segunda-feira, 18 de agosto de 2008

VAMOS FAZER UM 68 ?



Por: Carlos Gerbase

(Novembro/99)



Li, algumas semanas atrás, um livro que envelheceu assustadoramente (em seguida explicarei o uso deste advérbio), chamado Um ensaio sobre a revolução sexual após Reich e Kinsey, de Daniel Guérin, um francês bissexual, que hoje teria 95 anos (tentei descobrir, via Internet, se ainda está vivo, mas não consegui). O livro (da Brasiliense, editado em 1980) chegou à minha casa emprestado pelo meu amigo Moa (ou Moah Cyr, como queiram), há uns dez anos, mas eu nunca tinha prestado atenção nele (apesar de nunca tê-lo devolvido; até para isso é preciso um certo interesse). Mas, depois de rodar Tolerância, atravesso um surto (que alguns poderão associar a uma adolescência tardia, quiçá doentia) de curiosidade sobre o tema (a sexualidade humana, suas regras, seus mistérios), que me levaram a esse Ensaio.., à releitura de O taoísmo do amor e do sexo (do chinês Jolan Chang) e à obra de José Ângelo Gaiarsa (de quem já li três livros, algo repetitivos, mas sempre incisivos e corajosos).



Mas vou voltar à vaca fria, ou seja, ao livro de Guérin. O dado mais importante: foi escrito em 1969, ainda sob o tremendo impacto dos acontecimentos de maio de 68 (e ainda quando os Beatles tocavam e gravavam juntos; quando o "amor livre" era uma prática, e não uma lembrança; quando havia uma oposição clara entre direita e esquerda, entre capitalismo e socialismo; quando o termo "pós-modernidade" não havia sido cunhado, pois a modernidade ainda parecia ser o melhor remédio contra o reacionarismo). Em 69, Guérin apontava para um grande número de manifestações sociais e mudanças comportamentais da juventude ocidental e profetizava que o final do nosso século assistiria a uma radical transformação das relações amorosas, com efeitos profundos na família nuclear e na sociedade.


Para fortalecer seu prognóstico, Guérin fornece ao leitor informações básicas sobre os trabalhos de Reich (de quem se proclama fã) e de Kinsey (a quem faz críticas, mas reconhece como pesquisador sério), além de recuperar algumas idéias básicas de Freud. Enfim, traça um bê-a-bá dos estudos sobre sexo no século 20, dentro de uma perspectiva "progressista", ou seja, a de que a humanidade está (ou estava) evoluindo para um estágio de maior tolerância sexual, em que as minorias seriam mais felizes, porque menos reprimidas (para Kinsey, a problemática do homossexualismo é muito representativa, ou muito mais representativa do que parece à maioria heterossexual). Mas a evolução alcançaria também a maioria da população ocidental, e seus reflexos já estariam evidentes na crescente liberalização dos meios de comunicação de massa, nos festivais de rock (onde rola de tudo), na literatura libertária, nas revistas "para adultos", na indústria da pornografia, etc.


É, na verdade, um livro desigual, com bons capítulos, que parecem escritos com cuidado e preocupação estética, e outros textos que mais parecem panfletos, curtos no conteúdo e pobres na forma. Mas, no todo, é um livro perfeito para marcar uma época, um período da humanidade em que o otimismo em relação ao sexo era crescente (otimismo entre os que gostam de sexo, é claro. E eu não sei se estes são a maioria; temo que não). Guérin escreve em 68, mas parece impaciente para ver o que profetiza acontecendo em 78, ou 88, ou 98. Então, a grande pergunta que precisamos fazer é: o que aconteceu com aquela semente de liberação, que parecia capaz de germinar à força, vencendo todas as formas reacionárias de conservadorismo sexual?


Uma das respostas possíveis é dada pelo próprio Guérin, que se intitula socialista-anarquista (para ele, o anarquismo é uma forma evoluída de socialismo). A revolução sexual, conforme vista em 68, só seria vencedora e determinante de um novo conjunto de relações inter-pessoais, se a revolução socialista também fosse, antes dela (ou junto com ela) igualmente vencedora e determinante de uma novo conjunto de relações econômicas e sociais. Em outras palavras, para trepar à vontade, só derrubando o capitalismo e a insuportável pressão da "posse" de bens materiais e espirituais. E quem fará a dupla revolução? Guérin afirma que "a revolução sexual, do mesmo modo que sua gêmea, a revolução social, é, antes de tudo, obra do povo".


