Por: Antonio Delfim Netto
(VALOR)
Agora que a dura realidade começa a ensinar que “negócio da China só existe para chinês…”, talvez seja interessante tentar entender como foi criado o mais importante fenômeno econômico do último quartel do século XX. É claro que, como todo processo histórico, ele tem múltiplas causas. Num supremo esforço reducionista, entretanto, podemos encontrar a sua “causa causans” (a causa de todas as causas) na continuação do movimento estratégico dos EUA para isolar a URSS. Ele foi iniciado logo depois da vitória na Segunda Guerra e perseguido com afinco durante a Guerra Fria.
Na conferência de Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945), os representantes dos EUA, do Reino Unido e da extinta URSS decidiram como administrariam, em conjunto, a vencida Alemanha nazista e impuseram um ultimato ao Japão. Este rendeu-se, incondicionalmente, depois de experimentar os efeitos devastadores de duas bombas atômicas e foi ocupado, administrativamente, pelos EUA. A intrigante história das relações de Mao Tsé-tung com a União Soviética e a vitória sobre Chiang Kai-shek, que lhe deu o controle da China em 1949, ainda está para ser contada. Há evidências que, durante a guerra, tanto EUA como URSS o ajudaram para impedir a completa conquista da China pelo Japão.
Terminado o conflito armado, no final dos anos 40 o mundo estava claramente dividido entre países de inspiração democrática, cuja organização econômica se apoiava em mercados descentralizados, e países de inspiração autoritária, cuja organização econômica se inspirava numa espécie de “engenharia social”, o planejamento centralizado. Esta última vigorava na URSS e passou a vigorar na China, sob o controle da primeira, mas as relações entre elas foi se deteriorando a partir de 1956. Houve um rompimento em 1963, quando a “assistência técnica” soviética foi interrompida. Mao prosseguiu com seu voluntarismo até o desastre da Revolução Cultural (1976-1979).
Qual foi a reação estratégica dos EUA para enfrentar a dupla frente de oposição (a URSS na Europa e a China do Oriente)? Estimular a rápida e vigorosa expansão da Europa com o Plano Marshall e, particularmente, da Alemanha Ocidental, dando-lhe taxa de câmbio extremamente favorecida (4,2 marcos alemães/dólar) e abrindo-lhe o mercado para “segurar” a URSS na frente ocidental. Fez o mesmo com o Japão, modernizando suas instituições (com respeito a sua tradição), dando-lhe uma taxa de câmbio extremamente favorecida (360 ienes/dólar) e abrindo seu mercado, para “segurar” a China na frente oriental.
A economia centralizada sucumbiu na URSS (juntamente com o regime autoritário) com a queda do Muro de Berlim em 1989. Começou a morrer na China (com a permanência do regime autoritário) nos anos 70, quando o primeiro-ministro Chu En-lai (com Mao ainda vivo!) abriu negociações com os EUA e recuperou o pragmático Deng Xiaoping.
Em 1972, houve um acontecimento fundamental para a criação do “milagre chinês” que hoje conhecemos. Em Xangai, o presidente Richard Nixon e o primeiro-ministro Chu En-lai terminaram 23 anos de completo isolamento entre os EUA e a China, num comunicado em que se menciona, de passagem, uma desejada cooperação entre eles em “ciência e tecnologia”. As relações diplomáticas só foram restabelecidas em 1979, quando o presidente Jimmy Carter (1977-1981) assinou com Deng Xiaoping o Tratado da Cooperação em Ciência e Tecnologia.
Trinta anos depois (2009), o seu resultado é o seguinte:
1) mais de um milhão de estudantes chineses fizeram seus cursos nos EUA, 2/3 dos quais sob as condições especiais do tratado, especialmente em ciência e tecnologia;
2) nos anos mais recentes, 40% dos artigos escritos por cientistas chineses em publicações internacionais têm como co-autores cientistas americanos;
3) por outro lado, quase 8% dos artigos de cientistas americanos têm como co-autores cientistas chineses;
4) em 2004, as empresas americanas instaladas na China aplicaram mais de US$ 600 milhões em pesquisas (e desenvolvimento) - R&D - em laboratórios chineses. E esses investimentos têm crescido continuamente.
O segredo chinês, ou melhor, o “milagre chinês” seguiu os passos dos “milagres” alemão e japonês: 1) capacitação profissional (não necessária nos primeiros dois); 2) taxa de câmbio subvalorizada; e 3) abertura do mercado dos EUA. Neste caso houve, ainda, uma completa abertura (as zonas de exportação) ao investimento físico das empresas americanas para produzir na China e vender nos EUA. Quase 2/3 das exportações industriais chinesas são realizadas por empresas com algum capital americano. Com isso criou-se o atual mercado interno urbano da China com sua mão de obra chinesa barata submetida a um regime de capitalismo selvagem, que só agora começa a civilizar-se.
O motor de partida desse formidável “milagre” foi o não menos formidável déficit em conta corrente dos EUA de 2000 a 2008 registrado na tabela ao lado.
A competente administração chinesa soube usar, pragmaticamente, essa oportunidade para realizar seu eterno desejo de expansão, mas sabe, também, que seus interesses estão umbilicalmente ligados aos EUA.
