quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Crítica da vida cotidiana: breve comentário do primeiro capítulo




Não sei se alguém aqui já leu esse importante livro de Henri Lefebvre, livro que foi de grande influência nos primeiros momentos da Internacional Situacionista. Estou na metade do livro e gostaria de fazer alguns comentários, principalmente no que diz respeito ao primeiro capítulo.

Embora ainda esteja na metade do livro, já dá pra notar que a proposta é importantíssima e deve ser levada a sério ainda hoje. Acredito que afirmações como, “nós buscamos o humano muito longe, ou muito ‘profundamente’, nas nuvens ou nos mistérios, sendo que ele nos espera e nos cerca em toda parte”; ou ainda, “a história, a psicologia, a ciência do homem devem tornar-se um estudo da vida cotidiana”, descrevem muito bem o projeto de Lefebvre.
O tom desse estudo crítico da vida cotidiana será marxista, é claro; e esse marxismo já se anuncia no primeiro capítulo, quando Lefebvre faz uma crítica um tanto mordaz da filosofia, da arte, da prosa e da poesia, desde finais do século XIX até seus dias. Um de seus primeiros alvos é André Breton e o surrealismo. O que Lefebvre critica é o fato desses movimentos, ao tentarem colocar o maravilhoso no cotidiano, nos objetos familiares, acabaram por negar o mundo real, e não por transformá-lo de fato. Além disso, afirma que a crítica colocada por movimentos como o surrealismo era leviana e alucinada demais para que dela se tirasse alguma análise lúcida. Para ele todos esses movimentos tinham como objetivo viver fora do real.
São também alvos de Lefebvre Heidegger e o círculo existencialista. Vale citá-lo:
“(...) A angústia, o mistério (o sentimento do mistério) são irredutíveis às teorias, impossíveis de se por em teoria. A angústia verdadeira, aquela de uma criança perdida, de um primitivo perdido na floresta, de um ser completamente frágil e desarmado diante da natureza, essa angústia nos escapa. (...) Mesmo nesse momento, a ação, o trabalho, o amor, o pensamento, a busca da verdade e do belo criam realidades que ultrapassam o indivíduo perecível. E não é porque essas afirmações tornaram-se banais e porque foram muito usadas – às vezes aos piores fins – que cessaram de ser verdade. Ao contrário... reergamos as certezas na comunidade humana, renovemos, restabeleçamos em sua força e sua juventude esses elementos do humano. Filósofos, metafísicos, vocês uivam à morte como cães! Mas não, perdão, vocês fazem pose. Vocês têm da morte uma idéia sofisticada da qual podem fazer uso, a qual podem repetir e misturar a todos os momentos de suas vidas; e vocês me convidam a seguir-lhes, a aceitar esse último fantasma. Mas esse ‘outro’, essa ausência, esse sentimento trágico da existência, essa consciência absurda, eu as encontro nos homens que levam suas vidas com bastante habilidade e sucesso; discorre-se sobre a angústia nas salas de conferência, diante de um público mundano, e ela se tornar um tema de dissertações escolares; escreve-se sobre a angústia nos Cafés ou nas redações de jornais; e se escreve de forma engenhosa, fina, técnica, com vocabulário refinado. As flores que se joga à morte não são mais que retórica. Os metafísicos “existencialistas” mais profundos... não impediram a degradação e o deslocamento da angústia. A angústia bruta, primitiva, se distancia de nós; e a reencontramos, não mais que num momento de fraqueza, e ela não nos leva a nada de ‘autêntico’ ou a uma profundidade abissal”.

