No
contexto da atual conjuntura mundial, “o colapso econômico pressente-se
próximo e os grandes poderes transnacionais vão afagando a opção
militar como cada vez mais ‘necessária’”, escreve Andrés Piqueras, professor de Sociologia da Universidade Jaume Ide Castellón, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 11-09-2014. A tradução é deAndré Langer.
E termina o artigo perguntando: “Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora à Europa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?”
Eis o artigo.
Na
dramática conjuntura mundial que temos pela frente, confluem dois
processos de enorme gravidade. Por um lado, a Segunda Grande Crise do
capitalismo, que se arrasta com altos e baixos desde a década de 1970 e
que parece não encontrar caminhos para a retomada do capital produtivo
(razão pela qual o sistema empreendeu esta louca deriva financeira). Por
outro lado, o colapso da hegemonia econômica dos Estados Unidos e o consequente declínio do dólar como moeda de troca internacional.
Diante
disso, a hegemonia mundial enfrenta e oferece ao mundo duas
possibilidades: 1) ou uma coordenação com as potências asiáticas na
busca de uma moeda internacional participada por diferentes moedas
nacionais, e inclusive materializada com relação ao ouro ou alguma fonte
de energia como o petróleo, ou 2) declarar guerra contra boa parte do
mundo para manter a liderança dos Estados Unidos, graças ao poderio militar.
A
primeira opção na realidade está bastante afastada, pois supõe não
apenas a ilusão de relações internacionais baseadas na cooperação, senão
que o descontrole financeiro e a geração de capital fictício a que
chegou o capitalismo torna cada vez mais difícil a conexão entre a
dinâmica de acumulação financeira atual e a economia real. Sendo assim, o
colapso econômico pressente-se próximo e os grandes poderes
transnacionais – a potência mundial que os sustenta e os Estados de
segunda fila a ela subordinados, com os da União Europeia (de agora em diante chamados como assistentes) – vão afagando a opção militar como cada vez mais “necessária”.
Vejamos. Onde esses poderes intervieram até agora semearam a destruição e deixaram o caos atrás de si. O
Grande Plano na
Ásia Central e Ocidental, assim como também em grande parte da
África,
consiste em esquartejar os Estados não dóceis, de maneira que atrás não
resta nada parecido a uma institucionalidade central que possa ter um
controle do território, populações e recursos. Terras arrasadas nas mãos
de “senhores da guerra”, muitas vezes destacando como principal poder
a
Al Qaeda ou alguma de suas ramificações. Territórios barbarizados sem Estado (
Iraque,
Afeganistão,
Líbia,
Somália,
Congo,
República Centro-Africana...).
Em quase todos eles ganha cada vez força, como não podia deixar de ser
de outra forma diante da destruição das sociedades civis, o chamado
“islamismo radical”. Esta é a manifestação mais palpável hoje do
fascismo transnacional, e foi possibilitado quando alimentado e muitas
vezes ajudado a criar-se pelas potências autodenominadas “ocidentais”,
ou alguns de seus mais diretos “aliados”, como
Israel ou os países do
Golfo, especialmente a
Arábia Saudita (ver o
magnífico livro de
Gilles Kepel,
Jihad. Expansão e declínio do islamismo), certamente este último país continua financiando o
Estado Islâmico (também não se deve perder de vista os artigos de
Nazanín Armanian neste mesmo jornal), enquanto que os amigos “ocidentais” dizem agora combatê-lo.
Os
Estados Unidos descobrem “de repente” a maldade do
Estado Islâmico (mostrando-nos
todo tipo de imagens e notícias assustadoras a este respeito) para
reordenar geoestrategicamente a zona. O apoio aos
curdos iraquianos objetiva a divisão do
Iraqueem pequenos Estados dependentes (à imagem do que se fez na
Iugoslávia),
enquanto que os bombardeios seletivos estadunidenses são realizados nas
zonas em que se encontram os oleodutos e fontes de petróleo, para que
nenhum grupo armado lhes tire a exclusividade da usurpação. Também
pretende legitimar-se um corredor de bombardeios sobre a Síria, atacando
por fim de forma direta o Exército sírio, dado que parece que seus
exércitos privados e os milhares e milhares de mercenários treinados,
apetrechados e financiados por ele mesmo e os assistentes (mais a
Arábia Saudita e outros países do
Golfo),
não se bastam por si mesmos. Esses fascistas transnacionais “comeram”
há tempo a verdadeira oposição síria, e realizam na prática a
incumbência que o fascismo sempre teve: ser o elemento de choque do
capital contra as forças populares, o cavalo de batalha daquele para a
destruição social.