O Brasil beneficiou-se desse movimento que multiplicou por sete as reservas totais em divisas dos países emergentes, que são fonte de financiamento do déficit americano. Entre 2002 e 2008, nossas reservas cresceram cinco vezes: de US$ 40 bilhões para US$ 200 bilhões (3/4 dos quais aplicados em bônus do Tesouro americano), que eliminaram nosso sufoco externo sem que fizéssemos qualquer esforço exportador significativo.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
(VALOR)
Agora que a dura realidade começa a ensinar que “negócio da China só existe para chinês…”, talvez seja interessante tentar entender como foi criado o mais importante fenômeno econômico do último quartel do século XX. É claro que, como todo processo histórico, ele tem múltiplas causas. Num supremo esforço reducionista, entretanto, podemos encontrar a sua “causa causans” (a causa de todas as causas) na continuação do movimento estratégico dos EUA para isolar a URSS. Ele foi iniciado logo depois da vitória na Segunda Guerra e perseguido com afinco durante a Guerra Fria.
Na conferência de Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945), os representantes dos EUA, do Reino Unido e da extinta URSS decidiram como administrariam, em conjunto, a vencida Alemanha nazista e impuseram um ultimato ao Japão. Este rendeu-se, incondicionalmente, depois de experimentar os efeitos devastadores de duas bombas atômicas e foi ocupado, administrativamente, pelos EUA. A intrigante história das relações de Mao Tsé-tung com a União Soviética e a vitória sobre Chiang Kai-shek, que lhe deu o controle da China em 1949, ainda está para ser contada. Há evidências que, durante a guerra, tanto EUA como URSS o ajudaram para impedir a completa conquista da China pelo Japão.
Terminado o conflito armado, no final dos anos 40 o mundo estava claramente dividido entre países de inspiração democrática, cuja organização econômica se apoiava em mercados descentralizados, e países de inspiração autoritária, cuja organização econômica se inspirava numa espécie de “engenharia social”, o planejamento centralizado. Esta última vigorava na URSS e passou a vigorar na China, sob o controle da primeira, mas as relações entre elas foi se deteriorando a partir de 1956. Houve um rompimento em 1963, quando a “assistência técnica” soviética foi interrompida. Mao prosseguiu com seu voluntarismo até o desastre da Revolução Cultural (1976-1979).
Qual foi a reação estratégica dos EUA para enfrentar a dupla frente de oposição (a URSS na Europa e a China do Oriente)? Estimular a rápida e vigorosa expansão da Europa com o Plano Marshall e, particularmente, da Alemanha Ocidental, dando-lhe taxa de câmbio extremamente favorecida (4,2 marcos alemães/dólar) e abrindo-lhe o mercado para “segurar” a URSS na frente ocidental. Fez o mesmo com o Japão, modernizando suas instituições (com respeito a sua tradição), dando-lhe uma taxa de câmbio extremamente favorecida (360 ienes/dólar) e abrindo seu mercado, para “segurar” a China na frente oriental.
A economia centralizada sucumbiu na URSS (juntamente com o regime autoritário) com a queda do Muro de Berlim em 1989. Começou a morrer na China (com a permanência do regime autoritário) nos anos 70, quando o primeiro-ministro Chu En-lai (com Mao ainda vivo!) abriu negociações com os EUA e recuperou o pragmático Deng Xiaoping.
Em 1972, houve um acontecimento fundamental para a criação do “milagre chinês” que hoje conhecemos. Em Xangai, o presidente Richard Nixon e o primeiro-ministro Chu En-lai terminaram 23 anos de completo isolamento entre os EUA e a China, num comunicado em que se menciona, de passagem, uma desejada cooperação entre eles em “ciência e tecnologia”. As relações diplomáticas só foram restabelecidas em 1979, quando o presidente Jimmy Carter (1977-1981) assinou com Deng Xiaoping o Tratado da Cooperação em Ciência e Tecnologia.
Trinta anos depois (2009), o seu resultado é o seguinte:
1) mais de um milhão de estudantes chineses fizeram seus cursos nos EUA, 2/3 dos quais sob as condições especiais do tratado, especialmente em ciência e tecnologia;
2) nos anos mais recentes, 40% dos artigos escritos por cientistas chineses em publicações internacionais têm como co-autores cientistas americanos;
3) por outro lado, quase 8% dos artigos de cientistas americanos têm como co-autores cientistas chineses;
4) em 2004, as empresas americanas instaladas na China aplicaram mais de US$ 600 milhões em pesquisas (e desenvolvimento) - R&D - em laboratórios chineses. E esses investimentos têm crescido continuamente.
O segredo chinês, ou melhor, o “milagre chinês” seguiu os passos dos “milagres” alemão e japonês: 1) capacitação profissional (não necessária nos primeiros dois); 2) taxa de câmbio subvalorizada; e 3) abertura do mercado dos EUA. Neste caso houve, ainda, uma completa abertura (as zonas de exportação) ao investimento físico das empresas americanas para produzir na China e vender nos EUA. Quase 2/3 das exportações industriais chinesas são realizadas por empresas com algum capital americano. Com isso criou-se o atual mercado interno urbano da China com sua mão de obra chinesa barata submetida a um regime de capitalismo selvagem, que só agora começa a civilizar-se.
O motor de partida desse formidável “milagre” foi o não menos formidável déficit em conta corrente dos EUA de 2000 a 2008 registrado na tabela ao lado.
A competente administração chinesa soube usar, pragmaticamente, essa oportunidade para realizar seu eterno desejo de expansão, mas sabe, também, que seus interesses estão umbilicalmente ligados aos EUA.
O Brasil beneficiou-se desse movimento que multiplicou por sete as reservas totais em divisas dos países emergentes, que são fonte de financiamento do déficit americano. Entre 2002 e 2008, nossas reservas cresceram cinco vezes: de US$ 40 bilhões para US$ 200 bilhões (3/4 dos quais aplicados em bônus do Tesouro americano), que eliminaram nosso sufoco externo sem que fizéssemos qualquer esforço exportador significativo.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.