por Gianni Carta
Marcado por protestos em várias partes do mundo, o ano de 1968, o mais simbólico do século XX, tem sua importância reavaliada por historiadores e protagonistas
Maio em Paris: pólo irradiador ou efeito de alcance restrito?
Quarenta anos atrás, manifestações sacudiram o planeta, mulheres e negros lutaram pelos seus direitos civis, os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy traumatizaram os Estados Unidos, os soviéticos invadiram Praga, e criou-se a impressão de que o mundo mudava. No entanto, neste aniversário do lendário ano de 1968 não se sabe ao certo se vale a pena assoprar velas.
Dentro de três meses, saberemos como a França se comportará. A mítica revolta de maio de 68 foi iniciada por um punhado de alunos da Universidade de Nanterre, Paris, insatisfeitos com o “sistema” autoritário e com a burocracia responsável pelo financiamento da instituição. Nanterre, sob a liderança do franco-alemão Daniel Cohn-Bendit (teria sido seu papel amplificado pela mídia, minimizando, assim, a participação de outros líderes apolíticos ou filiados a partidos e sindicatos?), teria engatilhado mais enfrentamentos quase-revolucionários Europa afora e na América Latina.
De modo geral, tratava-se de uma juventude disposta a se rebelar contra a rigidez da polícia, das administrações universitárias e de seus pais. Mas o mais sólido elo entre manifestantes de diversos países foi a oposição à guerra no Vietnã. Por que, então, quatro décadas após aquele marcante ano, tantas dúvidas sobre como interpretá-lo permanecem sem respostas?
Em May 68: A Contested History, a avaliação do historiador Chris Reynolds, da Nottingham Trent University, do Reino Unido, é válida também para certos países. “Quando consideramos os eventos (na França), suas conseqüências, interpretações ou explicações, é bastante difícil, se não impossível, de se chegar a um real consenso”, argumenta Reynolds.
Um exemplo de falta de consenso é sobre o papel da polícia, em particular das Companhias Republicanas de Segurança (CRS), no confronto com os estudantes em Paris. Após o sumiço do presidente Charles de Gaulle (ele pretendia renunciar ao rumar com a família para Baden-Baden, ou criar suspense?), e seu subseqüente discurso de 30 de maio, no qual anunciou o fim do conflito, veio chumbo por parte do governo, preocupado com obstáculos surgidos durante a campanha legislativa, em junho (pressionado, De Gaulle dissolveu a Assembléia). Foi banida uma série de grupos de esquerda e jornais. Gilles Tautin, um estudante, e dois operários da Peugeot, Pierre Beylot e Henri Blanchet, foram mortos pelas CRS.
Há quem defenda a tese de que o número reduzido de mortos (sem contar os feridos), naquela delicada situação, demonstra a habilidade da polícia. Cenas de brutalidade foram, porém, confirmadas pela televisão, nova tecnologia que transformou os noticiários, e influenciou vários manifestantes apolíticos a participarem do conflito, a favor dos estudantes.
Violência, diga-se, não faltou em outros países. Por tabela, alguns experts dizem que o fenômeno, em Paris, deve ser incluído num contexto internacional. Reynolds pondera, contudo, que “cada região experimentou os eventos de sua própria maneira, com várias motivações, devido a diversas demandas”, e o mesmo se aplica a outras cidades espalhadas pelo mundo. Em suma, é mítica a percepção de que Maio de 68 só aconteceu em Paris, e não no resto da França.
No México, em outubro, o Exército reagiu com brutalidade a manifestações de estudantes por melhores condições nas universidades. O episódio, que passou à história como o Massacre de Tlatelolco, acabou na morte de 48 universitários e cerca de 500 presos e feridos.
Em Berlim, houve protestos contra a guerra no Vietnã, a primeira a ser televisionada. Ao contrário da França, na Itália os estudantes uniram-se à classe operária. Após duas semanas de demonstrações contra a brutalidade da polícia, a Universidade de Roma foi fechada. Uma das repercussões de 1968 foi a proliferação de movimentos armados, como as Brigadas Vermelhas, na Itália, e o Baader-Meinhof, na Alemanha.