Por isso, hoje a Síria é
um dos lugares chaves onde se joga o destino contra as forças de
destruição fascistas, cujo objetivo passa igualmente pelo
esquartejamento do Estado sírio (e com isso de passagem, cortam-se os
oleodutos que chegam da Ásia central aoMediterrâneo, nos quais está implicada a Rússia). Derrubada a Síria, Israel ficaria praticamente como o único Estado na zona (além das bárbaras monarquias do Golfo, aliadas). É o projeto do Grande Israel como dono de toda a Ásia Ocidental.
Outro lugar vital onde se joga a luta contra o fascismo transnacional é a
Ucrânia.
Enquanto
os nossos doutrinadores meios de difusão de massas insistem em nos
proporcionar imagens de russos malvados, o certo é que na Ucrânia houve um golpe de Estado contra o presidente eleito nas urnas, com grupos financiados pelos Estados Unidose assistentes e com o apoio das organizações nazistas locais. Assim, se na Europa fez necessário uma Guerra devastadora e cerca de 60 milhões de mortos para nos livrarmos do nazismo, os Estados Unidos no-la trouxeram de volta novamente em poucas semanas (cortesia do “país da Liberdade”).
Com isso, os Estados Unidos tratam de separar a Europa da Rússia (com a obsessão, além disso, de dividir a Rússia da sua enorme reserva energética – na realidade a grande reserva do mundo – a Sibéria), assim como colocar a ameaça militar nas próprias portas deMoscou. Este caminho leva a Europa,
por sua vez, a ficar “isolada” do mundo asiático em crescimento e
ancorada ao obstáculo dos países anglo-saxões em decadência. Ao
contrário, uma integração ou coordenação com a Rússia, como muito bem sabe a classe capitalista alemã, poderia proporcionar de sobra à Europa a
energia de que tanto necessita, a via dos mercados asiáticos, assim
como segurança militar (os europeus não necessitariam realizar esses
enormes gastos com armamentos propostos pelos Estados Unidos).
Isto para não mencionar a própria Ucrânia, onde o Tratado de Livre Comércio com a Europa, que por um mínimo de dignidade o presidente eleito, Yanukóvich,
negou-se a assinar, acabará de desfazer uma economia já em estado de
coma: desastrosas semeaduras de primavera, cultivos de vegetais
arruinados, quase total falta de crédito, graves problemas com o gás,
aumento vertiginoso dos preços dos carburantes. Ninguém está dando
nenhuma ajuda econômica à Junta de Kiev, apesar das promessas do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia.
A condição para isso é que “tenha o controle de todo o seu território”.
É, por isso, muito provável que logo vejamos autênticos levantamentos
populares nesta República.
A
Rússia,
por sua vez, aguenta como pode o aguaceiro. E mesmo que seja por seus
próprios interesses, enfrenta o fascismo transnacional na
Europa (fascismo ocidental – cristão) e na
Ásia (fascismo oriental – islâmico). Conseguiu, por enquanto, frear suas vitórias na
Ucrânia e na
Síria e colabora há algum tempo com o que resta do Estado do
Iraque no combate ao fascismo islâmico (tente-se comparar também o
Afeganistão que existia aliado da antiga
URSS e o atual, após a intervenção do “Ocidente”).
Não se trata de uma relação de “bons e maus” (a Rússia é
hoje um país capitalista a mais), mas de chaves geoestratégicas que
estão ligadas a questões chaves. Enquanto as economias dos Estados Unidos e assistentes vão perdendo ancoragens de dominação e se veem mais e mais necessitadas dos recursos alheios, a Rússia e a China manejam
juntas a maior parte dos recursos do mundo e suas economias, no
momento, têm melhores perspectivas de futuro. É por isso que alguns
estão interessados na guerra global e outros não. Exatamente o contrário
do que nos mostram os nossos meios de intoxicação de massas. Por isso é
imprescindível situar-se dentro desses parâmetros em cada conflito. Por
isso é fundamental, na luta contra o fascismo, manter o cessar-fogo na Ucrânia; e, por isso, os Estados Unidos e assistentes farão de tudo para boicotá-lo.
A Rússia e a China não
cessam de estabelecer entre si diferentes acordos e convênios, assim
como de expandir suas redes nos grandes mercados asiáticos, construindo o
principal núcleo econômico do mundo. A Organização de Cooperação de Xangai é apenas um exemplo disso.
Pelo
contrário, em casa, cada vez parece mais certo que se não mudar
radicalmente o rumo econômico e político, logo sofreremos outro
cataclismo financeiro, e preparem-se porque desta vez os Estados já
consumiram todos os botijões de dinheiro que tinham para apagar o fogo
(e transferir o nosso dinheiro para o mundo financeiro-bancário e, em
conjunto, ao Grande Capital).
Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora àEuropa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?
Diante do fascismo transnacional que recruta população lumpenizada sem cessar, onde ficou o internacionalismo dos povos?