A crítica prossegue, sem misericórdia, contra Rimbaud, contra Baudelaire, contra a poesia, contra os neo-românticos... todos culpados de um culto injustificado do fantástico, do misterioso e do mágico. Na verdade não compartilho inteiramente com Lefebvre, acho que ele se esquece de que o mágico, o fantástico e o misterioso estão presentes sim na vida cotidiana. O fantástico em Hoffmann, por exemplo, não desvia nossos olhos do real, mas os abre mais ainda e enxergamos coisas que antes pareciam escondidas. Eu acredito na força do mágico e do fantástico. Mas é preciso concordar que Lefebvre tem um bom argumento: de fato, muitas vezes, esquecemos de colocar esse mágico e esse fantástico em ação; esquecemos de transformar o mundo de acordo com nossos sonhos mais loucos; resignamos-nos em sonhar. Vale, então, acabar com uma extraordinária afirmação do autor:
"Não é na vida cotidiana que o homem deve realizar sua vida de homem? A teoria dos momentos sobre-humanos é inumana. Não é na vida de cada dia que é preciso ter a verdade em uma alma e em um corpo? O homem será cotidiano ou não será”.
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Comentário de jholland, em 24/01/2007, às 10:27 hs


Estou inteiramente de acordo com voce.

De fato, a importância desse filósofo marxista está em resgatar o cotidiano dentro da reflexão filosófica - o que também ocorreu no âmbito da historiografia, como atestam as histórias das mentalidades, do cotidiano etc - algo muito bem aproveitado pelos situacionistas. E esse tipo de reflexão guarda toda sua importância e atualidade (vide a esse respeito, a postagem "O Senso-comum e a Vida Cotidiana" de 18/07/2007, neste Blog, que traz um artigo de José de Souza Martins). Na minha opinião, é claro, os situacionistas foram mais longe, incluindo as experiências surrealistas dentro das preocupações de Lefebvre e agindo de acordo com elas ("devemos viver poeticamente", "a arte deve se fundir ao cotidiano" etc).

Tudo isso, na verdade, tem implicações profundas e penso que não devemos subestimar a importância dessa questão, muito bem frisada pelos próprios situacionistas e pelas vanguardas da primeira metade do século XX. Pois se ao trazermos o mistério, o fantástico, o não-domesticável para o cotidiano e para a reflexão, incorporando-o, rompemos, na verdade, com a própria razão e com as cisões do aparelho psíquico. Ou seja, trata-se de uma crítica à razão levada ao seu grau mais alto - e devemos lembrar aqui as reflexões de Deleuze, para citar um exemplo. Libertar o cotidiano pressupõe não apenas o rompimento das amarras detectadas pela razão egóica (por exemplo, pelo marxismo), mas uma ruptura interna, dentro do sujeito, o que, evidentemente, implica em uma reformulação epistemológica, uma transmutação do próprio ser e do pensar (que não mais é pensar, mas sentir, perceber , intuir e agir, tudo isso fundido). E aqui acho realmente que Lefebvre está "aquém" do desafio que até mesmo aquelas vanguardas já haviam percebido.
Por isso, tenho a impressão que Debord concordaria com voce, naquilo que se refere à dimensão do fantástico e do mistério. E também por isso, vejo nesse resgate das dimensões mais inconscientes, misteriosas e incontroláveis, promovido pelos movimentos de vanguarda, um distanciamento em relação ao marxismo. Talvez seja essa a razão pela qual Debord iria desferir duríssimos ataques contra Lefebvre posteriormente, chamando-o (injustamente, penso) de stalinista etc.

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Comentários u.s.w, 24 de janeiro de 2008, 11h00

Realmente sinto que faltou a Lefebvre, agora tendo lido mais dois capítulos, ousar na sua exposição e na sua proposta. No fundo, escondido no texto, ele deixa escapar momentos de poesia e alumbramento, mas tem sempre o cuidado de voltar para um “marxismo científico” muito correto. Acho que temia exatamente – e nesse sentido acho que sua crítica tem certa fundamentação – a perda de contato com o mundo das ações políticas que o delírio das vanguardas acabou trazendo, o que significa um abandono do real e não sua transformação. Unir o delírio à ação política foi o objetivo dos situacionistas e, pelo pouco que sei, foram bem sucedidos. Entretanto, Lefebvre, numa entrevista que você já enviou pra gente, faz algumas boas críticas a Debord, aproximando-o, no final, a Breton: segundo Lefebvre, Debord tornou-se quase que dogmático. Não conheço muito, ainda, dos situacionistas para avaliar essa crítica, talvez você possa falar mais.
Acho que vou postar a entrevista aqui no Blog.

