sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O porquê do retorno do sagrado




Um artigo de Charles Taylor


O filósofo Charles Taylor, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 15-01-2009, aborda a "tese da secularização" e sugere que hoje vive-se uma redescoberta do espírito. Segundo ele, "é necessário também saber trazer à superfície aqueles valores vividos profundamente pelas pessoas, isto é, articulá-los, dar voz a eles". A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

É surpreendente, mas as ciências sociais, de resto nascidas secularizadas, foram até agora cegas e surdas frente aos valores espirituais. Salta aos olhos a total indiferença que não poucos filósofos, sociólogos e historiadores reservam à dimensão do espírito. As consequências desse desinteresse são pesadas no nível da imprensa e da opinião pública, especialmente a culta. Mas não é suficiente que, ao redor da religião, tenha sido criada intencionalmente uma cortina de indiferença e de ignorância; assim, a fé se torna objeto de contínuos ataques. É significativa a frase do Nobel Steven Weinberg, que além do mais é um cosmólogo e não um sociólogo: “Há pessoas boas que fazem coisas boas, e pessoas ruins que fazem coisas ruins, mas, se quiserem encontrar pessoas boas que façam coisas ruins, voltem-se para a religião”. Em alguns países, essa frase se tornou quase um provérbio e é repetida pela imprensa e nos bares. É impressionante que um homem como Weinberg se saia com tal frase, um homem que viveu grande parte da sua vida em um século, o XX, que conheceu os regimes mais opressivos da história. É essa objeção que eu utilizo logo que alguém se sai com a frase de Weinberg. E obtenho, invariavelmente, a seguinte resposta: “Mas o comunismo era uma religião!”. Em síntese, para alguns, a palavra “religião” se tornou sinônimo de irracionalidade e até mesmo de assassínio.

Na prática, há quem entenda por “religião” um complexo de crenças que pode induzir pessoas boas e pacíficas (que não matariam nem uma mosca, sei lá, para conseguir um ganho pessoal) a se transformar em assassinas por uma “causa”. Um modo de pensar bastante rústico, esse. Ao qual se coloca uma outra objeção ainda: Hitler, Stalin, Pol Pot, Mao etc. eram todos inimigos da religião. O outro efeito negativo da mentalidade antirreligiosa é o atraso com o qual o verdadeiro problema da violência que cresce nas nossas sociedades é enfrentado. Ninguém está imune ao risco de ser arrancado da própria vida tranquila e recrutado na violência de grupo. Está na espreita a tentação de assumir como um alvo um outro grupo social e de considerá-lo responsável por todos os nossos males. Ora, a tarefa urgente é entender o que leva grupos inteiros de pessoas a se sentirem prontos para ser cooptados em um projeto do gênero.

Mas temos uma abordagem imperfeita sobre esse problema. Grandes escritores como Fëdor Dostoevskij iluminaram a origem da violência e do delito, que, porém, ainda permanece envolvida no mistério. E é incompleto o conhecimento que temos acerca do caminho seguido por personagens dotados de carisma espiritual, como Gandhi, para convencer as massas a repudiar a violência, parando-as justamente quando estavam por ultrapassar a linha de não retorno. Sem intervenção de autoridades espirituais, frequentemente os esforços melhor intencionados também não conseguem impedir que a história se faça “sobre a mesa do açougueiro”, como disse Hegel. E dá calafrios pensar que Robespierre votou contra a pena de morte nas primeiras discussões sobre a Constituição republicana.

Recentemente, trabalhei para compreender quais são hoje os significados e as implicações do termo “secularização”. Durante muito tempo, a sociologia considerou esse processo como inevitável. Algumas características da modernidade – o desenvolvimento econômico, a urbanização, a mobilidade em contínuo aumento, o nível cultural mais alto – eram vistas como fatores que teriam provocado um inevitável declínio da crença e da prática religiosa. Era a famosa “tese da secularização” e, durante muito tempo, dominou o pensamento nas ciências sociais e nos estudos históricos. Essa convicção foi abalada por acontecimentos recentes. A religião reagiu à modernização, respondeu ao desafio demonstrando a própria vitalidade. Em todo o caso, porém, a religião se tornou a base para uma mobilização política e o fenômeno é inclusive ameaçador, dadas as proporções que assumiu. É hora de conhecer a fundo essa dinâmica, os benefícios e os malefícios que comporta, ver claramente em um mundo que a velha teoria da secularização ainda esconde à vista. A incapacidade de distinguir a dimensão espiritual da vida humana nos torna incapazes de explorar temas vitais. Então, trata-se de reportar a espiritualidade ao centro e em domínios abertos em que descobertas decisivas são possíveis.

