sexta-feira, 30 de maio de 2008

Viveiros de Castro leu Artaud

Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se vai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida.
Antes de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura. E que é de um modo artificial que se pretende dirigir para a cultura pensamentos voltados apenas para a fome.
O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica á da fome.
Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e em que alguma coisa nos faz viver – e aquilo que sai do interior misterioso de nós mesmos não deve perpetuamente voltar sobre nós mesmos numa preocupação grosseiramente digestiva.
Quero dizer que se todos nos importamos com comer imediatamente, importa-nos ainda mais nãos desperdiçar apenas na preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome.
Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são a representação dessas coisas.
O que falta, certamente, não são sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura européia e francesa; mas quando foi que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?
Não diria que os sistemas filosóficos sejam coisas para se aplicar direta e imediatamente,mas de duas uma:
Ou esses sistemas estão em nós e estamos impregnados por eles a ponto de viver deles, e então que importam os livros? Ou não estamos impregnados por eles, e nesse caso não mereciam nos fazer viver; e de todo modo que importa que desapareçam?
É preciso insistir na idéia da cultura em ação e que se torna em nós como que um novo órgão, uma espécie de segundo espírito: e a civilização é cultura que se aplica e que rege até nossas ações mais sutis, o espírito presente nas coisas; e é artificial a separação entre a civilização e a cultura, com o emprego de duas palavras para significar uma mesma e idêntica ação.
Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas já quanto à palavra civilizado há confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem informado sobre sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações.
É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.
E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga idéias que deveriam permanecer divinas; pois, longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.
Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada adere mais á vida. E esta penosa cisão é a causa de as coisas vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das coisas; nunca se viram tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa impotência para possuir a vida.
(...)
Por mais que exijamos a magia, porém, no fundo temos medo de uma vida que se desenvolvesse inteiramente sob o signo da verdadeira magia.
(...)
Dito isso, pode-se começar a extrair uma idéia da cultura, uma idéia que é antes de tudo um protesto.
Protesto contra a idéia separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e de exercer a vida.
Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: a faculdade de reencontrá-las nos será tirada por algum tempo, mas não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento; assim, a cultura sem espaço nem tempo, e que nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá com maior energia. E é justo que de tempos em tempos se produzam cataclismos que nos incitem a retornar á natureza, isto é, a reencontrar a vida. O velho totemismo dos animais, das pedras, dos objetos carregados de energia fulminante, das roupas bestialmente impregnadas, em resumo tudo o que serve para captar, dirigir e derivar forças é, para nós, uma coisa morta da qual já não sabemos extrair senão um proveito artístico e estático, um proveito de fruidor e não um proveito de ator.
Ora, o totemismo é ator porque se mexe, e é feito para atores; e toda verdadeira cultura apóia-se nos meios bárbaros e primitivos do totemismo, cuja vida selvagem, isto é, inteiramente espontânea, quero adorar.
O eu nos fez perder a cultura foi nossa idéia ocidental da arte e o proveito que tiramos dela. Arte e cultura não podem andar juntas, contrariamente ao uso que se faz delas universalmente!
A verdadeira cultura age por sua exaltação e sua força e o ideal europeu de arte via lançar o espírito numa atitude separada da força e que assiste á sua exaltação. É uma idéia preguiçosa, inútil, e que a curto prazo, engendrara a morte. Se as múltiplas voltas da Serpente Quetzalcoatl são harmoniosas é porque expressam o equilíbrio e os desvios de uma força adormecida; e a intensidade das formas existe apenas para seduzir e captar uma força que na música, desperta um lancinante teclado.
Os deuses que dormem nos museus: o deus do Fogo com seu incensador que lembra o tripé da Inquisição; Tlaloc, um dos múltiplos deuses das Águas, com sua muralha de granito verde; a deusa Mãe das Águas, a Deusa Mãe das Flores; a expressão imóvel e que ressoa, sob a capa de várias camadas de água, da Deusa do vestido de jade verde; a expressão arrebatada e bem-aventurada, o rosto crepitando de aromas, em que os átomos do sol giram em círculos, da Deusa Mãe das Flores; essa espécie de servidão obrigatória de um mundo em que a pedra se anima porque foi tocada como se deve, o mundo dos civilizados orgânicos, quero dizer, cujos órgãos vitais também saem de seu repouso, esse mundo humano penetra em nós, participa da dança dos deuses, sem se voltar nem olhar para trás sob pena de se tornar, como nós mesmos, estátuas desagregadas.
No México, uma vez que se trata do México, não existe arte e as coisas servem. E o mundo está em perpétua exaltação.
À nossa idéia inerte e desinteressada da arte uma cultura autêntica opõe uma idéia mágica e violentamente egoísta, isto é, interessada. É o que os mexicanos captam o Manas, as forças que dormem em todas as formas e que não podem surgir de uma contemplação das formas por si sós, mas que surgem de uma identificação mágica com essas formas. E os velhos Totens lá estão para apressar a comunicação.
Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro.
É assim que aparece a idéia estranha de uma ação desinteressada, mas que mesmo assim é ação, e mais violenta por estar ao lado da tentação do repouso.
Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica: e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso.
(...)
É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer. E tudo o que não nasceu pode vir a nascer, contanto que não nos contentemos em permanecer simples órgãos de registro.
Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam. E, se é que ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente maldito nestes tempos, é deter artisticamente em formas, em vez de ser como supliciados que são queimados e fazem sinais sobre suas fogueiras.