Em Varsóvia, narra a CartaCapital o jornalista Leszek Mazan, então com 26 anos, uma peça do poeta Adam Mickiewicz no Teatro Nacional foi banida. “Isso foi pretexto para manifestações estudantis em Varsóvia, Cracóvia, Lódz e outras cidades”, diz Mazan. Em 21 de agosto, os soviéticos invadiram Praga e prenderam o primeiro-secretário do Partido Comunista, Aleksander Dubcek, o qual havia tentado estabelecer reformas democráticas na então Tchecoslováquia.
“Após 68”, diz Mazan, que seria correspondente em Praga durante a década de 70, “o país viveu mais 21 anos de tirania.”
Leland Emerson McCleary, professor de letras modernas da Universidade de São Paulo (USP), presente, aos 24 anos, em manifestações de 1968 no seu país natal, os Estados Unidos, avalia: “Maio de 68 não significa nada para mim, especificamente. Nos Estados Unidos, toda a década de 60 foi de protesto. Ainda no colegial, em Houston, Texas, no início da década de 60, tomei parte em manifestações que uniam brancos e negros, a fim de provocar estabelecimentos segregados, como restaurantes”.
Elizabeth Vance, em 1968 aluna de pós-graduação da California State University at Long Beach, hoje professora de Sociologia no Santa Monica College, resume: “1968 foi um ano caótico, ligado, em grande parte, ao envolvimento dos EUA no Vietnã. Martin Luther King foi assassinado em 4 de abril, o senador Robert F. Kennedy foi morto em 5 de junho, e, em agosto, tivemos demonstrações na Convenção Nacional do Partido Democrata, em Chicago”. Vance afirma que participou de várias manifestações. “Certamente fui fotografada pela CIA.”
Perguntada sobre quais foram os legados dos anos 60, Vance responde: “Foram os anos nos quais uma resistência a desigualdades e contra a guerra aumentou dramaticamente”. A socióloga acrescenta que “as mulheres deram largos passos. Além disso, a pílula lhes deu maior liberdade sexual. Os gays continuam lutando, mas nos anos 60 conseguiram vitórias. Os negros iniciaram o movimento de direitos civis, e Martin Luther King deu continuidade a ele”.
Mais pessimista, Wilton Woods, universitário em 1968 e manifestante contra o Vietnã, crê que, com a morte de Luther King, o movimento de direitos civis a favor dos negros arrefeceu. “Os negros conseguiram avanços nos últimos anos em várias áreas, mas foram muito superficiais em outras”, argumenta Woods, ex-editor da quinzenal Fortune. “Mas a popularidade de negros não foi conseguida no tablado político, e sim graças a atletas negros e à mídia que divulga suas imagens.”
Woods acredita que a cobertura da mídia da violência em Chicago, em 1968, centrada no ponto de vista da polícia, abriu caminho para os reacionários tomarem o poder. “Durante uma geração, as cenas de violência, em Chicago, foram usadas pelos republicanos e outros grupos conservadores para atacar democratas, hippies, e manifestantes em geral”, afirma. O resultado, interpreta Woods, foram as eleições de Richard Nixon e Ronald Reagan, e a tomada do Congresso pelos republicanos, nos anos 90.
Na França, argumenta Reynolds, a “falta de consenso” gerou novas análises sobre Maio de 68 a partir dos hedonísticos anos 80. Aquele período passou a ser visto por significante fatia da população (incluindo o atual presidente Nicolas Sarkozy) como um “carnavalesco psicodrama”. Mais: 1968 perdeu seu “apelo romântico”, e teria impulsionado a predominância do capitalismo na França. “Criou, assim, o oposto daquilo que pretendia realizar”, conclui Reynolds.
Os protestos no Brasil
por Maurício Dias, Carta Capital, 27/01/2008, edição 480.
Jean Marc von der Weid, destacado dirigente do movimento estudantil, analisa a importância e os frutos das revoltas no País
Jean Marc von der Weid, 62 anos, não lembra mais a figura carbonária que infernizou a vida da polícia nas ruas da cidade em 1968. A diferença, 40 anos depois, não é tanto pelo envelhecimento do corpo, visível no desaparecimento da cabeleira vasta que mantinha na juventude, e sim pelo amadurecimento das reflexões sobre o que viveu.
Aos 22 anos, quando presidia o diretório da influente Faculdade de Química e era um atuante líder estudantil, não percebeu que o movimento desencadeado por jovens como ele, Vladimir Palmeira, Marcos Medeiros e Elinor Brito, entre outros, podia ter removido os militares do poder muito antes do ocorrido. É no que acredita.