No mundo secularizado, ocorreu que as pessoas se esqueceram das respostas às principais perguntas sobre a vida. Mas o pior é que se esqueceram também das perguntas. Os seres humanos – que o admitem ou não – vivem em um espaço definido por perguntas profundas. Qual é o sentido da vida? Existem modos de vida melhor e piores, mas como são reconhecidos? Quais são os modos úteis para o indivíduo e para a comunidade à qual pertence? Qual é o fundamento da minha dignidade pessoal, que eu procuro defender por mim mesmo, a cada dia? As pessoas têm fome de respostas para todas as questões e, se se dão conta ou não, sentem a necessidade de vê-las resolvidas por qualquer um. Haverá quem considere errada ou absurda a minha ideia. Eu estou certo de que é fundamentada.

Fala-se de “descoberta do espírito”, em analogia com as descobertas que ocorrem na biologia, física e química. Mas é mais exato falar de “redescoberta do espírito”: o homem tem uma excepcional capacidade de se esquecer de coisas que conhecera e depositara no profundo do coração. Os filósofos, a partir de Platão, analisaram essa característica humana. Heidegger fala, a propósito, de “esquecimento do ser”. Eu penso que o homem desliza em uma “desmemória do ser”. Creio que caímos em um tipo especial de esquecimento. Em todo o caso, o mundo moderno se funda sobre uma cadeia bem precisa de desmemórias.

Uma das regras principais do saber humano é tirar para fora as respostas inarticuladas que as pessoas se dão na vida. Por isso, temos necessidade de um novo conhecimento da razão. Não se trata simplesmente de se mover com procedimento dedutivo por meio de um argumento. É necessário também saber trazer à superfície aqueles valores vividos profundamente pelas pessoas, isto é, articulá-los, dar voz a eles. Penso que é muito perigoso esquecer os valores, porque novidades positivas diversas emergiram no nosso tempo, enquanto o povo respondera, de um certo modo, às perguntas que as novidades pressupunham. Boa parte da violência ocorrida no nosso mundo provém do fato de que os jovens são recrutados por causas que os transformam em horríveis robôs assassinos. Quem os recruta é uma oferta que promete dar um conteúdo às suas vidas. Estão sem trabalho, sentem-se sem futuro, não têm (não podem ter) o sentido da dignidade. Sim, deram uma resposta a uma pergunta. Uma resposta extremamente destrutiva, porque autodestrutiva. E nós estaremos desesperados, se não conseguirmos recomendar-lhes, em tempo útil, uma resposta diferente.



O capitalismo apostou em paixões, não na moral




Por: Renato Janine Ribeiro,
(professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo)

Capitalismo, burguesia e às vezes modernidade são palavras que parecem se referir ao mesmo universo. Mas há diferenças. A burguesia pode ter surgido ainda perto do ano 1000, afirma a historiadora francesa Régine Pernoud. Já nos séculos XII e XIII, as cidades italianas vão-se emancipando dos senhores feudais e passando ao poder dos citadinos, dos burgueses, dos que têm dinheiro mas não são da anterior nobreza. Contudo, é no século XV ou XVI que se dá a grande ruptura conceitual, que talvez mostre um capitalismo indo além dos burgueses, ou pelo menos dos burgueses entendidos como cidadãos dos burgos. Essa ruptura supõe que não basta ter dinheiro, é preciso que ele se torne capital. O capital é o dinheiro tornado poder. Uma pessoa pode ter muito dinheiro no banco mas, se não for quem decide como se vai utilizá-lo, seu poder é bem limitado.

Para o dinheiro se tornar poder, uma mudança nas mentalidades, nas instituições e na produção se faz necessária. É difícil datá-la. Mas quem melhor a expõe talvez seja Bernard Mandeville, médico holandês radicado na Inglaterra, que, no começo do século XVIII, escreve um livro escandaloso, "A Fábula das Abelhas", também conhecido pelo subtítulo, que é "Vícios privados, benefícios públicos". É interessante notar que vários leitores, apressadamente, transformam o final do subtítulo em virtudes públicas, o que não é o caso.

Qual a tese central de Mandeville? É que as virtudes podem causar grandes prejuízos à sociedade, e os vícios ser-lhes úteis. Assim resumido, lembra muito Maquiavel. Os dois causaram forte aversão em seus leitores - e não-leitores. Mas Maquiavel prudentemente só deixou publicar seu "Príncipe" depois de sua morte, enquanto Mandeville teve a audácia de editar sua "Fábula" ainda jovem, sendo até levado a julgamento (e absolvido) por isso.

