A modernidade é uma falácia, uma ficção inventada para organizar a vida
intelectual. Os chamados “modernos” pregam a separação de ciência,
política, natureza e cultura, numa teoria distante da realidade do mundo
e inadaptada aos desafios impostos neste início de século, acusa o
pensador francês Bruno Latour,
de 66 anos. “Ecologizar” é verbo da vez, sustenta ele, mas num sentido
bem mais amplo do que o espaço compreendido pela ecologia defendida por
ativistas e partidos políticos.
—
O desenvolvimento da frente de modernização, como se fala de uma frente
pioneira na Amazônia, sempre foi, ao contrário, uma extensão de uma
quantidade de associações, da marca dos humanos, da intimidade de
conexões entre as coisas e as pessoas. A modernidade nunca existiu —
dispara Latour.
A entrevista é de Fernando Eichenberg e publicada no jornal O Globo, 28-12-2013.
Na
sua opinião, o Brasil, com todas as suas contradições, é fundamental na
possibilidade de um futuro de inovações que gerem um novo tipo de
“civilização ecológica”, numa nova “inteligência política e científica”.
Antropólogo,
sociólogo e filósofo das ciências, Bruno Latour, que recebeu em maio
passado o prestigiado prêmio Holberg de Ciências Humanas, é um dos
intelectuais franceses contemporâneos mais traduzidos no exterior. Além
de suas originais investigações teóricas, também se aventurou no terreno
das artes (com as exposições “Iconoclash” e “Making things public”) e,
em outubro, estreou a peça “Gaïa Global Circus”, uma “tragicomédia
climática”, que ele espera um dia poder encenar no Jardim Botânico, no
Rio. Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po),
lançou ainda este ano o ensaio “Enquête sur les modes d’existence — Une
anthropologie des Modernes” (Investigação sobre os modos de existência –
uma antropologia dos Modernos, ed. La Découverte).
Eis a entrevista.
Qual a diferença entre “ecologizar” e “modernizar”, segundo seu pensamento?
Modernizar
é o argumento que diz que quanto mais nós separamos as questões de
natureza e de política, melhor será. Ecologizar é dizer: já que, de
fato, não separamos tudo isso, já que a História recente dos humanos na
Terra foi o embaraçamento cada vez mais importante das questões de
natureza e de sociedade, se é isso que fazemos na prática, então que
construamos a política que lhe corresponda em vez de fazer de conta que
há uma história subterrânea, aquela das associações, e uma história
oficial, que é a de emancipação dos limites da natureza.
Ecologizar
é um verbo como modernizar, exceto que se trata da prática e não
somente da teoria. Mas pode-se dizer “modernidade reflexiva” ou utilizar
outros termos. O importante é que haja uma alternativa a modernizar,
que não seja arcaica, reacionária. Que seja progressista, mas de uma
outra forma, não modernista.
Um
problema complicado hoje, sobretudo no Brasil. Mas é complicado por
todo o lado, na França também. Qualquer dúvida sobre a modernização, se
diz que é preciso estancar a frente pioneira, decrescer, voltar ao
passado. Isso é impossível. É preciso inovar, descobrir novas formas, e
isso se parece com a modernização. Mas é uma modernização que aceita seu
passado. E o passado foi uma mistura cada vez mais intensa entre os
produtos químicos, as florestas, os peixes, etc. Isso é “ecologizar”. É a
instituição da prática e não da teoria.
Qual é a situação e o papel do Brasil neste contexto?
Penso
que deve haver uma verdadeira revolução ecológica, não somente no
sentido de natureza, e o Brasil é um ator importante. A esperança do
mundo repousa muito sobre o Brasil, país com uma enormidade de reservas e
de recursos. Se fala muito do movimento da civilização na direção da
Ásia, o que não faz muito sentido do ponto de vista ecológico, pois
quando se vai a estes países se vê a devastação. Não se pode imaginar
uma civilização ecológica vindo da Ásia.
No
Brasil — e também na Índia — há um pensamento, não simplesmente a força
nua, num país em que os problemas ecológicos são colocados em grande
escala. Há um verdadeiro pensamento e uma verdadeira arte, o que é muito
importante. Se fosse me aposentar, pensaria no Brasil.
Brasil
e Índia são os dois países nos quais podemos imaginar verdadeiras
inovações de civilização, e não simplesmente fazer desenvolvimento
sustentável ou reciclagem de lixo. Podem mostrar ao resto do mundo o que
a Europa acreditou por muito tempo poder fazer. A Europa ainda poderá
colaborar com seu grão de areia, mas não poderá mais inovar muito em
termos de construir um quadro de vida, porque em parte já o fez, com
cidades ligadas por autoestradas, com belas paisagens e belos museus. Já
está feito.
Mas
numa perspectiva de inventar novas modas e novas formas de existência
que nada têm a ver com a economia e a modernização, com a conservação,
será preciso muita inteligência política e científica. Não há muitos
países que possuem esses recursos. Os Estados Unidos poderiam, mas os
perderam há muito tempo, saíram da História quando o presidente George
W. Bush disse que o modo de vida dos americanos não era negociável.
Brasil e Índia ainda têm essa chance. Mas este é o cenário otimista. O
cenário pessimista talvez seja o mais provável.
Qual a hipótese pessimista?
Há
os chineses que entram com força no Brasil, por exemplo. Meu amigo
Clive Hamilton (pensador australiano) diz que, infelizmente, nada vai
acontecer, que se vai fazer uma reengenharia, se vai modernizar numa
outra escala e numa outra versão catastrófica. Provavelmente, é o que
vai ocorrer, já que não conseguimos decidir nada, e que será preciso
ainda assim tomar medidas. Uma hipótese é a de que se vai delegar a
Estados ainda mais modernizadores no sentido tradicional e hegemônico a
tarefa de reparar a situação por meio de medidas drásticas, sem nada
mudar, portanto agravando-a. Mas meu dever é o de ser otimista. Em todo
caso, é preciso inventar novas formas para pensar essas questões.
