O futuro da internet em debate no Brasil
A reportagem é de Maurício Ayer e Antonio Martins, publicada polo sítio
Outras Palavras, 23-04-2014.
Dois eventos globais paralelos tentam, esta semana, assegurar liberdade na
rede, num mundo ameaçado por autoritarismos, vigilância e censura. Será
possível?
O sociólogo catalão Manuel Castells; o engenheiro inglês sir Tim
Berners-Lee, que criou a World Wide Web; o músico e ex-ministro brasileiro
Gilberto Gil, cujo currículo inclui participação destacada na conferência
internacional que debateu, em Túnis (2005) o futuro da internet, têm uma tarefa
árdua, esta semana, em São Paulo. Junto com oitocentos representantes (de
duzentos países) e com outros intelectuais e ativistas destacados, eles tentarão
afastar sombras que pairam sobre o futuro da rede mundial de computadores – e,
em muitos sentidos, da democracia.
Como permitir que a internet continue a alimentar a esperança de
comunicação direta, sem intermediários e fundamentalmente desmercantilizada,
entre os seres humanos? De que modo evitar que ela seja contaminada pela
espionagem maciça, censurada por governos autoritários ou reduzida a um espaço
mercantil, em que o grande poder econômico controla os fluxos de informação
relevantes? Estes são alguns dos temas da Net Mundial e Arena Net Mundial,
eventos marcados para 22 a 24 de abril, no Hotel Grand Hyatt e Centro Cultural
de São Paulo.
Os encontros não têm poder mandatório. Invenção recente, a internet surgiu,
além disso, numa época de crises de hegemonias, instituições e projetos.
Continuará, nos próximos anos, ameaçada por governos, grandes empresas e
agências militares de atuação global, como a NSA norte-americana.
Mas sobre a rede agirá, também, um contrapoder notável. Exercido pelas
sociedades civis – de forma ora explícita, ora difusa –, ele tem sido capaz de
manter um grau de liberdade surpreendente, se se levam em conta as turbulências
do cenário global. Derrubou leis autoritárias. Driblou tentativas de censura.
Estimulou o surgimento de plataformas que multiplicam a colaboração (como a
Wikipedia), os diálogos (como as redes sociais) e as trocas não mediadas pelo
dinheiro (como os sistemas de compartilhamento de música, livros e outros bens
culturais). Criou formas embrionárias de democracia pós-estatal (uma delas é o
Comitê Gestor da Internet brasileiro, o CGI.br). Articular este contrapoder,
prepará-lo para os desafios mais duros que virão, é, provavelmente, o que se
pode esperar de melhor dos encontros desta semana.
O engenheiro Tim Berners-Lee é uma das grandes atrações da Arena Net
Mundial – uma espécie de fórum de debates da sociedade civil que se desenvolverá
no Centro Cultural de São Paulo, aberto ao público (veja programação) e
transmitido ao vivo (inclusive no blog de Outras Palavras). Além de ter
proposto, há 25 anos, os protocolos de comunicação que permitiram o surgimento
da World Wide Web (a internet como a conhecemos hoje), ele mantém-se atento,
como personalidade ativista, às lutas pela liberdade da rede. Há poucas semanas,
envolveu-se diretamente na luta pela aprovação, na Câmara dos Deputados, do
Marco Civil para a rede brasileira. Lembrou, em nota pública que, a lei (que
ainda depende de aprovação no Senado) “reflete a Internet como esta deveria ser:
uma rede aberta, neutra e descentralizada, na qual os usuários são o motor da
colaboração e da inovação”. Por meio dela, acrescentou, o país ajudará “a
desencadear uma nova era – em que os direitos dos cidadãos em todos os países
sejam protegidos por uma Carta de Direitos Digitais”.
Não foram palavras gratuitas. Desde Lula, o governo brasileiro mantém, como
se verá adiante, uma posição de vanguarda, na batalha pela gestão democrática da
internet. Mas esta postura só se manteve porque se apoiou num movimento autônomo
e vibrante, entre a sociedade civil – capaz de derrotar e reverter, em algumas
ocasiões, as posições dos líderes de partidos governistas. Um de seus feitos é
conhecido: a luta pelo próprio Marco Civil, que já dura dez anos. Outra, é quase
ignorada: um Comitê Gestor da Internet (CGI.br), visto por muitos como protótipo
do que pode ser a governança global da rede. Ambas estão entrelaçadas e remontam
a 2003.
