre relacionado ao fundo da tela de onde emergem as tensões da cor até a ruína da forma desenhada do motivo. Ora, para Cézanne, o branco é a capacidade luminosa de toda cor: o branco não como cor, mas como vazio. Esse vazio energiza as tensões até seu limite tectônico, que é o momento de decisão da obra, seu acontecimento. Simultaneamente, ele cria a luz como o tempo de germinação da obra, o espaço interno de seu recolhimento e repouso. O cheio de luz é o silêncio do vazio, e é o vazio que age e articula a tectônica dos movimentos.” 20

Na clínica psicanalítica, o vazio radiante, para além das palavras, compõe o fundo sem fundo de onde brotam as associações livres. Daí a atividade analítica ser pensada como pura abertura, uma abertura que precisa ser preservada com cuidado frente às pressões por soterrá-la com crenças, ideais e utopias. Vale lembrar que também concepções teóricas, mesmo e sobretudo acerca da técnica analítica, servem de material egóico apto a cumprir esta função resistencial, a saber, a de afastar a angústia associada à vivência do vazio representacional.

Neste sentido, é possível conceber o ego como um sistema, uma espécie de aparelhagem psíquica que se monta para dar conta do vazio. O eu serve para evitar o contato com a ausência de substância, de controle, de previsibilidade e de solidez inerentes à condição humana. Trata-se de algo como uma prótese, convertida, todavia, num ídolo fetichizado, posicionado no centro da existência, e nos agarramos tanto mais a ele quanto menos preparados estamos para tolerar o desamparo de existir sem garantias, sob o signo da incerteza.21

Encarando-o como uma instância ultrapassada, fundada no medo e cujo efeito é a despulsionalização da experiência de estar vivo, é apenas natural que falemos da extinção do eu. Como vimos, o apego ao eu pode ser compreendido como algo que está na raiz do estado de dispersão de si e do vazio desvitalizado próprios à subjetividade contemporânea. Podemos considerá-lo, ao mesmo tempo, um sintoma: um comportamento que revela a incapacidade de integrar, na experiência, a condição última de ser em desamparo – a fratura em ser. Seguindo este raciocínio, a consolidação do eu no interior do indivíduo é ao mesmo tempo causa e efeito do medo de existir.22

Ao colocarmos as coisas nestes termos, tem-se a impressão de que o eu deve ser eliminado. No entanto, a experiência clínica nos indica de modo claro e inequívoco a existência de patologias que demonstram ser preciso trabalhar na constituição e no fortalecimento do ego. Pessoas que sofrem porque não encontraram condições suficientemente boas para se constituírem num eu razoavelmente integrado.

Com isso, atingimos um certo grau de complicação: não podemos decidir se, afinal, a terapia analítica deve se dirigir ao fortalecimento do ego, atrofiado pela pobreza simbólica e pelo conflito neurótico, ou à sua extinção. É possível escapar dessa dicotomia?

Como se pode perceber, ficamos longe de resolver a questão. Para enfrentá-la, cumpre ainda lançar luz sobre o que se quer dizer com a extinção do eu e em que medida isto é possível, em particular no âmbito da situação analítica.

Na verdade, paradoxalmente, a extinção do eu supõe o seu fortalecimento. Um ego suficientemente bem estruturado é necessário para que se possa experimentar a ausência de eu – do contrário, a pessoa pode aproximar-se perigosamente da loucura. Mas como isso é possível? Vejamos:

“Esta abordagem sugere que o ego, embora importante para o desenvolvimento, pode de alguma maneira ser transcendido ou deixado para trás. Temos de lidar, neste ponto, com uma lamentável confusão de vocábulos. (...) Não é o ego, no sentido freudiano, o verdadeiro objetivo do insight budista; ao contrário, é a imagem que temos de nós mesmos, o componente representativo do ego, a verdadeira experimentação interior do eu de cada um de nós.” 23

Mark Epstein sugere que a raiz da dificuldade está no fato de agruparmos sob um mesmo nome definições distintas. O eu do senso comum – e do budismo – não possui o mesmo significado do ego na trama conceitual da psicanálise. Neste sentido, o ego freudiano, entendido como uma estrutura psíquica, não pode mesmo ser eliminado; o eu que deve ser extinto, cujo núcleo cumpre a função de no informar sobre quem somos, corresponde a apenas uma parte desse ego.