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Comentário de jholland, de 24/01/2008, às 11:35 hs

Eu tenho uma posição clara nesse debate: creio que o marxismo está "aquém", por se inserir, ainda, dentro do que chamei de uma razão-egóica. Acho que Lefebvre já representa um avanço, um início de uma crítica a esse paradigma. Mas ainda se encontra um tanto indeciso em "dar o salto". As vanguardas do início do século XX, por sua vez, já iniciam esse salto, afastando-se bem mais dessa mesma "razão-egóica" - o que, aliás, já havia sido anunciado pelas vanguardas do final do século XIX (aquelas mesmas criticadas por Lefebvre !) - e por Nietzsche e a psicanálise. Debord retoma a crítica contundente das vanguardas, reavivando-as. Discordo de voce no tocante à crítica das vanguardas (promoveram um "afastamento" da ação "política": para as vanguardas, não há ação "política", pois as esferas "política", "artística" etc. se dissolvem...). Acho que o projeto delas era muito mais revolucionário que o de Lefebvre, por exemplo. A crítica deste àquelas é bem sintomática de sua perspectiva "racional-egóica", não compreendeu que a ação não somente deve ser pensada e executada, mas deve ser intuida e já "elaborada" dentro de pressupostos completamente impensáveis e inconcebíveis se o próprio ator-sujeito (ou seja, Lefebvre) não mudar de paradigma (no caso, o paradigma dele, falando aqui do ponto mais pessoal possível). Acho que Debord avançou muito nesse ponto, mas também ele não atingiu o "ponto de transmutação" necessário - pois senão teria se transformado em um Buda ou algo assim !

Mas devemos reconhecer o seguinte: o "quantum" de energia liberada pelas vanguardas e pelo Situacionismo já foi suficiente para detonar um terremoto sem precedentes no mundo, cujos reflexos abalaram a filosofia e o cotidiano até hoje. Tanto assim que o sistema neo-dadá teve que se transformar profundamente para absorver esse choque promovido por meia dúzia de pessoas ! Isso dá uma dimensão do que pode acontecer quando começamos a liberar as energias represadas no inconsciente e a romper as cisões psíquicas...

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Comentário de u.s.w, 24/01/2008, 14h01

Sabia que você tinha mais pra falar.

Tenho muito que refletir sobre isso.

Tenho algumas idéias/metas para esse ano que significam mudanças mínimas de comportamentos cotidianos, mas que podem fazer certa diferença.

Só tenho um senão: tal salto radical deixa de fora muita gente. Eu tenho sempre em mim essa vontade de aceitação maior - talvez, concordo, por me sentir de fora de um processo de emancipação tão contundente - da vida prosaica. Gosto de pensar que mesmo a dona de casa mais conformada é capaz de pequenas revoluções, pequenas liberdades... Repito: talvez seja uma esperança comigo mesma, algo que me justifique...

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Comentário de jholland, em 25/01/2008, às 11:00 hs

Gostaria de acrescentar somente duas observações:

1) acho sua intuição corretíssima, importante e que deve ser levada a sério. Em primeiro lugar, pelas razões que coloquei acima e que são de ordem pessoal, em relação a você mesma. Coerentemente, quando você começa a se levar a sério, suas intuições emergem, e voce deve também levá-las a sério, como parte do projeto de "transmutação" pessoal do qual também fazem parte qualquer reflexão teórica e prática política etc. Tudo vem junto e voce deve estar atenta a si própria o tempo todo, a fim de que voce não exclua nada, absolutamente nada. Assim, se voce tem "uma vaga impressão" de que algo não é bem assim, ou que "falta algo" ou que "não cai bem" etc etc., você deve levar isso que chamei de intuição muito a sério e deve analisar, sentir e vivenciar esse sentimento com todo cuidado e delicadeza, incorporando-o, sempre que possível, na sua reflexão, no seu viver etc. Portanto, minha percepção é de que voce deve ir em frente.