Há uma forte diferença entre os dois autores. Maquiavel entende que o príncipe, e só ele, pode violar a palavra dada e faltar à moralidade cristã. Somente o soberano pode afastar-se da religião, em nome do que depois se chamará a "razão de Estado". Já Mandeville entende que as pessoas em geral podem infringir a moralidade, assim fazendo prosperar a sociedade. Ou seja, para Maquiavel, a infração ao bem é restrita ao chefe de Estado e tem sentido sobretudo político. Já a exceção ao bem se torna, com Mandeville, mais difundida - e seu sentido é econômico, antes de mais nada.

Vamos aos dois grandes exemplos de Mandeville. O primeiro é o do ladrão que assalta rico abade a transportar uma fortuna destinada a ficar inútil, infecunda, entesourada. O assaltante a dilapida, em comida, bebida e mulher. Ora, pergunta o autor, quem faz mais pela humanidade, o gordo sacerdote, cujo dinheiro não circula, ou o bandido que com as moedas roubadas irriga as artérias da economia? O segundo exemplo é o das prostitutas de Amsterdam. Coisa ruim, concorda Mandeville - mas que evita algo pior por que, se os marinheiros que chegam ao porto após meses "sem mulher" não dispuserem de profissionais, haverão de atacar senhoras e senhoritas "de família". Por isso, explica, os austeros governantes da cidade calvinista toleram a prostituição, que, embora sendo um vício privado, acarreta - como a ganância do ladrão ou do empresário - benefícios públicos.

Instinto animal, destruição criadora e outras expressões que temos lido nos últimos anos - um período de grande celebração, na mídia, do capitalismo pouco controlado pelo Estado - derivam, em última análise, desses dois grandes pensadores. A grande idéia de Maquiavel é que o bem, se estiver no poder, leva os Estados à breca. A grande idéia de Mandeville é que podemos canalizar nossos pendores para "o mal", de modo que produzam efeitos socialmente positivos. Em comum, os dois não crêem na bondade natural do homem - ou melhor, não crêem que uma eventual bondade humana traga resultados bons para a sociedade. Para que a sociedade esteja bem, o bem tem de ser reduzido. Mas nenhum deles defende o mal pelo mal: o que querem é canalizá-lo. O segredo da vida social beneficiada está em sabermos utilizar, no homem (isto é, em nós mesmos), o que não é bom, mas pode ser bem aproveitado. Está em desistirmos de uma aposta na bondade humana, coisa de sacerdotes, para - aceitando-nos como somos - gerarmos uma vida mais confortável.



Essa é a chave do constante jogo capitalista entre bem e mal, entre a difícil moralidade e, digamos, a espontaneidade do instinto. Vi, quinze anos atrás, interessante espetáculo na TV inglesa: no congresso do Partido Conservador, velhinha após velhinha protestava contra a abertura do comércio aos domingos, "dia do Senhor", dia de estar com a família. O governo - também conservador - não estava nem aí para elas. Os conservadores não crêem mais nos valores da família e da religião, tanto que a direita hoje fala mais em liberalismo. Querem a liberdade de empreender. É verdade que a ética protestante analisada por Weber era muito rigorosa, e que nada ou pouco tem a ver com o thatcherismo. Mas sustento que a ética dos pastores de Genebra teve menor impacto histórico do que o hábil jogo de Mandeville que faz do mal, não emergir o bem, mas emergirem bens.

Quer isso dizer que o capitalismo está condenado à ganância, que pode destruir o mundo, assim como está eliminando riquezas enormes? Não sei. O que deu força ao capitalismo é que apostou em paixões, digamos, fáceis de seguir. As alternativas a ele, feudais ou socialistas, exigem mais de nós. O capitalismo é confortável. Não pede uma alta moralidade. Lida com os homens "como eles são". Uma sociedade cristã, socialista ou amiga da natureza demandaria muito mais de todos nós. Será que nos dispomos a pagar o preço da moral? Ela não é barata. Por isso, a questão é mais funda: pode ser que, estes séculos, estas décadas, tenhamos vivido na ilusão de que dava para viver bem e para viver segundo o bem. Pode ser que não dê. Pode ser que tenhamos de escolher. A ética é cara. Pode custar riqueza, cargos, a própria vida. Estaremos dispostos a incluir o heroísmo, talvez até o martírio, em nosso rol de experiências possíveis? Se não, a destruição periódica que o capitalismo efetua pode continuar sendo mais conveniente para nós.

Mesmo que, um dia, o planeta acabe.