"Marx sabia da força dos “grilhões de
ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se
chegássemos a isso? Impossível dizer", escreve Russell Jacoby, professor
de História da Universidade da Califórnia em Los Angeles, autor de The
last intellectuals[Os últimos intelectuais] (1987), The end of utopia [O
fim da utopia] (1999) e, mais recentemente, Les ressorts de la
violence. Peur de l’autre ou peur du semblable?[As molas da violência.
Medo do outro ou medo do semelhante?], em artigo publicado pelo jornalLe
Monde Diplomatique, 04-08-2014.
Eis o artigo.
A obra Le capital au XXIe siècle [O
capital no século XXI], de Thomas Piketty, é um fenômeno tanto
sociológico como intelectual. Ela cristaliza o espírito de nossa época,
assim como, em seu tempo, The closing of the American mind [O fechamento
da mente norte-americana], de Allan Bloom. [1] Este livro, que
denunciava os estudos sobre as mulheres, os gêneros e as minorias nas
universidades norte-americanas, opunha a “mediocridade” do relativismo
cultural à “busca pela excelência”, associada, na mente de Bloom, aos
clássicos gregos e romanos. Ainda que tenha tido poucos leitores (era
particularmente pomposo), ele alimentou o sentimento de uma destruição
do sistema educacional norte-americano, até da própria América, na falta
dos progressistas e da esquerda. Esse sentimento não perdeu nada de sua
força, e O capital no século XXI inscreve-se no mesmo campo de forças,
exceto pelos fatos de que Piketty vem da esquerda e que o enfrentamento
deslocou-se da educação para o campo econômico. Dentro do sistema
educacional, porém, o debate centra-se agora, em grande parte, sobre
questões econômicas e barreiras capazes de explicar adesigualdade.
A obra traduz um mal-estar palpável: a
sociedade norte-americana, assim como as outras pelo mundo inteiro, é
cada vez mais iníqua. As desigualdades agravam-se e pressagiam um futuro
sombrio. O capital no século XXI deveria chamar A desigualdade no
século XXI.
É inútil criticar Piketty por não
cumprir objetivos que não eram os seus, mas também não podemos nos
contentar em lhe render louros. Muitos comentaristas têm se concentrado
em sua relação com Karl Marx, ao que ele lhe deve ao pensador alemão, a
suas infidelidades; quando seria preciso, antes de mais nada, questionar
de que modo o livro lança luz sobre nossa miséria atual. Ao mesmo
tempo, no que diz respeito à preocupação com a igualdade, não é inútil
voltar a Marx. Aproximando-se os dois autores, há de fato uma
divergência: ambos contestam as disparidades econômicas, mas em direções
opostas. Piketty inscreveu suas observações no campo dos salários, da
renda e da riqueza: ele deseja erradicar as desigualdades extremas
oferecendo – para pastichar o lema da funesta Primavera de Praga – um
“capitalismo de rosto humano”. Já Marx se coloca no campo da mercadoria,
do trabalho e da alienação: ele pretende abolir essas relações e
transformar a sociedade.
Piketty tece uma acusação implacável
contra a desigualdade: “Já é tempo”, escreve em sua introdução, “de
recolocar a questão da desigualdade no centro da análise econômica”
(p.38). Ele adota como epígrafe a segunda frase da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “As distinções sociais só podem
fundar-se no bem comum”. (Poderíamos nos perguntar por que um livro tão
prolixo deixa de lado a primeira frase: “Os homens nascem e permanecem
livres e iguais em direitos”.) Apoiando-se numa profusão de números e
tabelas, ele demonstra que as desigualdades econômicas aumentam e que os
mais afortunados concentram uma parte cada vez maior da riqueza. Houve
quem tentasse contestar suas estatísticas, mas ele reduziu a pó as
acusações. [2]
O autor bate forte e justo quando
trata da exacerbação das desigualdades que desfiguram a sociedade, em
particular a norte-americana. Ele observa, por exemplo, que a educação
deveria ser igualmente acessível a todos e promover a mobilidade social.
No entanto, “o rendimento médio dos pais de alunos de Harvard é de
cerca de US$ 450 mil” ao ano, o que os coloca entre os 2% das famílias
norte-americanas mais ricas. E conclui seu argumento com este eufemismo
característico: “O contraste entre o discurso meritocrático oficial e a
realidade parece aqui particularmente extremo” (p.778).