Por outro lado, concordo também com voce, pois essa transmutação - que ocorre também no nível epistemológico, discursivo, teórico etc etc - deve ser sempre INCLUSIVA, ou seja, deve não apenas incluir todas as manifestações da psiqué (da sua própria psiqué, como abertura e quebra das cisões, superação dos recalques etc), como também ter como princípio a inclusão do Outro (como consequencia daquelas superações internas). Toda ação-reflexão deve ser um exercício de compaixão (não só para consigo mesmo mas para com o outro). E é também nesse sentido que reafirmo o avanço dos movimentos de vanguarda do final do século XIX e início do XX, incluindo aí os Situacionistas. Tudo bem que Debord talvez fosse sectarista...é uma questão ainda em aberto. Mas ele estava consciente desse problema - e talvez não tivesse se auto-transformado o suficiente...

2) a segunda observação diz respeito à própria entrevista do H. Lefbvre, acima. Chamou-me muito a atenção o início da entrevista. Pois, embora eu não conheça o contexto dela, é muito significativo que ele tenha feito questão de puxar o assunto "situacionismo", como se fosse uma ferida ainda aberta dentro dele. Hmmm...a entrevista foi dada muitos anos após esses eventos, já no final da vida desse importante filósofo. É interessante notar que o situacionismo já era questão passada na trajetória de Lefevbre, pois no final dos anos 60 e anos 70 ele se ocupou de sociologia agrária e outras questões. Por que teria levantado esse assunto tantos anos depois ? Acredito que ele não tenha "resolvido" a questão dentro dele por um motivo muito importante e que tem a ver com tudo o que dissemos acima. Por se tratado de uma experiência radical - da qual o próprio H. Lefebvre tem orgulho de ter co-participado, por algum momento - ele reconhece intimamente a validade e a atualidade das questões levantadas, tendo mesmo mexido com o inconsciente dele e de toda a coletividade !

A água, recurso estratégico no século XXI




Transcrevo abaixo duas pequenas matérias sobre a crescente importância das reservas de água doce, num mundo de configuração imperial.

O primeiro artigo é um pequeno relato de dois participantes do Fórum de Davos, assumindo portanto a perspectiva das elites econômicas e políticas.

O segundo artigo, de Gilberto Dupas, é mais instigante, tratando das consequências estratégicas e geopolíticas dessa questão.




23/1/2008

Primeiro artigo: "Atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada na produção de alimentos e tecidos"



"Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina", constatam Klaus Schwab, undador e presidente-executivo do World Economic Forum; e Peter Brabeck-Letmathe é presidente e chief-executive officer da Nestlé, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 23-01-2008.


Informando que este será um dos temas a ser discutido em Davos, eles afimam que "não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura".

Eis o artigo.


Com economias e populações crescentes, o mundo está à beira de uma crise de abastecimento de água. É importante ter consciência exatamente de qual o montante de água necessário para fazer a economia funcionar. Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina. Até a produção das necessidades mais básicas da economia, como cimento, aço, químicas, mineração e geração de energia precisam de toneladas de água.

Em 2007 testemunhamos o impacto nos preços dos alimentos causado pela combinação de seca e migração de safras para a produção de biocombustíveis. A água é o maior problema que podemos ver nesse assunto, pois tem o potencial de gerar um impacto muito mais profundo nos consumidores e eleitores. Nas áreas agrícolas ao redor do mundo, que ajudam a alimentar populações urbanas de rápido crescimento, estamos nos aproximando do momento em que serão necessárias concessões dolorosas. Devemos usar a água tão escassa para alimentos, combustível, pessoas e cidades ou para o crescimento industrial? Qual a quantidade exata de água de um rio que pode ser represada? Como encontramos medidas para garantir que cada participante da economia consiga receber a água necessária para suas necessidades humanas e aspirações culturais e econômicas? E como podemos garantir a preservação do meio ambiente e seu desenvolvimento?

