12/2/2009
‘A Doutrina do Choque’ disseca o capitalismo de desastre
Depois de levar o Urso de Ouro em 2006 por O Caminho para Guantánamo, a dupla de diretores formada por Michael Winterbottom e Mat Whitecross, volta ao Festival de Berlim com um novo e controverso projeto – A doutrina do choque –, que articula a história recente através da implantação do neoliberalismo no mundo. Baseado no best seller da ativista Naomi Klein A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre [Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008], este work in progress projetado fora de concurso na seção Panorama, nesta segunda-feira, analisa a implementação das teorias do livre mercado formuladas pelo Prêmio Nobel Milton Friedman.
O filme mostra como as crises sociais facilitam a entrada em vigor de medidas econômicas impopulares, ao tirar proveito da anulação da vontade dos cidadãos. Chile e Argentina, as ditaduras de Pinochet e Varela aparecem num filme que também examina a Inglaterra grevista de Thatcher ou a Rússia neoliberal. O epílogo retoma o 11-S e a reconstrução do Iraque, e finaliza com certa esperança: a posse de Obama e uma chamada de Klein à mobilização.
Michael Winterbottom‘A Doutrina do Choque’ disseca o capitalismo de desastre
Depois de levar o Urso de Ouro em 2006 por O Caminho para Guantánamo, a dupla de diretores formada por Michael Winterbottom e Mat Whitecross, volta ao Festival de Berlim com um novo e controverso projeto – A doutrina do choque –, que articula a história recente através da implantação do neoliberalismo no mundo. Baseado no best seller da ativista Naomi Klein A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre [Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008], este work in progress projetado fora de concurso na seção Panorama, nesta segunda-feira, analisa a implementação das teorias do livre mercado formuladas pelo Prêmio Nobel Milton Friedman.
O filme mostra como as crises sociais facilitam a entrada em vigor de medidas econômicas impopulares, ao tirar proveito da anulação da vontade dos cidadãos. Chile e Argentina, as ditaduras de Pinochet e Varela aparecem num filme que também examina a Inglaterra grevista de Thatcher ou a Rússia neoliberal. O epílogo retoma o 11-S e a reconstrução do Iraque, e finaliza com certa esperança: a posse de Obama e uma chamada de Klein à mobilização.
O diretor britânico Michael Winterbottom concedeu a Begoña Donat uma entrevista publicada no jornal Público, 11-02-2009.
Eis a entrevista.
Não teme que o filme seja desqualificado como pura teoria da conspiração?
Não, A doutrina do choque traz informações para que cada qual decida se este é o mundo em que quer viver, dado que a ideologia dominante se converteu no estado natural das coisas. O livre mercado se assumiu como idôneo e, por isso, as corporações privadas administram os recursos do Estado. A crença é que democracia e liberalismo caminham de mãos dadas; mas, se analisas os exemplos, não é assim.
Você estabelece uma relação causal entre as declarações de Donald Rumsfeld contra os burocratas contrários às ideias da Escola de Chicago e a morte de alguns deles no Pentágono durante os atentados do 11-S.
Obviamente, estes fatos são certos, mas não estamos afirmando que Rumsfeld assassinou as vozes dissidentes. Faz parte de uma forma dinâmica de relatar os fatos e, ao mesmo tempo, de ser provocativo para que as pessoas reflitam.
Era sua intenção satanizar Milton Friedman?
Ele teve a ideia de que em momentos de crise era mais simples aplicar suas políticas neoliberais. A questão é que, se pensava que era uma forma de melhorar a vida de toda a população, fracassou. Se era a justificativa para que os endinheirados se enriquecessem mais e as multinacionais se tornassem mais fortes, acertou. O documentário explicita quais são as consequências de sua tese, já que a informação é uma arma de resistência.
Por que pensa que não ocorreu a ninguém antes analisar a história a partir deste ponto de vista?
