sábado, 11 de outubro de 2014

O fascismo transnacional e o demônio russo


 
No contexto da atual conjuntura mundial, “o colapso econômico pressente-se próximo e os grandes poderes transnacionais vão afagando a opção militar como cada vez mais ‘necessária’”, escreve Andrés Piqueras, professor de Sociologia da Universidade Jaume Ide Castellón, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 11-09-2014. A tradução é deAndré Langer.
E termina o artigo perguntando: “Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora à Europa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?”
Eis o artigo.
Na dramática conjuntura mundial que temos pela frente, confluem dois processos de enorme gravidade. Por um lado, a Segunda Grande Crise do capitalismo, que se arrasta com altos e baixos desde a década de 1970 e que parece não encontrar caminhos para a retomada do capital produtivo (razão pela qual o sistema empreendeu esta louca deriva financeira). Por outro lado, o colapso da hegemonia econômica dos Estados Unidos e o consequente declínio do dólar como moeda de troca internacional.
Diante disso, a hegemonia mundial enfrenta e oferece ao mundo duas possibilidades: 1) ou uma coordenação com as potências asiáticas na busca de uma moeda internacional participada por diferentes moedas nacionais, e inclusive materializada com relação ao ouro ou alguma fonte de energia como o petróleo, ou 2) declarar guerra contra boa parte do mundo para manter a liderança dos Estados Unidos, graças ao poderio militar.
A primeira opção na realidade está bastante afastada, pois supõe não apenas a ilusão de relações internacionais baseadas na cooperação, senão que o descontrole financeiro e a geração de capital fictício a que chegou o capitalismo torna cada vez mais difícil a conexão entre a dinâmica de acumulação financeira atual e a economia real. Sendo assim, o colapso econômico pressente-se próximo e os grandes poderes transnacionais – a potência mundial que os sustenta e os Estados de segunda fila a ela subordinados, com os da União Europeia (de agora em diante chamados como assistentes) – vão afagando a opção militar como cada vez mais “necessária”.
Vejamos. Onde esses poderes intervieram até agora semearam a destruição e deixaram o caos atrás de si. O Grande Plano na Ásia Central e Ocidental, assim como também em grande parte da África, consiste em esquartejar os Estados não dóceis, de maneira que atrás não resta nada parecido a uma institucionalidade central que possa ter um controle do território, populações e recursos. Terras arrasadas nas mãos de “senhores da guerra”, muitas vezes destacando como principal poder a Al Qaeda ou alguma de suas ramificações. Territórios barbarizados sem Estado (IraqueAfeganistãoLíbiaSomáliaCongo,República Centro-Africana...). Em quase todos eles ganha cada vez força, como não podia deixar de ser de outra forma diante da destruição das sociedades civis, o chamado “islamismo radical”. Esta é a manifestação mais palpável hoje do fascismo transnacional, e foi possibilitado quando alimentado e muitas vezes ajudado a criar-se pelas potências autodenominadas “ocidentais”, ou alguns de seus mais diretos “aliados”, como Israel ou os países do Golfo, especialmente a Arábia Saudita (ver o magnífico livro de Gilles Kepel,Jihad. Expansão e declínio do islamismo), certamente este último país continua financiando o Estado Islâmico (também não se deve perder de vista os artigos de Nazanín Armanian neste mesmo jornal), enquanto que os amigos “ocidentais” dizem agora combatê-lo.
Os Estados Unidos descobrem “de repente” a maldade do Estado Islâmico (mostrando-nos todo tipo de imagens e notícias assustadoras a este respeito) para reordenar geoestrategicamente a zona. O apoio aos curdos iraquianos objetiva a divisão do Iraqueem pequenos Estados dependentes (à imagem do que se fez na Iugoslávia), enquanto que os bombardeios seletivos estadunidenses são realizados nas zonas em que se encontram os oleodutos e fontes de petróleo, para que nenhum grupo armado lhes tire a exclusividade da usurpação. Também pretende legitimar-se um corredor de bombardeios sobre a Síria, atacando por fim de forma direta o Exército sírio, dado que parece que seus exércitos privados e os milhares e milhares de mercenários treinados, apetrechados e financiados por ele mesmo e os assistentes (mais a Arábia Saudita e outros países do Golfo), não se bastam por si mesmos. Esses fascistas transnacionais “comeram” há tempo a verdadeira oposição síria, e realizam na prática a incumbência que o fascismo sempre teve: ser o elemento de choque do capital contra as forças populares, o cavalo de batalha daquele para a destruição social.