São perguntas difíceis. Ao contrário da redução de carbono, não existe uma alternativa, nenhum substituto. E não existe uma solução global que possa ser negociada. A água é local, por isso bacias de água serão pontos de grande tensão no futuro. São áreas grandes, que alimentam os maiores rios do mundo. Essas regiões abrigam milhões de pessoas, áreas para agricultura, florestas, cidades, indústrias e, freqüentemente, atravessam várias fronteiras políticas. A água utilizada para agricultura, na produção de alimentos e tecidos, será estudada com atenção - atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada nesses setores.

A pedido do International Water Management Institute, 500 cientistas testaram a água usada para a agricultura. O relatório desse estudo levou cinco anos para ser produzido e mostrou que não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura.

As mudanças climáticas devem acelerar esse processo, tornando-o ainda pior. O último relatório do IPCC mostrou que, se as temperaturas médias globais subirem em 3 graus Celsius, centenas de milhões de pessoas sofrerão com a falta de água. Esse é o alerta que precisávamos para começar a agir.

Os indícios dessa crise devem começar a aparecer nos próximos anos. E isso tudo em conjunto com a situação moralmente indefensável de 20% da população global que ainda vive sem acesso à água potável.

Mas ainda não é uma catástrofe. A solução se encontra em uma ação coletiva. As empresas podem otimizar a utilização da água e conseguir avanços significativos. Existem muitos casos de sucesso. Mas todos devem trabalhar juntos para mudar o cenário. Isso torna o desafio ainda mais difícil. Ainda há tempo para enfrentar esse problema. Com rapidez, inovação e novas formas de colaboração entre governo e empresas essa crise ainda pode ser evitada.

É nesse contexto que estaremos nos reunindo no Encontro Anual do World Economic Forum para debater o perfil político e econômico da água - para conscientizar colegas de trabalho, políticos e a sociedade sobre a necessidade de mudança para enfrentar esse desafio. Como podemos começar agora para garantir um mundo com água suficiente para todos no futuro, inclusive para nossos próprios negócios, até 2020? O nosso objetivo nessa reunião em Davos, na Suíça, é de criar uma Parceria Público-Privada inédita, de alto impacto, para ajudar a encontrar meios de gerir as necessidades futuras de água antes que haja uma crise.












Segundo artigo: Conflitos por água doce


Por: Gilberto Dupas


"A importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm", constata Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 19-01-2008. Segundo ele, a "América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos".

Eis o artigo:



Na medida em se torna globalmente mais escassa, a água doce deixa de ser considerada um bem público. De acordo com o poder dos diferentes grupos, ela se torna propriedade cada vez mais privada e menos comum, gerando um grave conflito ecológico distributivo. No caso do Brasil, a complexa e pouco aprofundada polêmica sobre a transposição das águas do Rio São Francisco é um importante ensaio inicial sobre essa questão.