Para alguns, à esquerda, não há nada
de novo. Para outros, cansados de ouvir o tempo todo que é impossível
aumentar o salário mínimo, que não se devem taxar os “criadores de
empregos” e que a sociedade norte-americana continua sendo a mais aberta
do mundo,Piketty representa um aliado providencial. Segundo um
relatório (não citado no livro), os 25 gestores de fundos de
investimentos mais bem pagos ganharam, em 2013, US$ 21 bilhões, mais que
o dobro da soma dos rendimentos de cerca de 150 mil professores
primários nos Estados Unidos. Se a compensação financeira corresponde ao
valor social, então um gestor de hedge funddeve valer bem uns 17 mil
professores... Nem todos os pais (e professores) devem concordar com
isso.
Contudo, a fixação exclusiva de
Piketty na desigualdade apresenta limites teóricos e políticos. Da
Revolução Francesa ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos,
passando pelo cartismo,[3] pela abolição da escravatura e pelo sufrágio
universal, a aspiração à igualdade já suscitou inúmeros movimentos
políticos. Em uma enciclopédia das contestações, o artigo dedicado a ela
certamente ocuparia centenas de páginas, remetendo a todas as outras
entradas. Ela teve, e continua tendo, um papel positivo essencial. Em
tempos recentes, o movimento Occupy Wall Street e a mobilização pelo
casamento gaysão prova disso. Longe de desaparecer, a reivindicação
ganhou novo fôlego.
O igualitarismo, porém, também implica
uma parte de resignação: ele aceita a sociedade tal como é, visando
apenas a reequilibrar a distribuição de bens e privilégios. Os gays
querem o direito de se casar assim como os heterossexuais. Muito bem,
mas isso não afeta em nada a instituição imperfeita do matrimônio, que a
sociedade não pode abandonar nem melhorar. Em 1931, o historiador
britânico de esquerda Richard Henry Tawney já destacava esses limites,
em um livro que, aliás, também defendia o igualitarismo. [4] O movimento
operário, escreveu, acredita na possibilidade de uma sociedade que dá
mais valor às pessoas e menos ao dinheiro, mas essa abordagem tem seus
limites: “Ao mesmo tempo, ela não aspira a uma ordem social diferente,
na qual o dinheiro e o poder econômico não sejam mais o critério do
sucesso, mas a uma ordem social do mesmo tipo, na qual o dinheiro e o
poder econômico sejam distribuídos de modo um pouco diferente”. Aí está o
centro do problema. Dar a todos o direito de poluir é um avanço para a
igualdade, mas não para o planeta.
Evitar que se pague muito aos universitários
Marx não dá nenhum espaço à igualdade.
Não apenas ele jamais considerou que os salários dos trabalhadores
pudessem aumentar de maneira significativa, mas também, ainda que isso
acontecesse, em sua opinião, a questão não era essa. O capital impõe os
parâmetros, o ritmo e a própria definição do trabalho, do que é rentável
e do que não é. Mesmo em um sistema capitalista revestido por formas
“confortáveis e liberais”, no qual o trabalhador possa viver melhor e
consumir mais porque recebe um salário maior, a situação não é
fundamentalmente diferente. O fato de o trabalhador ser mais bem
remunerado não muda em nada sua dependência; “melhorar o vestuário, a
alimentação, o tratamento e aumentar seu peculiumnão abole a relação de
dependência e a exploração do escravo”. Um aumento de salário significa,
no máximo, que “o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o empregado
forjou para si permitem que eles o apertem um pouco menos”. [5]
Sempre se pode objetar que essas
críticas datam do século XIX, mas Marx teve pelo menos o mérito de se
concentrar na estrutura do trabalho, enquanto Piketty não disse uma
palavra a esse respeito. Não se trata de saber qual deles está certo
sobre o funcionamento do capitalismo, mas de apreender o vetor de suas
respectivas análises: a distribuição paraPiketty, a produção para Marx. O
primeiro quer redistribuir os frutos do capitalismo, a fim de reduzir o
fosso entre os rendimentos mais altos e os mais baixos, enquanto o
segundo quer transformar o capitalismo e colocar um fim em seu domínio.
