Relatório de mais de 7 mil páginas que relatam massacres e torturas de índios no interior do país, dado como
queimado num incêndio, é encontrado intacto 45 anos depois.
A reportagem é de Felipe
Canêdo e publicada no jornal O
Estado de São Paulo, 21-04-2013.
A expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros e
visitou mais de 130 postos indígenas onde foram constatados inúmeros crimes e
violações aos direitos humanos. O governo ignorou pedido do Relatório Figueiredo para demitir 33 agentes públicos e
suspender 17.
Depois de 45 anos desaparecido, um dos documentos mais
importantes produzidos pelo Estado brasileiro no último século, o
chamado Relatório
Figueiredo, que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda
sorte de crueldades praticadas contra indígenas no país – principalmente por
latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) –, ressurge quase intacto.
Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi
encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio, com mais de 7 mil páginas preservadas
e contendo 29 dos 30 tomos originais.
Em uma das inúmeras passagens brutais do texto, a que o
Estado de Minas teve acesso e publica na data em que se comemora o Dia do Índio,
um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à
época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na
trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas
juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram
aproximadas lenta e continuamente”.
Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com
metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola
em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina, o texto
redigido pelo então procurador Jader
de Figueiredo Correia ressuscita incontáveis fantasmas e pode se tornar
agora um trunfo para aComissão da Verdade, que apura violações de direitos humanos
cometidas entre 1946 e 1988.
A investigação, feita em 1967, em plena ditadura, a
pedido do então ministro do Interior, Albuquerque
Lima, tendo como base comissões parlamentares de inquérito de 1962 e
1963 e denúncias posteriores de deputados, foi o resultado de uma expedição que
percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e
visitou mais de 130 postos indígenas. Jader
de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes, propuseram a
investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram
com a crueldade e bestialidade de agentes públicos. Ao final, no entanto, o
Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça nos anos seguintes.
Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33 pessoas do SPI e
a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas foram inocentadas pela
Justiça.
Os únicos registros do relatório disponíveis até hoje
eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando
houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para
detalhar o que havia sido constatado por Jader e
sua equipe. A entrevista teve repercussão internacional, merecendo publicação
inclusive em jornais como o New
York Times. No entanto, tempos depois da entrevista, o que ocorreu não
foi a continuação das investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam
participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de função, numa
tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do mesmo ano o governo
militar ba ixou o Ato Institucional nº 5, restringindo liberdades civis e
tornando o regime autoritário mais rígido.
O vice-presidente do grupo Tortura
Nunca Mais de São Paulo e coordenador do Projeto
Armazém Memória, Marcelo
Zelic, foi quem descobriu o conteúdo do documento até então guardado
entre 50 caixas de papelada no Rio de Janeiro. Ele afirma que o Relatório
Figueiredo já havia se tornado motivo de preocupação para setores que
possivelmente estão envolvidos nas denúncias da época antes de ser achado. “Já
tem gente que está tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte
medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter lido”,
acusa.
Suplícios
O contexto desenvolvimentista da época e o ímpeto por
um Brasil moderno encontravam entraves nas aldeias. O documento relata que
índios eram tratados como animais e sem a menor compaixão. “É espantoso que
existe na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão
baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade
tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas
para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e
adultos em monstruosos e lentos suplícios”, lamentava Figueiredo.
Em outro trecho contundente, o relatório cita chacinas no Maranhão,
em que “fazendeiros liquidaram t oda uma nação”. Uma CPI chegou
a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os algozes que ceifaram
tribos inteiras e culturas milenares.