Jean Marc está convicto: os estudantes não entenderam que a sociedade aglutinada, por exemplo, na célebre “passeata dos 100 mil”, realizada em junho de 1968 nas ruas do Rio de Janeiro, ansiava pelo restabelecimento da democracia. “Podíamos ter acelerado o fim do regime militar”, afirma, na entrevista que se segue.
CartaCapital: A greve geral estudantil foi um dos pontos altos do movimento das manifestações de 1968. Qual foi a importância dela naquele ambiente político?
Jean Marc von der Weid: No primeiro momento, ela generalizou a luta estudantil. A morte do Edson Luís foi uma explosão. Houve protestos, muita emoção, e acabou. A greve geral foi um elemento de mobilização muito amplo. A partir da greve houve uma manifestação importante no pátio do prédio do Ministério da Educação. Foi o primeiro movimento no contexto que antecedeu a passeata dos 100 mil. Enquanto movimento estritamente estudantil, foi a maior que a gente fez. Juntou mais de 10 mil pessoas. Nessa primeira não chegou a haver “porradaria”, porque a polícia ficou protegendo o MEC e a gente saiu. Em seguida, ocorreu uma reversão de alianças dentro do movimento. Até aquele momento quem puxava a mobilização éramos nós, da AP, apoiados pelo PCBr e pelo PcdoB.
CC: O que isso significou na prática?
JMW: Queriam parar a mobilização. Por que parar? Queríamos mais verbas e mais vagas e não tínhamos conseguido nada. Achei que era hora de desafiar o ministro da Educação outra vez e, se necessário, ir para a porrada. A Dissidência comunista me apoiou e os meus aliados da véspera votaram contra. Ficaram a favor do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nossa proposta venceu e fizemos, então, uma manifestação que foi a primeira em horário diferente. Isso mudou tudo. Todas as outras foram feitas no fim de tarde.
CC: Por que a mudança de horário?
JMW: A lógica do fim de tarde era pegar o trânsito. Atravancava e a polícia tinha dificuldade para se deslocar. Só que, com o tempo, o centro da cidade se esvaziava e ficávamos nós e a polícia. Propus a manifestação para o meio-dia. Juntamos 4 mil nessa manifestação. Naqueles dias, o movimento estudantil entrara em declínio. Isso foi uma semana antes da passeata dos 100 mil. Encontramos de novo a polícia no pátio do ministério. Só que desta vez a gente partiu para cima. Tomamos o pátio do MEC e, sem saber o que fazer com aquilo, saímos pelo centro da cidade. Aí virou, de fato, uma manifestação que não era mais estudantil. Era da massa quebrando o pau com a polícia. Já quase no final botaram fogo em um carro do Exército. Peguei um ônibus e, em frente ao prédio da UNE, na praia do Flamengo, fui preso, acusado de ser o incendiário.
CC: Como a imprensa tratou isso?
JMW: As reportagens promoveram uma mobilização que o movimento estudantil não conseguia mais fazer, até porque muita gente tinha sido presa. Marcaram uma manifestação na porta da embaixada americana e até hoje eu não tenho muito claro como é que foi decidido isso. Sempre foi um tabu entre os estudantes do Rio de Janeiro fazer manifestação na porta da embaixada. Era visto como um ato de provocação. Mesmo assim ela foi realizada. Não tinha 300 pessoas. A capacidade de mobilização vinha caindo. Houve tiroteio e a manifestação rachou. A grande maioria da direção voltou para a Faculdade de Química, na Praia Vermelha. Uma parte dos estudantes percorreu o centro da cidade. A polícia foi atrás e a coisa virou uma insurreição popular que durou até as 10 horas da noite. O pessoal que tinha ido para a Faculdade foi preso e levado para o campo do time do Botafogo, que fica perto. Esse pessoal foi massacrado pela Polícia Militar. Várias forças se mobilizaram a partir dessa repressão violenta. Isso resultou na passeata dos 100 mil.
CC: Você participou?