A eleição de Lula permitiu que chegassem a órgãos da área de tecnologia
antigos ativistas pela liberdade na rede. O sociólogo Sérgio Amadeu, por
exemplo, dirigiu por alguns anos o Instituto Nacional de Tecnologia da
Informação (ITI). Sob sua influência, e de um grupo de pesquisadores com
posições semelhantes, iniciou-se a reforma do CGI.br.
Partia-se de uma base importante. Criado em 1995, no início do governo FHC,
o CGI.br adotou o inovador e democrático modelo multiparcerias
(multistakeholder, em inglês). A internet brasileira não é, desde o início,
controlada pelo Estado – mas gerida por uma pluralidade de representações, com
membros provenientes do governo, academia, sociedade civil organizada (ONGs),
empresários e especialistas. A ideia é que toda decisão tomada contemple uma
escuta de todos esses setores.
Mas o formato tinha limites claros. Todos os membros eram indicados pelo
governo – mesmo os que não representavam instâncias governamentais. “Esse
modelo, em que ouço a sociedade mas sou eu que digo quem pode falar comigo, não
parecia o bastante para a nossa ideia de participação”, lembra Amadeu.
“Então, houve uma reforma. Conseguimos que os membros representantes da
sociedade fossem eleitos por voto direto de cada setor. E também, que o governo
fosse minoria no Comitê”. Hoje, dos 21 membros, nove representam ministérios e
agências do governo e doze são reservados aos outros setores. É um exemplo de
democracia participativa, livre em certa medida da institucionalidade estatal,
que funciona com sucesso no Brasil.
Tais características permitiram que o CGI.br fosse protagonista decisivo
numa luta na construção do Marco Civil – a lei que Berners-Lee vê como exemplo
para a internet global. O embate começa também em 2003.
Usando como pretexto “proteger a sociedade contra a pornografia infantil”,
o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG)apresentou projeto para ampliar o controle de
conteúdos na internet, que ficou conhecido como o “AI-5 digital”. Após passar
pelas comissões de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática e de
Assuntos Econômicos (CAE), viria a ser aprovado no Senado em 2008 – com parecer
favorável de um expoente da bancada governista, o senador Aloízio Mercadante
(PT-SP).
Em 25 de junho daquele ano, o projeto subiu para votação no Senado, no
mesmo momento em que ocorria o 10º Fórum Internacional do Software Livre (FISL)
em Porto Alegre. Houve uma forte reação contrária, na internet, e a votação foi
adiada. No dia 26, o presidente Lula visitou o FISL, conversou com ativistas e
fez um discurso que seria o estopim do processo de confecção colaborativa do
texto do Marco Civil. Respondendo a ativistas que pediam “veto ao AI-5 digital”,
ele fez duras críticas ao projeto de Azeredo. Afirmou tratar-se de censura na
internet. Assegurou que no seu governo era “proibido proibir”. Diante de um
público de mais de 2 mil pessoas, convocou o então ministro da Justiça, Tarso
Genro, a construir um projeto de lei da internet que contemplasse os anseios da
sociedade civil.
Mesmo diante da clara disposição do Executivo, o Senado aprovou, em 9 de
julho, um texto do AI-5 Digital com emendas do senador Mercadante,
encaminhando-o à Câmara.
Paralelamente, o Ministério da Justiça (MJ), juntamente com o CGI.br,
iniciou o diálogo com a sociedade civil para a construção da nova proposta.
Decidiu-se utilizar, para tanto, uma rede social específica (CulturaDigital.br),
criada pouco antes pelo Ministério da Cultura, num processo de consulta pública
conduzido pelo MJ e com a operacionalização de técnicos da Fundação Getúlio
Vargas (FGV).
Após intensas contribuições, principalmente ao longo do ano de 2010,
redigiu-se o projeto de lei. Sua coluna dorsal era a lista de dez princípios
para governança e uso da Internet no Brasil que o CGI.br havia produzido e
divulgado em 2009, em que as garantias de segurança, estabilidade jurídica,
privacidade e neutralidade da rede já estavam colocadas.
Este projeto, construído de maneira exemplarmente participativa, é o que
foi apresentado à Câmara dos Deputados. No momento da votação, já com apoio de
diversos setores da sociedade, teve que enfrentar o poderoso lobby das empresas
de telecomunicação e sua bancada, liderada pelo deputado federal Eduardo Cunha
(PMDB/RJ). Sabendo da prioridade que o governo Dilma dava à aprovação do Marco
Civil, pois seria um importante legitimador de suas propostas para o NETmundial,
Eduardo Cunha angariou apoios para travar o debate na Câmara, o que acabou lhe
rendendo a capa da revista IstoÉ sendo chamado de “O sabotador da
República”.