O senhor acompanhou as manifestações de rua no Brasil neste ano que passou?
É
uma das razões pelas quais o Brasil é interessante, porque há ao mesmo
tempo um dinamismo de invenção política, ligado a outros dinamismos
relacionados às ciências, às artes. Há um potencial no Brasil. E há,
hoje, uma riqueza. Não são temas que se pode abordar em uma situação de
miséria. É preciso algo que se pareça ao bem-estar. Na Índia, se você
tem um milhão de pessoas morrendo de fome não pode fazer muito. O Brasil
é hoje muito importante para a civilização mundial.
Os partidos ecologistas, na sua opinião, não souberam assimilar estas questões?
Nenhum
partido ecologista conseguiu manter uma prática. A ecologia se tornou
um domínio, enquanto é uma outra forma de tudo fazer. A ecologia se viu
encerrada em um tema, e não é vista como uma outra forma de fazer
política. É uma posição bastante difícil. É preciso ao mesmo tempo uma
posição revolucionária, pois significa modificar o conjunto dos
elementos do sistema de produção. Mas é modificar no nível do detalhe de
interconexão de redes técnico-sociais, para as quais não há tradição
política.
Sabemos
o que é imaginar a revolução sem fazê-la, administrar situações
estabelecidas melhorando-as, modernizar livrando-se de coisas do
passado, mas não sabemos o que é criar um novo sistema de produção
inovador, que obriga a tudo mudar, como numa revolução, mas assimilando
cada vez mais elementos que estão interconectados. Não há uma tradição
política para isso. Não é o socialismo, o liberalismo. E é preciso
reconhecer que os partidos verdes, seja na Alemanha, na França, nos EUA
não fizeram o trabalho de reflexão intelectual necessária. Como os
socialistas, no século XIX, refizeram toda a filosofia, seja marxista ou
socialista tradicional, libertária, nas relações com a ciência, na
reinvenção da economia.
Há
uma espécie de ideia de que a questão ecológica era local, e que se
podia servir do que chamamos de filosofia da ecologia, que é uma
filosofia da natureza, muito impregnada do passado, da conservação. O
que é completamente inadaptado a uma revolução desta grandeza. Não
podemos criticá-los. Eles tentaram, mas não investiram intelectualmente
na escala do problema. Não se deram conta do que quer dizer “ecologizar”
em vez de “modernizar”. Imagine o pobre do infeliz responsável pelo
transporte público de São Paulo ou de Los Angeles.
A França receberá em 2015 a Conferência Internacional sobre o Clima. Como o senhor avalia esses encontros?
Estamos
muito mobilizados aqui na Sciences-Po, porque em 2015 ocorrerá em
Paris, e trabalhamos bastante sobre o fracasso da conferência de
Copenhague, em 2009. Estamos muito ativos, tanto aqui como no Palácio do
Eliseu.
Na
minha interpretação, o sistema de agregação por nação é demasiado
convencional para identificar as verdadeiras linhas de clivagens sobre
os combates e as oposições. Cada país é atravessado em seu interior por
múltiplas facções, e o sistema de negociação pertence à geopolítica
tradicional. E também ainda não admitimos de que se tratam de conflitos
políticos importantes.
A
França aceitou a conferência sem perceber realmente do que se tratava,
como um tema político maior. Por quê? Porque ainda não estamos
habituados a considerar — e aqui outra diferença entre “ecologizar” e
“modernizar” — que as questões de meio ambiente e da natureza são
questões de conflito, e não questões que vão nos colocar em acordo.
Vocês têm isso no Brasil em relação à Floresta Amazônica.
Não é porque se diz “vamos salvar a Floresta Amazônica” que todo mundo
vai estar de acordo. Há muita discordância. E isso é muito complicado de
entender na mentalidade do que é uma negociação.
Poderá haver avanços em 2015?
Uma
das hipóteses que faço para 2015 é a de que é preciso acentuar o
caráter conflituoso antes de entrar em negociações. Não começar pela
repartição das tarefas, mas admitindo que se está em conflito nas
questões da natureza. Os ecologistas têm um pouco a ideia de que no
momento em que se fala de natureza e de fatos científicos as pessoas vão
se alinhar. Acham que se falar que o atum está desaparecendo os
pescadores vão começar a parar de matá-los. Sabe-se há muito tempo que é
exatamente o contrário, eles vão rapidamente em busca do último atum.
A
minha hipótese para 2015 é que se deve tornar visíveis estes conflitos.
O que coloca vários problemas de teoria política, de ecologia, de
representação, de geografia etc. Talvez 2015 já seja um fracasso como
foi 2009. Mas é interessante tentar, talvez seja nossa última chance.
Tenho muitas ideias. Faremos um colóquio no Rio de Janeiro em setembro de 2014, organizado por Eduardo Viveiros de Castro, sobre isso. Depois faremos um outro, em Toulouse, para testar os modelos de negociação. Em 2015 faremos um outro aqui na Sciences-Po.
A ideia é encontrar alternativas no debate sobre conflitos de mundo.
Não é uma questão das pessoas que são a favor do carvão, os que são
contra os “climacéticos” etc. Não é a mesma conexão, não é a mesma
ciência, não é a mesma confiança na política. São conflitos
antropocêntricos. Interessante que as pessoas que assistiram à minha
peça de teatro ficaram contentes em ver os conflitos. Na ecologia se faz
muita pedagogia, se diz como se deve fazer para salvar a Floresta
Amazônica. Mas não se fala muito de conflitos.