Se recorrermos à obra freudiana, encontraremos o eu da psicanálise descrito como uma instância psíquica, em sua essência, defensiva, histórica e contingente; o ego pode adoecer (quando se enfraquece e fica vulnerável à invasão das paixões) e é responsável por uma síntese identitária de caráter imaginário. No entanto, embora sede da auto-imagem, nas palavras de Manoel Tosta Berlinck,

“O eu não supõe um substrato íntegro denominado identidade. Ao contrário, tudo indica que o eu é sempre uma bricolage de identificações, incorporações, possessões. Entretanto, é inegável que o eu tem sempre uma concepção íntegra de si que pode ser denominada de identidade e é imaginária.” 24

Ainda que o eu forme de si uma imagem homogênea, uniforme e transparente a si mesma, quando examinado mais de perto desfaz-se num aglomerado de processos impessoais. Estes processos caracterizam-se por modalidades habituais de reação emocional – os mecanismos utilizados para proteger esta imagem e mantê-lo coeso frente às adversidades ambientais. São os mecanismos de defesas infantis, e ultrapassados, que alienam o ego adulto do mundo externo, ocasionando seu enfraquecimento patológico.25

O apego a mecanismos de defesa obsoletos mantém o ego imaturo, reativo e aprisionado pela força do hábito. Protegendo-se de perigos imaginários, ou sensivelmente exagerados, o sujeito aliena-se no sofrimento neurótico. Mas estes perigos relacionam-se à necessidade de perpetuar uma “concepção íntegra de si”. O ego quer, acima de tudo, crer-se sólido, permanente e imutável.

Assim, o ego não pode ser transcendido enquanto tal; a meta terapêutica da psicanálise envolve incluir na síntese do ego as demandas pulsionais, diminuindo, com isso, a magnitude do conflito psíquico. Tornando-se o id cada vez mais acessível às influências do ego, inscrevendo-as em circuitos associativos, as pulsões cessam de buscar de modo independente o caminho à satisfação. Ao mesmo tempo, ao ampliar a capacidade de inscrição dos afetos em representações, aumenta a proteção do aparelho psíquico frente ao excesso de excitações geradoras de angústia.

A expansão da capacidade simbólica do ego, cujas conseqüências envolvem tanto a atenuação do conflito psíquico quanto uma maior proteção em relação à angústia causada pelos afetos sem ligação, é o que chamamos de fortalecimento do ego.

Por outro lado, a última das operações fundamentais do ego, qual seja, a função de regular os investimentos objetais do psiquismo, depende da possibilidade de extinção do eu. Isto porque o sujeito só pode se abrir para o mundo, por assim dizer, na justa medida em que se des-hipnotiza de si mesmo. A abertura para o relacionamento objetal satisfatório implica uma diminuição significativa dos investimentos eróticos nos processos ligados à constituição e ao apego à própria imagem.

Na leitura de Renato Mezan, o mecanismo de identificação “...vai-se progressivamente revelando como o processo essencial da constituição do ego, a ponto de Freud poder afirmar, em 1923, que o ego nada mais é do que um precipitado de identificações abandonadas.” 26

Acompanhando o comentário de Mezan, podemos conceber a identidade como um núcleo do passado, isto é, daquilo que já está morto, no interior do aparelho psíquico. A isso corresponde a falta de vitalidade e espontaneidade característica das patologias ligadas ao apego narcísico ao eu.

Mas não é só. Há algo de artificial na imagem que criamos de nós mesmos. Nossa identidade se compõe de um núcleo de apreensões idealizadas dos outros, o que nos faz intensamente paralisados pela sua influência sobre nós. Estranho quanto possa parecer, a identidade corresponde à sede do alheio no mais íntimo de si. Corresponde à incorporação de aspectos e atributos dos outros, processo levado a cabo com o objetivo de nos tornarmos mais aceitáveis aos nossos olhos e aos olhos daqueles que prezamos. Eis o seu caráter imaginário, por um lado, e seu efeito alienante, por outro.