Desde a juventude, Marx documentou a
miséria dos trabalhadores; ele dedicou centenas de páginas de O capital à
jornada de trabalho padrão e às críticas que ela despertou. Também
sobre isso Piketty não tem nada a dizer, embora evoque uma greve no
início de seu primeiro capítulo. No índice da edição inglesa, na entrada
“Trabalho”, lemos: “Ver ‘divisão capital-trabalho’”. Isso é
compreensível, já que o autor não está interessado no trabalho
propriamente dito, mas nas desigualdades resultantes dessa divisão.
Em Piketty, o trabalho resume-se
principalmente ao montante de rendimento. Os surtos de cólera que
afloram de vez em quando sob sua pena concernem aos ricos. Ele observa,
por exemplo, que a fortuna de Liliane Bettencourt, herdeira da L’Oréal,
passou de US$ 4 bilhões para US$ 30 bilhões entre 1990 e 2010: “Liliane
Bettencourt nunca trabalhou, mas isso não impediu que sua fortuna
aumentasse exatamente com a mesma rapidez da de BillGates”. Esse enfoque
sobre os mais ricos corresponde bem à sensibilidade do nosso tempo,
enquanto Marx, com suas descrições do trabalho de padeiros, lavadeiras e
tintureiros pagos por dia, pertence ao passado. A manufatura e a
montagem desapareceram dos países capitalistas avançados e prosperam nos
países em desenvolvimento, de Bangladesh à República Dominicana.
Entretanto, não é porque um argumento é antigo que ele é obsoleto, e
Marx, concentrando-se no trabalho, destacava uma dimensão quase ausente
de O capital no século XXI.
Piketty documenta a “explosão” da
desigualdade, especialmente nos Estados Unidos, e denuncia os
economistas ortodoxos, que justificam as enormes diferenças de
remuneração pelas forças racionais do mercado. Ele zomba de seus colegas
norte-americanos, que “tendem frequentemente a considerar que a
economia dos Estados Unidos funciona muito bem e, particularmente, que
ela recompensa o talento e o mérito com justiça e precisão” (p.468).
Isso, porém, não é de espantar, acrescenta, uma vez que tais economistas
estão entre os 10% mais ricos. Como o mundo das finanças, ao qual lhes
ocorre oferecer seus serviços, puxa seus salários para cima, eles
manifestam uma “vergonhosa tendência a defender seus interesses
particulares, dissimulando-os atrás de uma improvável defesa do
interesse geral” (p.834).
Para dar um exemplo que não está no
trabalho de Piketty, um artigo recente publicado na revista da
Associação Americana de Economia [6] pretende demonstrar, apoiado em
números, que as grandes desigualdades decorrem de realidades econômicas.
“Os maiores rendimentos têm talentos raros e únicos que lhes permitem
negociar a preço alto o valor crescente de seu talento”, conclui um dos
autores, Steven N. Kaplan, professor de Empreendedorismo e Finanças da
Escola de Negócios da Universidade de Chicago. Visivelmente, Kaplan
tenta puxar a sardinha para seu lado: uma nota de rodapé nos informa que
ele “participa do conselho de administração de diversos fundos comuns
de investimento” e que foi “consultor de empresas de private equity e
capital de risco”. Eis o ensino humanista do século XXI! Piketty explica
no início de seu livro que perdeu as ilusões sobre os economistas
norte-americanos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e que os
economistas das universidades francesas têm a “grande vantagem” de não
serem nem altamente considerados nem muito bem pagos: o que lhes permite
manter os pés no chão.
A contraexplicação que ele oferece, no
entanto, é no mínimo banal: as enormes diferenças salariais decorrem de
tecnologia, educação e costumes. As remunerações “extravagantes” dos
“superexecutivos”, “poderoso mecanismo” de aumento da desigualdade
econômica, particularmente nos Estados Unidos, não podem ser explicadas
pela “lógica racional da produtividade” (p.530-531). Elas refletem as
normas sociais atuais, que por sua vez revelam políticas conservadoras
que reduziram a tributação sobre os mais ricos. Os chefes de grandes
empresas concedem-se salários enormes porque têm a oportunidade e porque
a sociedade julga essa prática aceitável, pelo menos nos Estados Unidos
e no Reino Unido.
Marx oferece uma análise muito
diferente. Ele se preocupa menos em provar as desigualdades econômicas
abissais do que em descobrir as raízes da acumulação capitalista.
