Texto e fotos: Haroldo Castro
Um pequeno reino no Himalaia ensina
ao mundo como ser feliz
"A Felicidade Interna Bruta é mais importante do que o PIB. Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica." Jigme Singye, rei do Butão, em entrevista ao Financial Times
Uma nação encravada na Cordilheira do Himalaia está revolucionando alguns conceitos básicos da vida humana. Ao criar um novo índice para medir a qualidade de vida de seus habitantes, o Butão oferece uma receita inovadora para nosso mundo de hoje, demasiadamente ancorado em aspectos materiais.
Tudo começou com Jigme Singye Wangchuck, que substituiu seu pai como o rei do Butão, em 1972. Ele tinha apenas 17 anos de idade. Sua coroação, dois anos mais tarde, marcou o fim do isolamento do pequeno pais (menor que o Estado do Rio de Janeiro), escondido nas montanhas. De fato, até então, nenhum estrangeiro tinha autorização para entrar no reino, a não ser quando convidado pela família real. A partir de 1974, o paraíso proibido começou a abrir as portas ao mundo.
Nos 34 anos de reinado, o desafio do rei Jigme Singye Wangchuck foi o de equilibrar o desenvolvimento econômico com os valores culturais e espirituais da nação. Em 1987, respondendo a um repórter do jornal britânico Financial Times sobre a razão de o desenvolvimento no Butão caminhar a passos tão lentos, o rei teria respondido que "a Felicidade
Interna Bruta é mais importante do que o Produto Interno Bruto". E teria arrematado: "Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica."
0 conceito de o bem-estar do indivíduo não estar obrigatoriamente relacionado com bens materiais passou a percorrer o mundo e chamou a atenção de estudiosos. Afinal, o índice Produto Interno Bruto (PIB), usado por todas as nações do planeta, sempre foi considerado limitado. 0 PIB é apenas uma fórmula que determina a quantidade total da produção e do consumo de serviços e bens por meio de transações econômicas. Pouco importa se a riqueza foi originada de guerras, prostituição e devastação da natureza ou é o resultado de um trabalho honesto e uma atividade sustentável.
Se algum bem é conservado e não é consumido, essa operação não é registrada no PIB, pois esta não gera um valor específico. Por exemplo, uma floresta mantida intacta não entra no cálculo do índice, enquanto o conserto de um veículo acidentado (que pode até ter provocado vítimas fatais) é contabilizado. O PIB não consegue medir o trabalho voluntário e chega a ampliar a discriminação contra as atividades não-remuneradas, cujas motivações estejam acima do ganho financeiro.
"As medidas do PIB não medem a degradação do meio ambiente, o esgotamento dos recursos naturais nem o agudo declínio na qualidade de vida dos cidadãos. Acho que, em todos os espectros políticos, existe o reconhecimento dessas deficiências e a convicção que é importante desenvolver medidas mais adequadas", afirma joseph Stiglitz, economista reconhecido com o Prêmio Nobel 2001 de Economia. Stiglitz foi convidado pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, para desenvolver um novo sistema de cálculo econômico que possa incluir fatores de qualidade de vida.
As palavras de um rei (adorado por seus súditos) sobre a importância da felicidade foram levadas a sério pelos butaneses. Era preciso colocar em prática o desejo real e o índice Felicidade Interna Bruta (FIB) devia ser sistematizado. Em 1998, o conselho de ministros estabeleceu o Centro de Estudos do Butão, o qual passou a organizar as informações sobre a FIB. O conceito também foi incluído nos Planos Qüinqüenais e foi definido que a FIB deveria se apoiar em quatro pilares: desenvolvimento socioeconômico sustentável e eqüitativo, conservação ambiental, promoção do patrimônio cultural e boa governança.
Enquanto isso, ao redor do mundo, um número crescente de economistas, cientistas sociais e empresários buscava outras medidas e indicadores que levassem em consideração não apenas o fluxo de dinheiro (como no caso do PIB), mas também a saúde, a cultura, o tempo livre dos indivíduos, a conservação da natureza e outros fatores não-econômicos.
Vários índices começaram a aparecer na década de 90. O primeiro passo foi dado com o estabelecimento do índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o IDH, além de incluir a renda per capita de um país, dá destaque à expectativa de vida dos habitantes, ao grau de alfabetização e às realizações educacionais.
Já o Indicador de Progresso Genuíno (IPG) introduz em seus cálculos os fatores negativos criados pela sociedade, os quais não são contabilizados pelo PIB. Por exemplo, a implantação de uma fábrica representa — indiscutivelmente — um aumento no PIB de uma região. Mas se os benefícios trazidos pela nova empresa também vierem acompanhados por uma degradação da saúde, da cultura e do bem-estar da comunidade, o resultado final pode ser zerado, anulando os benefícios econômicos trazidos. Segundo os seguidores do IPG, existem vários custos não-econômicos que devem ser incluídos, como o de uso dos recursos naturais, de perda dos ecos-sistemas, de poluição (sonora, do ar e da água), de criminalidade e, até mesmo, de dissolução de famílias.