É possível encarar este eu, portanto, como uma espécie de impostor, um viés essencial que condiciona nossas reações, nosso modo de agir, sentir e pensar, o que tende a torná-los mecânicos, infantis e estereotipados – se bem que não seja fácil conceber como é existir para além das fronteiras do eu (afinal, se não sou neste com quem acostumei a me identificar, onde sou?)... De qualquer modo, tornamo-nos, em nosso narcisismo, reféns do olhar dos outros: são eles que virão a confirmar ou desconfirmar a nossa existência. Nas palavras de Octave Mannoni:

“Não faltam os paradoxos. O narcisismo, por exemplo, não supõe uma verdadeira identificação consigo mesmo. O papel dos outros é mais importante. Para saber quem somos, é preciso passar pelos outros: eu sei quem sou porque os outros sabem. Não se pode precisar muito bem como isso funciona. Eu me identifico com alguém que me identifica.” 27

Se em princípio o eu bem demarcado abarca o propósito de gerar uma sensação de soberania e controle sobre os eventos do mundo, a profunda submissão ao outro, gerada ao longo deste processo, condena-o a uma dependência desamparada; o indivíduo torna-se refém de um desejo que não controla. A busca de controle termina por controlá-lo.

Assim, o projeto subjetivo de constituir e manter-se apegado a uma identidade sólida corresponde à busca por defender-se das instabilidades e precariedades da existência como ser humano. À medida que o ego se fortalece, no entanto, torna-se possível desapegar-se desta auto-imputada sensação de solidez, e deixar-se fluir com a torrente do existir; torna-se possível, então, abrir mão das complicações emocionais ligadas ao ímpeto de fazer caber a realidade na métrica do desejo egocêntrico. Correlativamente, abrir mão das próprias identidades, sempre frágeis e cambiantes, possibilita ao ego fortalecer-se, porque lhe permite rever seus automatismos, enraizados em mecanismos de defesa arcaicos.

Neste ponto, talvez a psicanálise aponte na mesma direção do caminho zen: ampliar a capacidade do eu de contemplar a própria destruição e reagir com humor.28

Se a identidade, ou auto-imagem, articulada aos mecanismos de defesa do ego, operam no interior do aparelho psíquico como sede dos fenômenos de alienação e empobrecimento simbólico-pulsional que viemos examinando, e se é o mecanismo psíquico de identificação que lhe dá suporte, torna-se possível, afinal, formular algo de decisivo para o nosso recorte: que a morte do eu caracteriza-se por um processo de desidentificação.

Isto é o que se quer dizer – em vocabulário psicanalítico – com a meta terapêutica de extinção do ego: contemplar a morte do eu envolve abrir mão dos referenciais narcísicos e identificatórios.

Este seria o árduo caminho no sentido de habitar-se a si mesmo: haver-se com a força mortífera que mantém a libido aprisionada em antigas catexias, no recolhimento do espaço analítico, a ponto de criar o distanciamento de si que permite tomar consciência das próprias identificações, que são sempre inconscientes: “...é preciso justamente que sejamos nós mesmos para nos descobrirmos identificados ao outro.” 29 É preciso desidentificarmo-nos para florescermos em vívida singularidade. Ainda nos resta, contudo, precisar a incidência destas formulações no trabalho do psicanalista.

A constituição de uma identidade definida é uma etapa indispensável ao desenvolvimento psíquico. Tão necessária quanto esta etapa, contudo, é o abandono das construções imaginárias, o desapego das imagens idealizadas que criamos a nosso respeito e que nos esforçamos por manter a despeito dos golpes narcísicos que a vida nos impõe. Esta é uma fonte primordial de conflito – a discrepância entre o que somos e aquilo que gostaríamos de ser.

O rompimento com uma experiência de mundo baseada na centralidade do eu está associado à possibilidade de reconhecer-nos para além do que possamos conceber a respeito de nós próprios e do mundo. Pois, como já afirmamos, o campo do pensável e do representável não recobre a totalidade da experiência humana.

Há a possibilidade de acesso a uma dimensão de subjetividade plena, por falta de uma expressão melhor, em que o contato possível com os afetos informes, com as intensidades puras, não é obstruída seja pelo pensamento, seja pela linguagem. Ainda temos muito a estudar, porém, sobre o modo de funcionamento destas outras formas de continência – afora a linguagem – que tornam possível o contato com o inefável sem acarretarem um mergulho na angústia e no desamparo.