O Marco Civil foi finalmente aprovado na Câmara, e está neste momento
submetido ao Senado brasileiro. A bancada governista aposta na possibilidade de
votar e aprovar o projeto antes do NETmundial, para que a presidenta Dilmapossa
sancionar a lei durante o evento.
Enquanto a Arena Net, no Centro Cultural tende a ser expansiva e caótica, a
Net Mundial será mais circunspecta e formal. Ocupará os luxuosos auditórios do
Hotel Hyatt, em é organizada em parceria pelo CGI.br e pelo /1Net, que se define
como um “fórum que reúne entidades internacionais dos vários setores envolvidos
com a governança da Internet”.
O evento adota o modelo de organização multiparcerias, que tem sido
predominante nos principais fóruns de discussão e instituições de governança de
Internet. Seus 800 delegados originam-se de cinco setores: governos; sociedade
civil organizada; empresas; universidades e outras instituições acadêmicas;
especialistas técnicos.
Funcionará como um grande fórum de debates. Embora não deliberativo, sua
importância cresceu nas últimas semanas, desde que o governo Obama, sob pressão
internacional intensa, após as denúncias de espionagem global da NSA, admitiu,
em palavras, compartilhar a gestão da internet, que hoje os EUA exercem
solitariamente.
Coincidentemente, a trajetória até a Net Mundial também começa em 2003,
quando a União Internacional das Telecomunicações (UIT), órgão da ONU que
congrega grandes corporações do setor, organizou, em Genebra, a primeira etapa
da Cúpula sobre a Sociedade da Informação – que seria concluída dois anos
depois, em Túnis.
A pauta era ampla. A internet era um, entre muitos temas. Sobre ela,
ninguém imaginava polêmicas – mas a postura da delegação brasileira surpreendeu.
Chefiada pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ela marcou o evento ao
frisar a necessidade de se rever a governança da Internet, no sentido de
torná-la menos concentrada em mãos estadunidenses.
Até então, a questão era discutida apenas por ativistas. Além de incorporar
suas preocupações ao discurso do governo brasileiro, Samuel compôs o grupo
brasileiro que foi a Genebra incluindo representantes da sociedade civil – entre
eles, lideranças do ciberativismo.
Sérgio Amadeu, então no ITI e também presente em Genebra, relembra: “Índia
e África do Sul apoiaram imediatamente a posição brasileira. Mas a China também
o fez; então os Estados Unidos passaram a acusar os brasileiros de quererem
jogar a internet nas mãos de ‘Estados autoritários’. A posição deles era: ‘a
Internet é nossa, se quiserem façam a de vocês’”.
No início de novembro de 2005, houve a Cúpula Mundial de Cidades e
Autoridades Locais sobre a Sociedade da Informação, em Bilbao, Espanha, onde o
debate tomou corpo.
Quando chegou a Túnis, dias depois, a articulação em torno da proposta
primeiramente formulada pelo Brasil estava muito mais consolidada. Contava om o
apoio dos BRICS e de muitos outros países chamados “periféricos”.
Desta vez liderada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, a delegação
brasileira atraiu muita atenção. Sua base, na capital da Tunísia, tornou-se um
verdadeiro centro informal de debates abertos, para o qual afluía, após as
conferências oficiais, grande parte dos intelectuais, ativistas e mesmo
representantes governamentais presentes. Ao final do evento, a União Europeia
juntou-se ao grupo de países que apoiavam a internacionalização e democratização
da governança da Internet.
Tornou-se incontornável propor um passo a mais. A solução encontrada foi
criar o Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês), que passaria
a se reunir anualmente e também seria composto segundo o modelo de
multiparcerias.
O primeiro encontro do grupo aconteceu em Atenas (Grécia), em 2006, com o
tema “Governança da Internet para o desenvolvimento”, que foi mantido para a
edição seguinte, no Rio de Janeiro, em 2007. Já em Hyderabad (Índia) 2008,
mudou-se o foco para uma proposta de cunho mais popular, “Internet para todos”.