Piketty explica que essas desigualdades devem-se à “contradição central
docapitalismo”: a disjunção entre a taxa de rendimento do capital e a
taxa de crescimento econômico. Como a primeira tem necessariamente
precedência sobre a segunda, favorecendo a riqueza existente em
detrimento do trabalho existente, isso conduz a “terríveis”
desigualdades na distribuição da riqueza. Marx talvez concordasse sobre
esse ponto, mas, novamente, ele está interessado no trabalho, que
considera o local de origem e desenvolvimento da desigualdade. Segundo
ele, a acumulação de capital produz, necessariamente, o desemprego,
parcial, ocasional ou permanente. Todavia, essas questões, cuja
importância dificilmente se poderia negar no mundo de hoje, estão
ausentes do trabalho de Piketty.
Marx parte de uma proposta totalmente
diferente: é o trabalho que cria riqueza. A ideia pode parecer fora de
moda, no entanto, ela assinala uma tensão não resolvida do capitalismo:
este precisa da força de trabalho e, ao mesmo tempo, tenta livrar-se
dela. Quanto mais os trabalhadores são necessários à sua expansão, mais
ele se livra deles a fim de reduzir os custos, por exemplo,
automatizando a produção. Marx estudou longamente o modo como o
capitalismo gera uma “população trabalhadora excedente relativa”. [7]
Esse processo assume duas formas fundamentais: ou se demitem
trabalhadores, ou se deixa de incorporar novos. Em consequência, o
capitalismo fabrica trabalhadores “descartáveis” ou um exército de
reserva de desempregados. Quanto mais o capital e a riqueza aumentam,
mais osubemprego e o desemprego avançam.
Centenas de economistas tentaram
corrigir ou refutar essas análises, mas a ideia de um aumento da força
de trabalho excedente parece verdadeira: do Egito a El Salvador e da
Europa aos Estados Unidos, a maioria dos países passa por níveis
elevados ou críticos de subemprego ou desemprego. Em outras palavras, a
produtividade capitalista eclipsa oconsumo capitalista. Não importa quão
perdulários sejam, os 25 gestores de hedge fundsjamais poderão consumir
seus US$ 21 bilhões de remuneração. O capitalismo sobrecarrega-se com
aquilo que Marx chama de os “monstros” da “superprodução, superpopulação
e superconsumo”. Sozinha, a China certamente é capaz de produzir
mercadorias suficientes para abastecer os mercados da Europa, África e
América. Mas o que será da força de trabalho no resto do mundo? As
exportações chinesas de têxteis e móveis para a África subsaariana
resultam numa redução no número de postos de trabalho para os africanos.
[8] Do ponto de vista do capitalismo, temos um exército em expansão,
composto por trabalhadores subempregados e desempregados permanentes,
encarnações das desigualdades contemporâneas.
Como Marx e Piketty vão em direções
diferentes, é lógico que proponham soluções diferentes. Piketty, ansioso
em reduzir as desigualdades e melhorar a distribuição, propõe um
imposto global e progressivo sobre o capital, a fim de “evitar uma
divergência ilimitada da desigualdade patrimonial”. Embora, como
reconhece, essa ideia seja “utópica”, ele a considera útil e necessária:
“Muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma perigosa ilusão,
da mesma forma como o imposto sobre a renda foi rejeitado há pouco mais
de um século” (p.840). Já Marx não propõe realmente nenhuma solução: o
penúltimo capítulo de O capital refere-se às “forças” e “paixões” que
nascem para transformar o capitalismo. A classe trabalhadora inauguraria
uma nova era, na qual reinariam “a cooperação e a propriedade comum da
terra e dos meios de produção”. [9] Em 2014, essa proposta também é
utópica – ou até redibitória, dependendo de como se interpreta a
experiência soviética.
Não é preciso escolher entre Piketty e
Marx. Para falar como o primeiro, trata-se de esclarecer suas
diferenças. O utopismo de Piketty – e esse é um de seus pontos fortes –
consiste numa dimensão prática, na medida em que ele fala a linguagem
familiar dos impostos e da regulação. Ele espera uma cooperação mundial,
e até um governo mundial, para pôr em prática um imposto também mundial
que evitaria uma “espiral infinita de desigualdade” (p.835). Ele propõe
uma solução concreta: um capitalismo à sueca, que enfrentou seus
desafios eliminando as disparidades econômicas extremas. Ele não trata
da força de trabalho excedente, do trabalho alienado e da sociedade
movida pelo dinheiro e pelo lucro; ao contrário, aceita-os e quer que
façamos o mesmo. Em troca, dá-nos algo que já conhecemos: o capitalismo,
com todas as suas vantagens e menos inconvenientes.