Esta dimensão além da linguagem não tem nome; podemos denominá-la simplesmente de isto, como fariam os budistas ao chamar a atenção para a percepção direta da realidade (como alguém que aponta, apenas, sem nada dizer). Com isso, é possível retomar uma citação do início do texto de Lacan, com o objetivo de associar esta reflexão à meta da terapêutica analítica.

Segundo ele, “o ponto a que conduz o progresso da análise, o ponto extremo da dialética do reconhecimento existencial, é – Tu és isto.” E completa: “Esse ideal nunca é de fato atingido”.30 Para além da dimensão egóica, no reino do Inconsciente sem palavras, somos isto. Diluem-se as fronteiras que separam o eu e o outro, o sujeito e o mundo, o existente e o não-existente. Não há contradição, não há separação.

O eu fundado na auto-imagem atua, no interior do indivíduo, como um sistema, uma espécie de instância de controle. Daí a pertinência do gesto de Lacan, no texto que estivemos estudando, de introduzir a técnica zen de recusa de todo sistema como uma forma de abordar a prática psicanalítica.

O efeito analítico pode com isso ser examinado à luz da excentricidade de um mestre zen. Ambos geram uma ruptura de sentido no campo do convencional, arremessam seja o discípulo, seja o analisando em direção ao além-da-linguagem, frente à experiência do vazio representacional. Psicanálise e zen são métodos essencialmente desconstrutivos.

A possibilidade efetiva de que algo assim ocorra no decorrer de um processo analítico, todavia, está associada ao desenvolvimento progressivo no analista – e, afinal, no analisando – de uma capacidade bastante sofisticada: a capacidade de tolerar a condição última de desamparo. Para deixar avançar o processo de desconstrução das identidades alienantes, é necessário reconhecer na própria dinâmica mental a insuficiência da linguagem face à intensidade do fato de existir.

Quanto menos desenvolvida esta capacidade, mais se ancora o processo analítico numa dimensão egóica, com seus desejos, ideais, crenças e valores, à medida que é esta instância que servirá de suporte ao par como forma de evitar a angústia do real.

Quanto à especificidade do trabalho do analista, e de sua formação pessoal e profissional, é possível afirmar que um processo de transformação tão significativo quanto possível é necessário, a fim de que ele ou ela possa caminhar na direção de desidentificar-se de seus referenciais narcísicos e constituir-se como sujeito a partir do vazio. Trata-se de condição sine qua non para atender à exigência ética de colocar-se de lado, desapegar-se de si mesmo como abertura à alteridade encarnada naquele que repousa à sua frente, no divã.

Para conduzir o processo analítico rumo à radicalidade da experiência do vazio sem suportes, é necessário estruturar-se de modo a suportar tornar-se pura abertura: todo o ser do analista deve tornar-se escuta. A ausência em ser é necessária para ouvir o silêncio imanente à fala. E isso, como sublinhou Lacan, talvez seja um ideal inalcançável.

Pois o fundo sem fundo de onde emergem as palavras precede o eu, e portanto é refratário a tentativas de controle. É também, no entanto, responsável pela beleza fugaz dos gestos espontâneos, reveladores da singularidade escondida sob as próteses egóicas que a protegem dos olhares e julgamentos alheios.

Um analista inspirado por uma ética de desapego, desembaraçado das pressões coercitivas do eu, é capaz de experimentar, no seu ofício, a fruição poética do simples co-existir. Habitando uma paisagem mental de desprendimento de si, é possível que suas intervenções comecem a parecer um tanto acidentais, à medida em que se descobre capaz de contemplá-las como se não as tivesse produzido, como se tivessem brotado por si sós.

Não é, afinal, o ego pensante que as produz, e portanto elas não pertencem nem ao analista, nem ao paciente – são como pensamentos sem pensador. De fato, ao nos entregarmos ao fluir da experiência atual, renunciamos ao controle e, no limite, à autoria. Algo em nós age, movimenta e fala.
Com Fédida, a arte zen do psicanalista depende de um tempo de germinação próprio, no “espaço interno de recolhimento e repouso” de onde explode o cheio de luz que é o silêncio do vazio. O vazio que, no âmago do acontecimento analítico, “age e articula a tectônica dos movimentos”.

