"Em um mundo de egoístas, desprovido de governo central, em que condições pode emergir a cooperação?", pergunta José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, em artigo publicado pelo jornal Valor, 24-06-2014.
Eis o artigo.
Até
o início dos anos 1980 o darwinismo foi amesquinhado pela concepção de
que a sobrevivência dos mais aptos só decorreria da feroz competição que
caracterizaria a "luta" pela existência. Por oitenta anos foi rejeitada
a desviante interpretação das obras de Darwinproposta em "Ajuda Mútua: um Fatr de Evolução", livro com argutas observações sobre a extraordinária cooperação que
caracteriza as vidas de abelhas, formigas e vários outros animais,
publicado em 1902, no exílio londrino, pelo sessentão príncipe russo Piotr Kropotkin.
Mesmo
que não tenha havido reconhecimento explícito, a perspicácia desse
expoente do anarquismo começou a ser redimida quando um dos então mais
promissores ramos da matemática - a Teoria dos Jogos -
foi mobilizado para solucionar uma das questões que mais intrigava os
pesquisadores, especialmente os das humanidades: num mundo de egoístas,
desprovido de governo central, em que condições pode emergir a
cooperação?
Resposta original e persuasiva foi dada em 1981 pelo cientista político da Universidade de Michigan, Robert Axelrod, que três anos depois lançou o hoje clássico "A Evolução da Cooperação" (Ed. Leopardo, 2010). Um livro que deveria tomar o lugar daquelas bíblias gratuitas achadas nos criados-mudos dos hotéis, diz Richard Dawkins, o célebre autor de"O Gene Egoísta" em prefácio à edição de 2006.
A proeza de Axelrod foi
executar inéditas simulações computacionais que confirmaram hipóteses
formuladas na década anterior por biólogos evolutivos: nepotismo e
reciprocidade seriam os dois fatores determinantes da cooperação. Na
ausência do primeiro, ela estaria na dependência de um padrão
comportamental em que cada um dos atores repete o movimento do outro,
reagindo positivamente a atitudes cooperativas e negativamente a gestos
hostis.
Ainda em plena Guerra Fria, quando o risco de um "inverno nuclear" exigia a cooperação bipolar entre EUA e URSS,
o que poderia fazer mais sucesso do que essa orientação apelidada de
"tit-for-tat", título de uma das populares comédias da dupla "O Gordo e o Magro"?
Embora seja traduzida por "olho-por-olho, dente-por-dente", essa
expressão está mais próxima do "toma-lá-dá-cá", pois é uma estratégia
que exige prévio arranque cooperativo.
Como
sempre ocorre na ciência, boa resposta a uma grande questão faz com que
pipoquem novas dúvidas. Por exemplo: se por mera razão acidental um dos
atores falhar em fazer o esperado movimento positivo, isso por si só
inviabiliza a continuidade da cooperação? E o que ocorreria quando o
esquema de cooperação envolvesse mais do que dois atores? Foram questões
como essas que alavancaram o fulgurante avanço da biologia matemática
nos últimos vinte anos.
O padrão "toma-lá-dá-cá" hoje não passa de uma das três modalidades de uma das cinco dinâmicas de cooperação evidenciadas.
O
"tit-for-tat" é manifestação rudimentar do que passou a ser chamado de
"reciprocidade direta". Novas simulações indicaram que eventual passo em
falso pode engendrar uma segunda chance, em estratégia apelidada de
"toma-lá-dá-cá generoso", a origem evolutiva do perdão.
E
desdobramentos ainda mais sofisticados revelaram a existência de uma
terceira forma de reciprocidade direta, na qual o agente inverte sua
atitude anterior quando nota que as coisas vão mal, mas logo depois
volta a cooperar. Algo que já era bem conhecido na etologia como
comportamento "Win-Stay, Lose-Shift", comum entre pombos, macacos, ratos e camundongos.
O
segundo vetor da cooperação, chamado de "reciprocidade indireta", foi
crucial para a evolução da linguagem e para o próprio desenvolvimento do
cérebro humano, pois se baseia no fenômeno da reputação. Neste caso, o
que condiciona as atitudes dos atores são comportamentos anteriores em
relações com terceiros. A cooperação avança quando a probabilidade de um
agente se inteirar sobre a reputação do outro compensa o
custo/benefício do ato altruísta.
Os
demais determinantes da cooperação são as três formas em que ocorre a
seleção natural, pois, além da já mencionada nepotista (de parentesco),
ela não opera apenas entre indivíduos, mas também entre grupos
(multinível) e nas redes (espacial).
Mesmo
que as observações acima não sejam suficientes para que se possa ter
uma boa ideia das descobertas da biologia matemática no âmbito da
dinâmica evolutiva, elas certamente permitem notar que o darwinismo
aponta tanto para "luta" quanto para "acomodação" pela existência.
Exposição rigorosa e extremamente amigável desse darwinismo 2.0 está em"SuperCooperators - Altruism, Evolution, and Why We Need Each Other to Succeed" (Free Press, 2011), do austríaco Martin A. Nowak, biólogo matemático que está em Harvard depois de ter brilhado em Oxford e Princeton, e que contou com a inestimável ajuda do jornalista científico britânico Roger Highfield.
Esse
sim é um livro que mereceria ser distribuído gratuitamente. Não para
substituir bíblias cristãs, mas para promover o entendimento das origens
naturais dos códigos de ética de todas as grandes religiões.