E o tal "povo", em 68, parecia estar disposto a esta dupla revolução. Não quero discutir o que significa a palavra povo (espero, ansioso, o filme de Furtado/Assis Brasil a esse respeito), mas posso antecipar que o "povo", em 68, na visão de Guérin, era uma entidade bem concreta, que tomava universidades, atirava pedras na polícia, fazia greves de verdade (e não esses simulacros horrendos que fazemos hoje) e tirava a roupa para protestar (e não para aparecer na mídia). Para Guérin, os sinais da revolução sexual, em pleno curso, estavam nas ruas e nas camas: "A liberdade de cada um de nós de trepar à vontade é um dos últimos direitos, uma das últimas fantasias de que dispomos. Ela deve permanecer (perdoem-me essa comparação) um dos meios de defesa do homem, assim como o sindicalismo operário existente contra o patrão, individual ou coletivo, ou o conselho operário que age contra os carros blindados de uma pretensa "ditadura do proletariado".


Vejam como Guérin não está atrelado à burocracia soviética (aliás, o stalinismo foi tremendamente reacionário quanto ao sexo) e à esquerda mais tradicional. Guérin apenas diz (e que bom ouvi-lo dizer isso, depois de fazer Tolerância) que sexo e política são assuntos muito próximos. Para buscar a liberdade sexual, é preciso entender (e romper) as amarras sociais e políticas que a sociedade impõe a seus sócios. E isso não é fácil. É difícil. Parecia mais possível em 68. Mas as revoluções, por ele anunciadas com tanto otimismo, revelaram-se, no máximo, surtos românticos de liberdade num mundo predestinado à cadeia lógica do capitalismo universal e totalizante. Nessa cadeia, o sexo é produto importante, gera muito dinheiro e é até admitido (veja-se a publicidade) como impulso natural, saudável e "positivo" do ser humano, mas a sua prática está longe, muito longe , de ser livre. Em 99, estamos muito mais perto de 58 (ano em que eu não existia) do que de 68 (ano em que ouvi Beatles e Rolling Stones pela primeira vez). É triste, mas é verdade.


Neste final de século, em que há evidente falta de perspectivas políticas, em que assistimos a todo momento a esquerda brigando com ela mesma, em que a direita dança sozinha numa breguíssima, imensa e interminável festa da revista "Caras", a tal revolução sexual, que um dia Guérin previu com tanta convicção, virou, virou, virou... na verdade, não virou nada. Continuou sendo uma eterna promessa, que minha geração não soube (ou não conseguiu) tornar realidade. A AIDS tem pouco a ver com essa derrota. Quando ela estabeleceu, em meados dos anos 80, "O GRANDE MEDO" (que a mídia soube explorar com todo o reacionarismo possível e imaginável) as coisas já estavam definidas. A AIDS foi apenas a pá-de-cal.


A não-revolução sexual é a vitória de uma sociedade de classes, que se afirma como a única possível, e que, portanto, continuará validando, cada vez com mais força, suas grandes instituições: o casamento monogâmico e exclusivista, a família patriarcal, o sexo como força procriadora (e não libertária) e o direito de consumir "sexo" como um produto, como um bem à venda, e não o de vivê-lo como um direito básico do ser humano. O capitalismo, enquanto erotiza à última potência um cigarro, um desodorante, ou um creme dental, determina a forma esquemática com que devemos nos apaixonar por outro ser humano e viver essa paixão da forma mais previsível e menos erótica possível.


Gaiarsa ainda lembraria que vivemos a ilusão de querer, nos dias de hoje, segurança e felicidade ao mesmo tempo, o que é uma impossibilidade completa. Ou temos a segurança da família, as bênçãos da sociedade, o fluxo regulado e seguro de bens materiais e emocionais que o capitalismo nos proporciona (e temos que nos contentar com o capitalismo rastaqüera brasileiro), ou buscamos a felicidade, que (sempre segundo Gaiarsa) só pode ser alcançada com liberdade sexual. Como a revolução fracassou, essa liberdade, hoje, está fora da lei, e quem se atreve a buscá-la estará infringindo toda sorte de normas, escritas e não-escritas. Será criticado pelos familiares, censurado pelos amigos e estigmatizado como "imoral" e "tarado" por quase todos. Por esses motivos, a segurança é, hoje, muito mais popular que a felicidade. E, ao que parece, continuará sendo no próximo século. Ou não?





Fonte: Não (www.nao-til.com.br).


(Extraído de: http://www.rizoma.net/interna.php?id=178&secao=desbunde)