Embora ainda esteja na metade do livro, já dá pra notar que a proposta é importantíssima e deve ser levada a sério ainda hoje. Acredito que afirmações como, “nós buscamos o humano muito longe, ou muito ‘profundamente’, nas nuvens ou nos mistérios, sendo que ele nos espera e nos cerca em toda parte”; ou ainda, “a história, a psicologia, a ciência do homem devem tornar-se um estudo da vida cotidiana”, descrevem muito bem o projeto de Lefebvre.
A crítica prossegue, sem misericórdia, contra Rimbaud, contra Baudelaire, contra a poesia, contra os neo-românticos... todos culpados de um culto injustificado do fantástico, do misterioso e do mágico. Na verdade não compartilho inteiramente com Lefebvre, acho que ele se esquece de que o mágico, o fantástico e o misterioso estão presentes sim na vida cotidiana. O fantástico em Hoffmann, por exemplo, não desvia nossos olhos do real, mas os abre mais ainda e enxergamos coisas que antes pareciam escondidas. Eu acredito na força do mágico e do fantástico. Mas é preciso concordar que Lefebvre tem um bom argumento: de fato, muitas vezes, esquecemos de colocar esse mágico e esse fantástico em ação; esquecemos de transformar o mundo de acordo com nossos sonhos mais loucos; resignamos-nos em sonhar. Vale, então, acabar com uma extraordinária afirmação do autor:
Estou inteiramente de acordo com voce.
De fato, a importância desse filósofo marxista está em resgatar o cotidiano dentro da reflexão filosófica - o que também ocorreu no âmbito da historiografia, como atestam as histórias das mentalidades, do cotidiano etc - algo muito bem aproveitado pelos situacionistas. E esse tipo de reflexão guarda toda sua importância e atualidade (vide a esse respeito, a postagem "O Senso-comum e a Vida Cotidiana" de 18/07/2007, neste Blog, que traz um artigo de José de Souza Martins). Na minha opinião, é claro, os situacionistas foram mais longe, incluindo as experiências surrealistas dentro das preocupações de Lefebvre e agindo de acordo com elas ("devemos viver poeticamente", "a arte deve se fundir ao cotidiano" etc).
Tudo isso, na verdade, tem implicações profundas e penso que não devemos subestimar a importância dessa questão, muito bem frisada pelos próprios situacionistas e pelas vanguardas da primeira metade do século XX. Pois se ao trazermos o mistério, o fantástico, o não-domesticável para o cotidiano e para a reflexão, incorporando-o, rompemos, na verdade, com a própria razão e com as cisões do aparelho psíquico. Ou seja, trata-se de uma crítica à razão levada ao seu grau mais alto - e devemos lembrar aqui as reflexões de Deleuze, para citar um exemplo. Libertar o cotidiano pressupõe não apenas o rompimento das amarras detectadas pela razão egóica (por exemplo, pelo marxismo), mas uma ruptura interna, dentro do sujeito, o que, evidentemente, implica em uma reformulação epistemológica, uma transmutação do próprio ser e do pensar (que não mais é pensar, mas sentir, perceber , intuir e agir, tudo isso fundido). E aqui acho realmente que Lefebvre está "aquém" do desafio que até mesmo aquelas vanguardas já haviam percebido.
Por isso, tenho a impressão que Debord concordaria com voce, naquilo que se refere à dimensão do fantástico e do mistério. E também por isso, vejo nesse resgate das dimensões mais inconscientes, misteriosas e incontroláveis, promovido pelos movimentos de vanguarda, um distanciamento em relação ao marxismo. Talvez seja essa a razão pela qual Debord iria desferir duríssimos ataques contra Lefebvre posteriormente, chamando-o (injustamente, penso) de stalinista etc.
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Comentários u.s.w, 24 de janeiro de 2008, 11h00
Realmente sinto que faltou a Lefebvre, agora tendo lido mais dois capítulos, ousar na sua exposição e na sua proposta. No fundo, escondido no texto, ele deixa escapar momentos de poesia e alumbramento, mas tem sempre o cuidado de voltar para um “marxismo científico” muito correto. Acho que temia exatamente – e nesse sentido acho que sua crítica tem certa fundamentação – a perda de contato com o mundo das ações políticas que o delírio das vanguardas acabou trazendo, o que significa um abandono do real e não sua transformação. Unir o delírio à ação política foi o objetivo dos situacionistas e, pelo pouco que sei, foram bem sucedidos. Entretanto, Lefebvre, numa entrevista que você já enviou pra gente, faz algumas boas críticas a Debord, aproximando-o, no final, a Breton: segundo Lefebvre, Debord tornou-se quase que dogmático. Não conheço muito, ainda, dos situacionistas para avaliar essa crítica, talvez você possa falar mais.
Acho que vou postar a entrevista aqui no Blog.