JMW: Não. Eu continuava preso no Batalhão de Infantaria Blindada. Fiquei lá duas semanas. Nesse meio-tempo soube da negociação com o general Costa e Silva, presidente da República. Houve uma negociação para escolher uma comissão aceitável para o governo. Do movimento estudantil foi o Franklin Martins, presidente do DCE da UFRJ, o Marcos Medeiros, presidente do DCE da Faculdade de Filosofia, um padre e um professor. Não puseram nem o Luiz Travassos, presidente da UNE, nem o Vladimir, presidente da União Metropolitana de Estudantes (UME), porque eram notoriamente de entidades clandestinas. Não seriam recebidos. Foi uma coisa inteligente. Mas, quando apareceu nos jornais a lista de reivindicações, eu fiquei perplexo. Os integrantes dessa “Comissão dos 100 mil” exigiam a minha libertação e a de mais três presos, a reabertura do Calabouço e a Reforma Universitária.
CC: O que o deixou perplexo?
JMW: Eu não tinha noção exata na ocasião. Mas sabia que uma manifestação com dezenas de milhares de pessoas não tinha sido mobilizada em torno de interesse exclusivo do movimento estudantil. A massa não foi às ruas porque eu estava preso ou porque queria a reforma universitária. Foram por um sentimento difuso em defesa da democracia violada pela ditadura. Não saberia dizer se, naquela altura, eu seria capaz de propor outra coisa.
CC: A sociedade queria a democracia.
JMW: Nós não entendemos assim. Uma parte do movimento já estava com a estratégia da guerrilha na cabeça e achava que um movimento democrático amplo era uma ilusão.
CC: O ano de 1968 foi marcado por explosões de revolta estudantis em quase todo o mundo. Há uma identidade nesses movimentos?
JMW: Muito menos do que parece. Duas coisas são seguras: não é a lógica de ocorrências internacionais que motivava as direções dos movimentos aqui no Brasil. O contexto internacional tinha pouca influência aqui. Nosso movimento era meio autista nesse sentido. Muito centrado nas questões estudantis.
CC: Vistas de hoje, 40 anos depois, qual o balanço daquelas manifestações?
JMW: Acho que teve resultados. O mais objetivo foi a conservação da universidade pública, gratuita, no Brasil. Isso se deve, em grande parte, à reação do movimento estudantil entre 1964 e 1968. Dali para a frente a ditadura faz outra coisa. Ante a pressão social, incentivou o ensino privado.
CC: O movimento teria retardado o fim da ditadura?
JMW: Não. Podia ter acelerado o fim. A luta pela democracia, da segunda metade dos anos 70, foi o que derrotou o regime militar.
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Comentário de jholland, 28/01/2008. às 10:45
O que faltou dizer é que nós todos somos frutos de Maio/68. Não creio que seja uma avaliação exagerada. Maio/68 foi a culminância de uma reviravolta na filosofia ocidental, no nosso paradigma, o modo como sentimos o mundo e a perspectiva adotada. E isso dos "dois lados", ou seja, a explosão das máquinas desejantes representou uma tentativa de conciliação com o inconsciente, obrigando o sistema egóico-racionalizante - o sistema "Neo-Dadá" - a se reciclar. Tudo bem, isso já estava inscrito no pós-II Guerra, pois o capitalismo da produção já havia sido substituído pelo capitalismo-do-fetiche-e-do-consumo. Poderiamos até estabelecer um certo paralelismo entre o pós-I-Guerra (com a ascenção dos EUA e do capitalismo do consumo) e a eclosão das Vanguardas; e o pós-II-Guerra, com a eclosão de Maio/68.
Qualquer "balanço" daqueles acontecimentos deve levar em consideração os seguintes fatores - todos eles interligados: 1) a alteração do natureza do sistema hegemônico e a consequente incorporação de parcelas maiores da sociedade - a eclosão da sociedade de consumo, os meios de comunicação de massa, o surgimento da classe média, a burocratização etc; 2 ) a explosão do "desejo" e sua incorporação pela ideologia que passa a se alicerçar cada vez mais na manipulação das emoções; 3) o desaparecimento da via "socialista" clássica - capitalismo da produção x capitalismo do consumo; classe média x proletariado; 3)a análise dos resíduos/recalques (a questão ecológica - esta já se encontrava no centro das procupações de Debord ao final de sua vida...).
Muito oportuna esta postagem, pois o próprio Blog Diacrianos não existiria se não tivesse havido Maio/68.