Por isso, hoje a Síria é um dos lugares chaves onde se joga o destino contra as forças de destruição fascistas, cujo objetivo passa igualmente pelo esquartejamento do Estado sírio (e com isso de passagem, cortam-se os oleodutos que chegam da Ásia central aoMediterrâneo, nos quais está implicada a Rússia). Derrubada a SíriaIsrael ficaria praticamente como o único Estado na zona (além das bárbaras monarquias do Golfo, aliadas). É o projeto do Grande Israel como dono de toda a Ásia Ocidental.
Outro lugar vital onde se joga a luta contra o fascismo transnacional é a Ucrânia.
Enquanto os nossos doutrinadores meios de difusão de massas insistem em nos proporcionar imagens de russos malvados, o certo é que na Ucrânia houve um golpe de Estado contra o presidente eleito nas urnas, com grupos financiados pelos Estados Unidose assistentes e com o apoio das organizações nazistas locais. Assim, se na Europa fez necessário uma Guerra devastadora e cerca de 60 milhões de mortos para nos livrarmos do nazismo, os Estados Unidos no-la trouxeram de volta novamente em poucas semanas (cortesia do “país da Liberdade”).
Com isso, os Estados Unidos tratam de separar a Europa da Rússia (com a obsessão, além disso, de dividir a Rússia da sua enorme reserva energética – na realidade a grande reserva do mundo – a Sibéria), assim como colocar a ameaça militar nas próprias portas deMoscou. Este caminho leva a Europa, por sua vez, a ficar “isolada” do mundo asiático em crescimento e ancorada ao obstáculo dos países anglo-saxões em decadência. Ao contrário, uma integração ou coordenação com a Rússia, como muito bem sabe a classe capitalista alemã, poderia proporcionar de sobra à Europa a energia de que tanto necessita, a via dos mercados asiáticos, assim como segurança militar (os europeus não necessitariam realizar esses enormes gastos com armamentos propostos pelos Estados Unidos).
Isto para não mencionar a própria Ucrânia, onde o Tratado de Livre Comércio com a Europa, que por um mínimo de dignidade o presidente eleito, Yanukóvich, negou-se a assinar, acabará de desfazer uma economia já em estado de coma: desastrosas semeaduras de primavera, cultivos de vegetais arruinados, quase total falta de crédito, graves problemas com o gás, aumento vertiginoso dos preços dos carburantes. Ninguém está dando nenhuma ajuda econômica à Junta de Kiev, apesar das promessas do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia. A condição para isso é que “tenha o controle de todo o seu território”. É, por isso, muito provável que logo vejamos autênticos levantamentos populares nesta República.
Rússia, por sua vez, aguenta como pode o aguaceiro. E mesmo que seja por seus próprios interesses, enfrenta o fascismo transnacional na Europa (fascismo ocidental – cristão) e na Ásia (fascismo oriental – islâmico). Conseguiu, por enquanto, frear suas vitórias na Ucrânia e na Síria e colabora há algum tempo com o que resta do Estado do Iraque no combate ao fascismo islâmico (tente-se comparar também o Afeganistão que existia aliado da antiga URSS e o atual, após a intervenção do “Ocidente”).
Não se trata de uma relação de “bons e maus” (a Rússia é hoje um país capitalista a mais), mas de chaves geoestratégicas que estão ligadas a questões chaves. Enquanto as economias dos Estados Unidos e assistentes vão perdendo ancoragens de dominação e se veem mais e mais necessitadas dos recursos alheios, a Rússia e a China manejam juntas a maior parte dos recursos do mundo e suas economias, no momento, têm melhores perspectivas de futuro. É por isso que alguns estão interessados na guerra global e outros não. Exatamente o contrário do que nos mostram os nossos meios de intoxicação de massas. Por isso é imprescindível situar-se dentro desses parâmetros em cada conflito. Por isso é fundamental, na luta contra o fascismo, manter o cessar-fogo na Ucrânia; e, por isso, os Estados Unidos e assistentes farão de tudo para boicotá-lo.
Rússia e a China não cessam de estabelecer entre si diferentes acordos e convênios, assim como de expandir suas redes nos grandes mercados asiáticos, construindo o principal núcleo econômico do mundo. A Organização de Cooperação de Xangai é apenas um exemplo disso.
Pelo contrário, em casa, cada vez parece mais certo que se não mudar radicalmente o rumo econômico e político, logo sofreremos outro cataclismo financeiro, e preparem-se porque desta vez os Estados já consumiram todos os botijões de dinheiro que tinham para apagar o fogo (e transferir o nosso dinheiro para o mundo financeiro-bancário e, em conjunto, ao Grande Capital).
Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora àEuropa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?
Diante do fascismo transnacional que recruta população lumpenizada sem cessar, onde ficou o internacionalismo dos povos?

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