Ela daria a tônica dos temas nos anos seguintes, realizados em Sharm el Sheikh
(Egito) 2009, Vilnius (Lituania) 2010, Nairóbi (Quênia) 2011, Baku (Azerbaijão)
2012, e Bali (Indonésia) 2013.
O IGF mantém o debate sobre a governança da internet na cena internacional.
Porém, nunca se configurou como uma instância de proposições, cujas decisões
fossem capazes de direcionar os rumos das relações entre os países na rede. Para
superar este limite, foi necessária uma virada. Ela veio com a série de
denúncias abertas por Edward Snowden em 2013. O ex-contratado da CIA deixou
claro que a rede de espionagem montada pelas agências militares norte-americanas
era global; baseava-se na Internet, ameaçando desfigurar por completo os
objetivos da rede; voltava-se inclusive contra chefes de Estado (entre os quais,
Dilma e a alemã Angela Merkel); e nada tinha a ver com “combate ao
terrorismo”.
O marco na construção de um novo momento foi o discurso de Dilma Rousseff
na ONU, em setembro daquele ano. “Pela primeira vez, uma chefe de Estado
pronunciava-se claramente defendendo os direitos civis como a liberdade de
expressão e a privacidade, e atacando a intervenção na rede”, analisa Sérgio
Amadeu. Em outras palavras, o discurso que ativistas de todo mundo faziam há
anos tinha ressonância na Assembleia Geral da ONU. O teor da fala de
Dilmasurpreendia inclusive em relação ao seu próprio governo: o Ministério das
Comunicações vinha sinalizando com ideias bastante diferentes dessas, mais
alinhadas aos interesses das grandes corporações das telecomunicações.
Depois do histórico discurso de Dilma na ONU, líderes das principais
instituições de governança da internet, comoISOC, ICANN, IAB/IETF, IANA – os
cinco RIRs (Regional Internet Registries) – e W3C, (às vezes referidas como
“organizações técnicas da internet”, segundo elas mesmas)reuniram-se em
Montevidéu, na chamada iniciativa /1NET, e produziram uma declaração, com
proposições que incluem:
·Forte preocupação com a vigilância e o monitoramento invasivos.
·Necessidade de encarar os desafios da Governança da Internet.
·Necessidade de evolução da cooperação multiparcerias global da
Internet.
·Necessidade de globalizar funções do ICANN e IANA.
Passo seguinte, os técnicos da /1NET reúnem-se ao CGI.br e buscam a
presidência do Brasil para organizar o Net Mundial em São Paulo. Mas quais serão
as possíveis pautas do encontro?
Uma das mais cruciais, diz Sérgio Amadeu, é desconcentrar as decisões sobre
a internet. “Os Estados Unidos têm legitimidade em relação à rede, pois foi lá
que ela surgiu – mas hoje, tornou-se planetária”, lembra ele.
Hoje, alguns dos principais organismos de governança da Internet global
estão sediados nos EUA e, portanto, submetidos às leis daquele país.
Mesmo que realizem um trabalho respeitável, do ponto de vista técnico, a
ideia de que operações estratégicas estejam sob jurisdição internacional é
central para tornar possível a pluralidade plena da Internet.
Pode-se citar o caso do ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and
Numbers. Responsável pela gestão dos “nomes e números” dos domínios da
Internet, isto é, dos endereços que digitamos ao acessar algum site, o órgão é,
juridicamente, uma empresa privada. Procura seguir o modelo de multiparcerias –
mas atua por contrato com o governo dos EUA. Será sensato mantê-lo sob este
controle, sabendo que seus serviços são centrais para o funcionamento da rede em
escala global, e que as agências militares de Washington já não hesitam em
contrariar o Direito internacional, em nome de seus objetivos
particulares?
Na luta contra o poder opressivo dos EUA, é preciso evitar respostas
fáceis. Um caminho indesejável seria que, na mudança, ocorresse a fragmentação
da Internet – ou “balcanização”, como se costuma designar esse risco.
Significaria construir um modelo em que cada Estado-Nação ganha “autonomia” para
gerir a rede em suas fronteiras. Tal fórmula abriria espaço, por exemplo, para
que os governos estabelecessem, em nome do “interesse nacional”, diversas
modalidades de censura, vigilância e controle. Assegurar uma só Internet, que
garanta mundialmente aos cidadãos a privacidade, a liberdade de expressão, a
neutralidade e a democracia dos processos de governança, impedindo que
interesses privados ou unilaterais se sobreponham ao imenso potencial criativo e
libertário da rede, é o desafio que está no centro palco.