O livro de Klein demonstrou ser visionário. Esta crise é tão devastadora e está tão vinculada à desregulamentação do mercado e à falta de controle estatal que vai abrir um debate. Mas o que vai acontecer vai depender da capacidade de mobilização das pessoas e da participação na discussão mundial.
Pensou em derivar a sua carreira para o documentário?
Não, estou exausto. Agora preparo um projeto de ficção, O assassino dentro de mim, adaptação do livro de Jim Thompson, em que Cassey Affleck interpreta um xerife que assassina as pessoas que ele ama.
***
Entrevista com Naomi Klein
(15/05/2008)
‘É a minha contribuição para a memória’.
Seu livro busca – A doutrina do choque, que está sendo lançado em espanhol e ainda não tem tradução para o português – demonstrar como o capitalismo emprega a violência e o terror contra o indivíduo e a sociedade. Naomi Klein esteve em Buenos Aires para palestras e também para gravações do documentário sobre o livro, junto com Avi Lewis e Michael Winterbottom. Segue a íntegra da entrevista concedida a Silvana Friera e que está publicada no Página/12, 25-04-2008. A tradução é do Cepat.
A musa da antiglobalização, que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo com Sem Logo (Rio de Janeiro: Record, 2002), chama a atenção dos homens. No hotel do centro onde se hospeda, não é uma turista qualquer; caminha com a familiaridade de quem conhece o terreno em que pisa, se sente “como em casa” nesta cidade em que viveu em 2002. Elegante e cuidadosa com a sua imagem – para seus encontros com a imprensa contou com a ajuda de maquiadora e cabeleireiro – Naomi Klein toma com humor sua volta ao país.
Quando chegou, no sábado passado, a densa nuvem de fumaça que cobria a cidade impediu que o avião aterrissasse imediatamente em Ezeiza. “Prefiro a outra Argentina, naquela em que havia fogo por conta da política, e não esta, que me sufoca com tanta fumaça”, brinca a jornalista canadense, que hoje apresenta na Feira o seu último livro, La doctrina del shock [A doutrina do choque] (Paidós), que bem poderia ser definido como “a história oficial do livre mercado”. Neste trabalho de pesquisa de mais de 600 páginas, Klein demonstra como o capitalismo emprega constantemente a violência e o terror contra o indivíduo e a sociedade.
Neta de um sindicalista da empresa Disney e filha de um casal formado por uma artista feminista e um objetor da guerra do Vietnã que fugiu para o Canadá, entusiasta seguidora de Eduardo Galeano, John Berger e Susan Sontag, Klein não veio sozinha à Argentina. Além do seu marido, Avi Lewis, com quem realizou o documentário La Toma, sobre os operários da Bruckman e Zanon, está acompanhada do cineasta britânico Michael Winterbottom, com quem filmará o documentário sobre A doutrina do choque em Buenos Aires, onde encontrou a matéria-prima para seu último livro.
“Aqui tomei as lições da história simplesmente caminhando e falando com amigos pelas ruas. Foi o período em que mais aprendi em pouco tempo, foi uma experiência muito intensa, porque mudaram a forma como via o mundo”, lembra a jornalista na entrevista com Página/12. Esses amigos – Marta Dillon, Claudia Acuña, Silvia Delfino e Sergio Ciancaglini, entre outros – lhe contaram das sangrentas raízes do projeto da Escola de Chicago, comandada por Milton Friedman, “o homem da liberdade”, segundo The Wall Street, e compartilharam suas próprias lembranças e tragédias pessoais com Klein.