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Comentário de jholland, de 24/01/2008, às 11:35 hs
Eu tenho uma posição clara nesse debate: creio que o marxismo está "aquém", por se inserir, ainda, dentro do que chamei de uma razão-egóica. Acho que Lefebvre já representa um avanço, um início de uma crítica a esse paradigma. Mas ainda se encontra um tanto indeciso em "dar o salto". As vanguardas do início do século XX, por sua vez, já iniciam esse salto, afastando-se bem mais dessa mesma "razão-egóica" - o que, aliás, já havia sido anunciado pelas vanguardas do final do século XIX (aquelas mesmas criticadas por Lefebvre !) - e por Nietzsche e a psicanálise. Debord retoma a crítica contundente das vanguardas, reavivando-as. Discordo de voce no tocante à crítica das vanguardas (promoveram um "afastamento" da ação "política": para as vanguardas, não há ação "política", pois as esferas "política", "artística" etc. se dissolvem...). Acho que o projeto delas era muito mais revolucionário que o de Lefebvre, por exemplo. A crítica deste àquelas é bem sintomática de sua perspectiva "racional-egóica", não compreendeu que a ação não somente deve ser pensada e executada, mas deve ser intuida e já "elaborada" dentro de pressupostos completamente impensáveis e inconcebíveis se o próprio ator-sujeito (ou seja, Lefebvre) não mudar de paradigma (no caso, o paradigma dele, falando aqui do ponto mais pessoal possível). Acho que Debord avançou muito nesse ponto, mas também ele não atingiu o "ponto de transmutação" necessário - pois senão teria se transformado em um Buda ou algo assim !
Mas devemos reconhecer o seguinte: o "quantum" de energia liberada pelas vanguardas e pelo Situacionismo já foi suficiente para detonar um terremoto sem precedentes no mundo, cujos reflexos abalaram a filosofia e o cotidiano até hoje. Tanto assim que o sistema neo-dadá teve que se transformar profundamente para absorver esse choque promovido por meia dúzia de pessoas ! Isso dá uma dimensão do que pode acontecer quando começamos a liberar as energias represadas no inconsciente e a romper as cisões psíquicas...
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Comentário de u.s.w, 24/01/2008, 14h01
Sabia que você tinha mais pra falar.
Tenho muito que refletir sobre isso.
Tenho algumas idéias/metas para esse ano que significam mudanças mínimas de comportamentos cotidianos, mas que podem fazer certa diferença.
Só tenho um senão: tal salto radical deixa de fora muita gente. Eu tenho sempre em mim essa vontade de aceitação maior - talvez, concordo, por me sentir de fora de um processo de emancipação tão contundente - da vida prosaica. Gosto de pensar que mesmo a dona de casa mais conformada é capaz de pequenas revoluções, pequenas liberdades... Repito: talvez seja uma esperança comigo mesma, algo que me justifique...
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Comentário de jholland, em 25/01/2008, às 11:00 hs
Gostaria de acrescentar somente duas observações:
1) acho sua intuição corretíssima, importante e que deve ser levada a sério. Em primeiro lugar, pelas razões que coloquei acima e que são de ordem pessoal, em relação a você mesma. Coerentemente, quando você começa a se levar a sério, suas intuições emergem, e voce deve também levá-las a sério, como parte do projeto de "transmutação" pessoal do qual também fazem parte qualquer reflexão teórica e prática política etc. Tudo vem junto e voce deve estar atenta a si própria o tempo todo, a fim de que voce não exclua nada, absolutamente nada. Assim, se voce tem "uma vaga impressão" de que algo não é bem assim, ou que "falta algo" ou que "não cai bem" etc etc., você deve levar isso que chamei de intuição muito a sério e deve analisar, sentir e vivenciar esse sentimento com todo cuidado e delicadeza, incorporando-o, sempre que possível, na sua reflexão, no seu viver etc. Portanto, minha percepção é de que voce deve ir em frente.
Por outro lado, concordo também com voce, pois essa transmutação - que ocorre também no nível epistemológico, discursivo, teórico etc etc - deve ser sempre INCLUSIVA, ou seja, deve não apenas incluir todas as manifestações da psiqué (da sua própria psiqué, como abertura e quebra das cisões, superação dos recalques etc), como também ter como princípio a inclusão do Outro (como consequencia daquelas superações internas). Toda ação-reflexão deve ser um exercício de compaixão (não só para consigo mesmo mas para com o outro). E é também nesse sentido que reafirmo o avanço dos movimentos de vanguarda do final do século XIX e início do XX, incluindo aí os Situacionistas. Tudo bem que Debord talvez fosse sectarista...é uma questão ainda em aberto. Mas ele estava consciente desse problema - e talvez não tivesse se auto-transformado o suficiente...
2) a segunda observação diz respeito à própria entrevista do H. Lefbvre, acima. Chamou-me muito a atenção o início da entrevista. Pois, embora eu não conheça o contexto dela, é muito significativo que ele tenha feito questão de puxar o assunto "situacionismo", como se fosse uma ferida ainda aberta dentro dele. Hmmm...a entrevista foi dada muitos anos após esses eventos, já no final da vida desse importante filósofo. É interessante notar que o situacionismo já era questão passada na trajetória de Lefevbre, pois no final dos anos 60 e anos 70 ele se ocupou de sociologia agrária e outras questões. Por que teria levantado esse assunto tantos anos depois ? Acredito que ele não tenha "resolvido" a questão dentro dele por um motivo muito importante e que tem a ver com tudo o que dissemos acima. Por se tratado de uma experiência radical - da qual o próprio H. Lefebvre tem orgulho de ter co-participado, por algum momento - ele reconhece intimamente a validade e a atualidade das questões levantadas, tendo mesmo mexido com o inconsciente dele e de toda a coletividade !