Os severos estragos que a poluição por resíduos químicos e o aquecimento planetário estão fazendo nos estoques mundiais de água doce os colocam como prioridade na discussão estratégica sobre poder - e pode abrir imensas oportunidades para a América do Sul. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), já há mais de 1 bilhão de pessoas no planeta com severa carência de água potável; e vários cenários internacionais consideram que a disputa pelo acesso a ela poderá conduzir a inúmeros conflitos regionais. Uma pesquisa feita pela CIA, pelo Ministério de Defesa britânico e pela PriceWaterhouseCoopers prevê várias possibilidades de futuras guerras por água no Oriente Médio, Ásia e África subsaariana. Na Europa, enquanto bilhões de euros são gastos na despoluição dos seus rios, cresce o mercado de importação desse líquido vital. A água doce não poluída de superfície já não é suficiente para atender à população dos EUA. Mais grave ainda é a situação das águas subterrâneas, envenenadas progressivamente por produtos químicos e bactérias, pela marcha da industrialização. A redução da disponibilidade de água já está gerando pesadas disputas naquele país. Os consumidores consideram-na um bem público essencial à saúde e à vida. Já os fornecedores negam qualquer relação entre acesso à água potável e temas como direitos humanos e questões sociais. Em busca de novas possíveis fontes de água, a atenção dos norte-americanos volta-se para o sul do continente. Alguns especialistas detectam estar-se moldando uma Doutrina Monroe ambiental, segundo a qual os recursos naturais do Hemisfério devem levar em conta as prioridades dos EUA. O México, com situação ainda tranqüila, pode vir a ser o primeiro a ser pressionado.

Esse quadro crítico, no entanto, se inverte na América do Sul, onde a água doce ainda é abundante. Com 12% da população mundial, possuímos 47% das reservas de água globais, e boa parte delas se encontra submersa. Às grandes Bacias do Amazonas, do Orenoco e do Prata, mais inúmeros rios, lagos e estuários, se somam aqüíferos de grande porte, entre os quais o Guarani - o terceiro maior do mundo -, espalhado pelos territórios do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e da Argentina. Muitos estudiosos acreditam que quem controlar os recursos ambientais da tríplice fronteira - o que inclui aquele aqüífero - terá a seu dispor matérias-primas essenciais para a manutenção da vida e para a sustentabilidade de processos produtivos geradores de desenvolvimento econômico e social em amplas áreas do Cone Sul.

Quanto à exportação de água, é preciso lembrar que sua forma mais eficaz ocorrerá de maneira crescente por via indireta, por meio de alimentos e produtos industrializados que a utilizem em seu processo produtivo. São necessários 1.650 litros de água para produzir 1 kg de soja, 1.900 para 1 kg de arroz, 3.500 para 1 kg de aves e 15 mil para 1 kg de carne bovina. O mesmo ocorre com produtos industrializados. São 10 litros de água para 1 de gasolina, 95 para 1 kg de aço, 324 para 1 kg de papel e 600 litros para 1 kg de cana-de-açúcar voltada para a produção de etanol. Como se vê, a importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm. A América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos. No caso dos industrializados, a água agrega ainda mais valor em função do maior preço. Se esses fatores não forem adequadamente incluídos nos preços, a divisão internacional do trabalho e da produção poderá impor mais uma vez restrições futuras importantes aos países sul-americanos.

Há quem chame também a atenção para eventuais ações norte-americanas na América do Sul. Estudo realizado por John Ackerman, do Air Command and Staff College da US Air Force, diz: “Nós (EUA) deveremos passar progressivamente da guerra contra o terrorismo para o novo conceito de segurança sustentável.” E cita, como motivações para intervenções armadas, secas, crises da água e eventos meteorológicos extremos. O Center for Naval Analysis, em relatório recente, asseverou que “a mudança climática é uma realidade e os EUA, bem como o Exército, precisam se preparar para as suas conseqüências”. Na mesma perspectiva, o Plano do Exército Argentino 2025 vê “a possibilidade de conflito com outros Estados pela posse de recursos naturais”, com destaque para o Aqüífero Guarani, como o problema que mais tem possibilidades de conduzir a conflitos bélico com vizinhos. E afirma que o país “deverá desenvolver organizações militares com capacidade para defender a nação de um inimigo convencional superior”, incluindo a organização de resistência civil.

Como vemos, a América do Sul pode ter na escassez da água doce global uma enorme vantagem mundial, ou meter-se em encrencas internas e hemisféricas. Tudo depende de bom senso, visão estratégica e articulação conjunta entre os países da região. Essa é uma oportunidade preciosa, num mundo que caminha para difíceis impasses.