Grande guru do movimento pelo capitalismo de livre mercado, Friedman foi o responsável pela criação do “roteiro da economia global, contemporânea e hipermóvel em que vivemos”, diz Klein. Durante mais de três décadas, o economista de Chicago e seus poderosos seguidores esperaram que se produzisse uma crise de primeira ordem ou um estado de choque para vender a quem oferecer o melhor preço os pedaços da rede estatal aos agentes privados. “Algumas pessoas armazenam latas e água para em caso de algum desastre ou terremotos; os discípulos de Friedman armazenam um monte de idéias de livre mercado”, ironiza a autora. Friedman aprendeu a importância de aproveitar uma crise ou estado de choque em grande escala durante a década de setenta, quando foi assessor do ditador chileno Augusto Pinochet.
Se as privatizações, a desregulamentação e os cortes no gasto social costumavam ser impopulares entre nós, “mas com o estabelecimento de acordos assinados e uma parafernália, oficial, ao menos se sustentava o pretexto do consentimento mútuo entre os governos que negociavam, assim como uma ilusão de consenso entre os supostos especialistas”, agora, o próprio programa ideológico “é imposto mediante as piores condições coercitivas possíveis: a ocupação militar de uma potência estrangeira depois de uma invasão ou imediatamente depois de uma catástrofe natural de grande magnitude”.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, “já não tinham que perguntar ao resto do mundo se desejavam a versão norte-americana do ‘livre mercado e da democracia’; podiam impô-la mediante o poder militar e sua doutrina do choque e comoção”, afirma Klein. “A administração Bush aproveitou a oportunidade gerada pelo medo aos ataques para lançar a guerra contra o terror, mas também para garantir o desenvolvimento de uma indústria exclusivamente dedicada aos lucros, um novo setor em crescimento que insuflou renovadas forças na fragilizada economia norte-americana”.
Mesmo que Friedman tenha declarado que sua proposta era libertar o mercado das garras do Estado, Klein adverte que as elites políticas e empresariais simplesmente se fusionaram, “trocando favores para garantir seu direito de se apropriar, desde os campos petrolíferos da Rússia, passando pelas terras coletivas chinesas, até os contratos de reconstrução outorgados para o Iraque”.
A jornalista canadense repassa, nesta exaustiva pesquisa, como no Chile, Iraque, África do Sul, Argentina e China a tortura foi o sócio silencioso da cruzada pela liberdade de mercado global.
Por que não é comum que se relacione, como você o faz no livro, o neoliberalismo com a violência e as torturas?
Creio que por muitas razões, mas a principal delas é que a história é contada pelos vencedores e, como toda história de vencedores, é narrada de uma maneira “muito limpa” e triunfante. Se pensamos no Chile, tínhamos os Chicago Boys, que eram financiados pela Fundação Ford. Quando eram questionados pelas violações aos direitos humanos perpetradas por Pinochet, eles diziam que eram técnicos, que não tinham a nada a ver com essa situação. O principal patrocinador dos grupos de direitos humanos no Chile também era a Fundação Ford, e estes grupos diziam que só lhes interessava que se respeitasse a lei, que não lhes interessava nem a política nem a economia. A Fundação Ford tratava de garantir que a política e a economia nunca se entrelaçassem. O neoliberalismo e a tortura não se relacionavam graças à tirania da especialização; advogados por um lado e economistas pelo outro e que só se ocupavam de suas respectivas disciplinas. Mas, quando lemos Rodolfo Walsh ou Eduardo Galeano, nos encontramos com uma análise completa e integral da situação.
O material do livro, sobretudo a parte em que recorda os experimentos de choques elétricos em pacientes psiquiátricos financiados pela CIA na década de 50, resulta bastante desesperançador. Encontra alternativas?
Entendo porque o material do livro é um tanto deprimente quando é lido, inclusive eu mesma me deprimi um pouco em alguns momentos (risos). Mas o livro expressa um ato prometedor. Justamente a partir da minha experiência na Argentina me dei conta da importância da memória histórica para poder resistir e de alguma maneira vejo o livro como uma contribuição para a memória coletiva. Há uma luz de esperança porque quando o neoliberalismo falha surge um novo espírito que nos revela uma alternativa. Uma das coisas que me faz ter esperanças é que vejo uma mudança política nos Estados Unidos; cada vez observo como mais pessoas estão resistindo e se levantando contra o corporativismo. E isto é muito novo, porque durante muito tempo só se falava de Bush e de sua incompetência.