Outra tentativa de medir o bem-estar da sociedade, ainda menos ortodoxa, é o índice do Planeta Feliz (IPF), criado pela Fundação New Economics, um think-tank (usina de idéias) britânico. Um dos componentes mais importantes do IPF é a eficiência ecológica de uma nação e de seus indivíduos. A idéia não é identificar o país "mais feliz" do planeta, mas sublinhar que é possível atingir altos índices de bem-estar e viver plenamente sem consumir excessivamente ou desgastar os recursos naturais.
Medir valores subjetivos, como a felicidade, é uma tarefa complicada, pois cada pessoa a compreende de forma distinta. Para alguns cientistas, a mente funciona apenas como um aparelho que responde a estímulos externos. A felicidade, nesse caso, é percebida como uma conseqüência direta dos prazeres sensoriais registrados pela mente. Como estes são passageiros, a ênfase na busca de estímulos materiais é cada vez maior.
Já a filosofia budista aponta para outra fonte de felicidade, aquela que tem origem em estímulos internos. E o estado em que o indivíduo vivencia o "ser", ao contrário de reagir apenas aos estímulos externos. A ciência comportamental comprovou que, de fato, a mente pode ser treinada por meio de práticas específicas (como a meditação) para promover estados duradouros de serenidade e contentamento. Quando a felicidade é compreendida dessa maneira, a busca desenfreada pelas sensações externas e o conseqüente consumo insustentável dos recursos naturais podem ser reduzidos consideravelmente, promovendo uma economia mais saudável.
Segundo Karma Ura, presidente do Centro de Estudos do Butão, uma autoridade na pesquisa da FIB em seu país, a felicidade deve ser "um bem público, já que todos os seres humanos almejam alcançá-la". Ele acrescenta que "a busca da felicidade não pode ser deixada exclusivamente a cargo de esforços privados. Se o planejamento do governo e as condições macroeconômicas da nação forem adversos à felicidade, esse planejamento fracassará como meta coletiva. Os governos precisam criar condições que conduzam à felicidade".
O primeiro-ministro do Butão, Jigmi Thinley, em discurso na Assembléia Geral da ONU em setembro, explicou por que seu país instituiu a FIB. “É responsabilidade do Estado criar um ambiente que permita aos cidadãos buscar a felicidade." Ele considera que o ser humano deve ser visto de uma forma holística. "O bem-estar material é apenas um componente e este não assegura que os cidadãos estejam em paz com o ambiente e em harmonia entre eles."
Contando com o apoio incondicional do monarca, a FIB passou a ser um elemento estratégico da política de planejamento do Butão e criou-se uma coleção de novos indicadores socioambientais. Um questionário com 1.300 perguntas foi elaborado e uma amostra da população respondeu ao teste. A pesquisa incluía as mais variadas perguntas, como quantas horas o indivíduo dormia à noite ou quanto tempo passava com amigos e parentes.
A convite do PNUD, Michael Pennock, diretor do Observatório para Saúde Pública em Vancouver, Canadá, passou três meses no Butão em 2006 para desenvolver um questionário mais "internacional" sobre a busca da felicidade. "O questionário butanês era muito longo, eram necessárias seis horas para ser respondido. Fui ao Butão para criar uma versão menor, mais concisa, que pudesse ser respondida em 20 ou 30 minutos. Usamos apenas 100 variáveis para indicar os níveis de satisfação de um indivíduo no seu cotidiano", diz Penncock.
Os pilares da FIB no Butão foram "ocidentalizados" e passaram a ter nove dimensões. Além das quatro iniciais — bom padrão de vida, boa governança, proteção ambiental e promoção da cultura — foram adicionados outros cinco itens: educação de qualidade, boa saúde, vitalidade comunitária, gestão equilibrada do tempo e bem-estar psicológico.
-Foi preciso dar pesos diferentes para cada área, em cada país. Para
países mais pobres, enfatizamos as necessidades materiais. No Butão, um peso maior foi conferido ao aspecto cultural — o que não acontece no Canadá, uma nação multicultural por natureza", explica Penncock.
O conceito da FIB já chegou ao Brasil. No final de outubro, o butanês Karma Ura se reuniu em São Paulo com empresários interessados em sustentabilidade, deu palestras na Unicamp e na USP e participou da I Conferência Brasileira sobre a FIB. Apesar de ter estranhado o clima quente e úmido, Ura adorou o calor humano brasileiro. "Tenho certeza de que o conceito da Felicidade Interna Bruta vai ser bem aceito no Brasil. Vocês sabem o que é ser feliz."
Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista.
Ele é o fundador do Clube de Viajologia e já documentou 138 países.
haroldo@viajologia.com.br
www.viajologia.com.br
Revista Planeta JANEIRO 2009