Excerto de “Teatro e a cultura”, prefácio de Antonin Artaud ao seu livro O teatro e seu duplo.

Morte às obras-primas?!

Uma das razões da atmosfera asfixiantes, na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio – e pela qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentro nós -, é o respeito pelo que é escrito, formulado ou pintado e tomou forma, como se toda expressão já não estivesse exaurida e não tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas arrebentem para se começar tudo de novo.
É preciso acabar com a idéia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas.
As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.
É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa.
(...)
A massa, hoje como antigamente, é ávida de mistério; ela pede apenas para tomar consciência das leis segundo as quais o destino de manifesta e, talvez, adivinhar o segredo de suas aparições.
Deixemos aos peões a crítica dos textos, aos estetas a crítica de formas e reconheçamos que o que já foi dito não está mais por dizer; que uma expressão não vale duas vezes, não vive duas vezes; que toda palavra pronunciada morre e só age no momento em que é pronunciada, que uma forma usada não serve mais e só convida a que se procure outra...
Se a massa não vai às obras-primas literárias é porque essas obras-primas são literárias, isto é, fixadas; e fixadas em formas que já não respondem às necessidades do tempo.
Longe de acusar a massa e o público, devemos acusar o anteparo formal que interpomos entre nós e a massa, e essa forma de idolatria nova, essa idolatria das obras-primas fixadas, que é um dos aspectos do conformismo burguês.
Esse conformismo que nos faz confundir o sublime; as idéias, as coisas com as formas que tomaram através do tempo e em nós mesmos – em nossas mentalidades de esnobes, de preciosos e estetas que o público já não compreende.
Nisso tudo, será inútil acusar o mau gosto do público que se deleita com insanidades, enquanto não se mostrar ao público um espetáculo válido, e válido no sentido supremo do teatro, depois dos últimos grandes melodramas românticos, isto é, há cem anos.
O público que toma o falso por verdadeiro tem o senso do verdadeiro e sempre reage diante do verdadeiro quando colocado à sua frente. Não é porém em cena que se deve procurá-lo hoje, mas na rua; e, ofereça-se à massa das ruas uma ocasião para mostrar sua dignidade humana, que ela mostrará.
(...)
Nossa admiração literária por Rimbaud, Jarry, Lautréamont e alguns outros, que levou dois homens ao suicídio mas que para os outros se reduz a papinhos de bar, faz parte da idéia da poesia literária, da arte desligada, da atividade espiritual neutra, que nada faz e nada produz...
É preciso acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita. A poesia escrita vale uma única vez e, depois, que seja destruída. Que os poetas mortos cedam lugar aos outros. E poderíamos mesmo assim ver que é nossa veneração diante do que já foi feito, por mais belo e válido que seja, que nos petrifica, que nos estabiliza e nos impede de tomar contato com a força que está por baixo, que ela seja chamada energia pensante, força vital, determinismo das trocas, menstruação da lua ou o que bem se entender.
(...)
Trata-se de saber o que queremos. Se estamos prontos para a guerra, a peste, a fome e o massacre, nem precisamos dizer nada, basta continuar. Continuar nos comportando como esnobes e a nos locomover em massa para ver este ou aquele cantor, este ou aquele espetáculo admirável e que não ultrapassa o domínio da arte... esta ou aquela exposição de pintura de cavalete em que explodem aqui e ali algumas formas impressionantes mas casuais e sem uma consciência verídica das forças que poderiam acionar.

Excerto de “Acabar com as obras-primas” de Antonin Artaud. Capítulo de O teatro e seu duplo.