O que é mais gostoso? Um beijo roubado ou um merecido?
Tem se falado/escrito (sonhado!) muito sobre sonhos aqui. Mas e se falássemos de magia? Segue um texto de Agamben para reflexão. Será que sonhar não é chegar à "aldeia dos magos", onde só se fala por gestos?
Ter um nome é abrir mão da magia, e portanto da felicidade (liberdade?).
Magia e felicidade[1]
Benjamin disse certa vez, que a primeira experiência que a criança tem no mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de magia”. A afirmação, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível tristeza que às vezes toma conta da criança nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo. Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: “Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem alguma magia, certamente não me tocará. Para isso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural”.
As crianças, como os personagens das fábulas, sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio na garrafa, guardar em casa o burrinho-faz-dinheiro [asino cacabaiocchi] ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as ocasiões, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso. Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te-sésamo”, então e só então, pode realmente considerar-se bem aventurado.
Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer, a moral colocou desde sempre sua objeção. E o fez com as palavras do filósofo que, menos do que qualquer outro, compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz. “O que em ti tende ardorosamente para a felicidade”, escreve Kant, “é a inclinação; o que depois submete tal inclinação à condição de que deve primeiro ser digno da felicidade é tua razão”. Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!
Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma ética superior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz. Quem sente prazer de algo por encanto escapa da hybris implícita na consciência da felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido não é sua. Assim, Júpiter, que se une à bela Alcmena, assumindo as feições do consorte Anfitrião, não sente prazer com ela como Júpiter. Nem sequer , apesar das aparências, como Anfitrião. Sua alegria pertence totalmente ao encanto, e se sente prazer, consciente e puramente, só com o que se obteve pelos caminhos tortuosos da magia. Só o encantado pode dizer sorrindo: “eu”, e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida.
Essa é a razão última do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crer no divino e não aspirar a alcançá-lo (uma variável irônica é, em conversa de Kafka com Janouch, a afirmação de que há esperança, mas não para nós). Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós. Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros (felicidade significa, precisamente: para nós), mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada, não era para nós. Ou seja, por magia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com o gesto com que afastamos, de uma vez por todas, a tristeza infantil.
Se for assim, se não houver felicidade a não ser sentimo-nos capazes de magia, então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”. Tal definição está de acordo com antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Disso nascem as intermináveis listas de nomes – diabólicos ou angélicos – com os quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz.
Há, porém, outra e mais luminosa tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago, quanto, sobretudo, o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden, e, ao pronunciá-lo, os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços. Por isso, segundo a doutrina, a magia chama por felicidade. O nome secreto é, na realidade, o gesto com o qual a criatura é restituída ao inexpresso. Em última instância, a magia não é conhecimento dos nomes, mas gesto, desvio em relação ao nome. Por isso, a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria. Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos, mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto. Logo que o consegue, logo que inventa um novo nome, ela ostentará entra as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome, assim como a magia. Livre de nome, bem-aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos.
[1] In: AGAMBEN, GIORGIO. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
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