(*) André Camargo Costa é psicólogo licenciado pelo IP/FE USP, mestre em psicologia pelo IP/USP, psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae.


NOTAS

[1]1 J. Lacan, O Seminário: livro I: os escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1986 [1953], p. 9.
2 J. Lacan, op.cit., p. 9.
3 E. Roudinesco, Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 356.
4 W. J. Cherng, Introdução, in: Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude, de Lao Tse, São Paulo, Ursa Maior, 1996, p. 9.
5 Adaptado de W. J. Cherng, op. cit., p. 19.
6 E. Roudinesco, op. cit., p. 354.
7 Cf. E. Roudinesco e M. Plon, Dicionário de psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 502.
8 Cabe lembrar, como mencionado mais acima, que as idéias taoístas constituem parte fundamental do zen budismo. Elas compõem, ao lado das idéias confucionistas, o “elemento chinês” acrescentado ao Budismo original hindu que o permitiu assumir essa forma inédita de religião/filosofia: o budismo zen.
9 J. Lacan, op. cit., p. 27, grifo do autor.
10 ibid.
11 Cf. N. Silva Jr. “Modelos de subjetividade em Fernando Pessoa e Freud. Da catarse à abertura de um passado imprevisível”, in: M. E. C. Pereira (org.), Leituras da Psicanálise: estéticas da exclusão, Campinas, Mercado de Letras, 1998.
12 J. Birman, Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 46.
13 J. Lacan, op. cit., p. 19.
14 J. Lacan, op. cit., p. 27.
15 ibid., p. 25.
16 Neste texto os termos eu e ego estão sendo usados de forma indistinta.
17 E. Roudinesco e M. Plon, op. cit., p. 212.
18 J. Lacan, op. cit., p. 25.
19 cf. L. R. Monzani, Freud: o movimento de um pensamento, Campinas, Editora da UNICAMP, 1989, p. 244-9; R. Mezan, Freud: a trama dos conceitos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982, p. 175-188.
20 P. Fedida, Depressão, São Paulo, Editora Escuta, 1999, p. 111.
21 O segundo dualismo pulsional marca a instalação da incerteza no âmago do ser: às ameaças externas de destruição, às quais estamos irremediavelmente submetidos, juntam-se ameaças vindas do interior do corpo – os afetos sem contorno que irrompem de dentro e desestabilizam, para além das tentativas de controle.
22 O medo de existir, segundo esta abordagem, está relacionado às angústias de dissolução, de fragmentação e de engolfamento, verdadeiros alicerces da vida mental apoiada na linguagem. O medo de existir é correlato do medo de deixar de existir; só quem se ampara na autoconsciência pode ter medo de desaparecer, e portanto “eu” e sofrimento existencial podem ser considerados fenômenos co-emergentes. Conseqüentemente, para além do eu, não há medo das transformações inerentes ao nosso modo de ser – a dor, a velhice e a morte. Ultrapassar as fronteiras do ego, então, leva a experimentar-se, e ao mundo, não mais como entidades separadas, mas como fluxo.
23 M. Epstein, Pensamentos sem pensador: uma perspectiva budista para a psicoterapia, Rio de Janeiro, Gryphus, 1996, p. 92.
24 M. T. Berlinck, “O eu e as paixões”, in: M. T. Berlinck, Psicopatologia Fundamental, São Paulo, Escuta, 2000, p. 173.
25 S. Freud, Análise terminável e interminável, in: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XXIII, 1937.
26 R. Mezan, Freud: a trama dos conceitos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982, p. 188. Trata-se de uma citação referente ao capítulo III de O Ego e o Id (S. Freud, Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XIX, 1923).
27 O. Mannoni, “A desidentificação”, in: M. Mannoni, As identificações na clínica e na teoria psicanalítica, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994, p. 186.
28 Frase sugerida pelo Prof. Nelson da Silva Jr., em relação ao satori – a experiência de iluminação súbita do zen budismo.
29 O. Mannoni, op. cit., p. 175.
30 J. Lacan, op. cit., p. 11