O contexto eleitoral norte-americano está vinculado a esta mudança que percebe?
Na realidade, a única coisa que a situação eleitoral faz é nos empurrar para trás. De alguma maneira, os movimentos antiglobalização, os protestos de Seattle, que surgiram no final dos anos 90, marcaram uma mudança na hora de falar do neoliberalismo e do corporativismo. A era Bush e a era do 11-S com a guerra do terror eclipsaram todas as outras questões políticas, o que gerou uma grande perda de consciência da situação. Mas depois se viveu uma espécie de ricochete contra Bush, não tanto contra a sua agenda política ou econômica, mas mais em relação à sua pessoa.
Mas, por sorte, estamos uma vez mais enfocados na própria mecânica do poder. Há dois milhões de pessoas que estão perdendo seus lares enquanto o governo está preocupado em resgatar Wall Street. Se alguém prestar atenção em quem está financiando as campanhas de Hillary Clinton e Obama, verá que são o Citibank e o JP Morgan. É a primeira vez em 14 anos que os democratas obtêm mais dinheiro dos fabricantes de armas que os republicanos. Hillary Clinton obteve mais financiamentos das companhias de defesa que John McCain. Nem Clinton nem Obama estão aproveitando este grande momento de radicalização que se está vivendo na sociedade, nenhum tem planos concretos para a retirada do Iraque. Ao contrário, querem manter a zona verde, que de alguma maneira é uma ocupação. Obama disse, na semana passada, que o povo norte-americano era amargo, que não tinha muito senso de humor, e na realidade tem razão, porque as pessoas estão cansadas e furiosas.
No livro se percebe uma importante defesa de Keynes. Uma alternativa seria recuperar a figura de um Estado mais forte que regule a economia?
Não vejo o livro só como defesa do keynesianismo. Creio que é importante entender que o keynesianismo era uma conciliação: o New Deal só foi possível graças a um massivo movimento dos socialistas e dos sindicatos, mas não foi suficiente, não foi mais além. Não me parece que proponha que a alternativa seja voltar ao keynesianismo. Sou favorável à descentralização, ao cooperativismo; não estou dizendo que voltar ao modelo keynesiano seja a grande solução.
Você assinala que os autênticos inimigos da teoria de Friedman não eram os marxistas, mas os keynesianos norte-americanos, os social-democratas europeus e os desenvolvimentistas, como eram chamados no Terceiro Mundo. Quais seriam hoje os inimigos do neoliberalismo?
O socialismo democrático sempre foi o maior perigo para o neoliberalismo. A atração que a democracia produz com a combinação de uma rede de contenção social sempre foi “a grande ameaça”. Depois que Allende fora eleito, Kissinger disse a Nixon que temia que o modelo chileno se propagasse pelo mundo afora. Creio que as táticas de ontem e de hoje são as mesmas, por exemplo, a forma como se demoniza Hugo Chávez e Evo Morales. A melhor coisa que aconteceu a Chávez foi ter perdido o referendo porque agora é muito mais difícil apresentá-lo como autoritário, uma vez que aceitou e respeitou o resultado.
Quando vemos que com a única figura com quem não se pode tratar no Iraque é com Al Sadr, começamos a compreender claramente qual é a ameaça do Iraque. Al Sadr é um nacionalista fundamentalista, os outros líderes são tão fundamentalistas quanto ele em questões de religião, mas a diferença é que Al Sadr quer ter o controle da economia do Iraque. Enfrentamos a mesma luta e a mesma batalha que tivemos nos últimos 30 anos e as mesmas ameaças. As figuras que não têm respeito pela democracia são um dom para os neoliberais.