Os grilhões de ouro e as flores vivas
No fundo, Piketty é um economista
muito mais convencional do que ele mesmo pensa. Seu elemento natural são
as estatísticas sobre níveis de rendimentos, os projetos de tributação,
as comissões encarregadas desses assuntos. Suas recomendações para
reduzir as desigualdades resumem-se a políticas fiscais impostas de cima
para baixo. Ele mostra-se perfeitamente indiferente aos movimentos
sociais, que já foram capazes de questionar a desigualdade e poderiam
voltar a fazê-lo. Ele parece, aliás, mais preocupado com o fracasso do
Estado em reduzir a desigualdade do que com a desigualdade propriamente
dita. E, embora convoque com frequência e com pertinência, romancistas
do século XIX, comoHonoré de Balzac e Jane Austen, sua definição do
capital permanece demasiado econômica e redutora. Ele não leva em conta o
capital social, os recursos culturais e oknow-how acumulado com os
quais podem contar os mais afortunados e que facilitam o sucesso de sua
prole. Um capital social limitado condena tanto à exclusão como uma
conta bancária vazia, mas sobre esse assunto Piketty também não tem nada
a dizer.
Marx nos dá ao mesmo tempo mais e
menos do que isso. Seu questionamento, embora mais profundo e amplo, não
oferece nenhuma solução prática. Poderíamos qualificá-lo de utópico
antiutópico. No posfácio à segunda edição alemã de O capital, ele zomba
daqueles que tentam escrever “receitas para as cozinhas do futuro”. [10]
E, ainda que uma certa visão a respeito possa ser apreendida de seus
escritos econômicos, ela não tem grandes relações com o igualitarismo.
Marx sempre combateu a igualdade primitivista, que decreta a pobreza
para todos e a “mediocridade geral”. [11] Embora reconheça a capacidade
do capitalismo para produzir riqueza, ele rejeita seu caráter
antagônico, que subordina o conjunto do trabalho – e da sociedade – à
busca pelo lucro. Mais igualitarismo só faria democratizar esse mal.
Marx sabia da força dos “grilhões de
ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se
chegássemos a isso? Impossível dizer. A melhor resposta que Marx nos
ofereceu talvez esteja em um texto de juventude no qual ele ataca a
religião e, já então, os grilhões cobertos por “flores imaginárias”: “A
crítica destrói as flores imaginárias que adornam os grilhões não para
que o homem carregue seus grilhões sem sonhos e sem consolo, mas para
que se livre dos grilhões e colha as flores vivas”. [12]
Notas:
1. Allan Bloom, The closing of the
American mind, Simon & Schuster, Nova York, 1987. Essa obsessão
conservadora de uma decadência da educação foi sistematizada na França
pelo ensaísta Alain Finkielkraut.
2. Chris Giles, “Data problems with
Capital in the 21st century” [Problemas nos dados de O capital no século
XXI], Financial Times, Londres, 23 maio 2014, e a resposta de Thomas
Piketty, “Technical appendix of the book – Response to FT” [Apêndice
técnico do livro – Resposta ao FT], 28 maio 2014.
3. Movimento político operário do meio do século XIX, no Reino Unido.
4. Richard Henry Tawney, Equality[Igualdade], Allen & Unwin, Londres, 1952.
5. Karl Marx, Le capital. Livre I [O
capital. Livro I], tradução francesa dirigida por Jean-Pierre Lefebvre,
Presses Universitaires de France, Paris, 1993, p.693.
6. Steven N. Kaplan e Joshua Rauh,
“It’s the market: the broad-based rise in the return to top talent” [É o
mercado: o crescimento de base ampla no retorno dos melhores talentos],
Journal of Economic Perspectives, v.27, n.3, Nashville, 2013.
7. Ibidem.
8. Raphael Kaplinsky “What does the
rise of China do for industrialization in Sub-Saharan Africa?” [O que o
crescimento da China faz com a industrialização da África
subsaariana?],Review of African Political Economy, v.35, n.115, Swine
(Reino Unido), 2008.
9. Karl Marx, op. cit., p.855-857.
10. Ibidem, p.15.
11. Ibidem, p.854.
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