Cidades como Objeto de Desejo: gestão e sustentabilidade emulados no espaço urbano
"Quando se discute o tema das cidades sustentáveis, há várias
noções e abordagens em disputa. Fenômeno típico de um campo marcado pela
polissemia e pelas controvérsias em torno de visões de mundo
concorrentes, a sustentabilidade no espaço urbano remete necessariamente
à busca pelo bem viver", escreve Armindo dos Santos de Sousa Teodósio,
em artigo publicado na revista Plurale, 13-01-2014.
Eis o artigo.
Sendo assim, é matéria por definição política, tanto em sua
referência às formas de se viver junto na pólis, na cidade, quanto à
própria essência da visão de mundo e das ideologias que ensejam. Ao
contrário do que as visões tecnicista e gerencialista sobre o espaço
urbano defendem, infelizmente também presentes nas disputas pelo
significado da sustentabilidade, não se trata apenas de um agrupamento
de melhores práticas, estratégias e recursos de gestão empregados em
prol da preservação do meio ambiente nas cidades.
Nesse emaranhado de visões, debates e embates, a inexistência de
uma concepção monolítica e fechada sobre o que vêm a ser as cidades
sustentáveis, ao contrário do que muitos ativistas socioambientais podem
imaginar, não é problema ou uma suposta etapa de uma trajetória ainda
inicial de uma visão de mundo que uma dia se tornará precisa,
delimitada, hegemônica e definitiva. Pelo contrário, a riqueza de
opiniões e opções é fruto de um dos componentes mais importantes do
desenvolvimento sustentável, que muitas vezes passa despercebido para
aqueles que focalizam suas lentes sobre a natureza e se esquecem que a
preservação ambiental é sempre um assunto do encontro entre “bichos,
plantas e gentes”, o componente das liberdades democráticas e da
construção do interesse público. Portanto, os caminhos do
desenvolvimento sustentável nas cidades são muitos e levam a muitas
“Romas”, a muitas cidades.
A cidade sustentável se sustenta em cima de alguns pilares. O
primeiro deles é a crença de que a noção de desenvolvimento sustentável é
melhor do que a de sustentabilidade, pois indica que é processo
contínuo e se conecta a outras discussões sobre desenvolvimentoque
marcaram e marcam os debates em sociedade sobre o bem viver e o
interesse público, presentes na também rica polissemia de adjetivos para
o desenvolvimento: econômico, local, urbano, comunitário…
Ao se trabalhar com a noção de desenvolvimento sustentável como
guia para a compreensão da realidade e a intervenção social continua-se
na mesma trilha da discussão sobre desenvolvimento e não se perde os
avanços que o adjetivo sustentável tem conseguido arregimentar, apesar
de sofrer com os duros golpes de incompreensão, pouca criatividade,
covardia e interesses escusos que teimam em se aproveitar dele.
Além disso, cabe notar que sustentabilidade, por mais em voga que
esteja, não é atributo de cidades. Não existem cidades sustentáveis!
Existem cidades que desenvolvem dinâmicas favoráveis, mas que precisam
ser sempre contínuas e refeitas, além de aprimoradas, em direção ao
desenvolvimento sustentável. Não adianta sustentar o meio ambiente de
uma cidade e o entorno ser degradado. Aliás, isso nem é passível de
ocorrer.
Da mesma forma, ao contrário do que o discurso da moda adora
defender, não existem empresas sustentáveis, lideranças sustentáveis,
práticas sustentáveis, existem sim organizações, pessoas, posturas e
ações que contribuem para o processo de desenvolvimento sustentável e
aquelas contribuem muito pouco ou nada e ainda aquelas que se opõem a
isso.
O desenvolvimento sustentável não se constitui em etapa final de
uma longa jornada de uma cidade, uma empresa, uma liderança, na qual se
atinge a sustentabilidade, mas sim na própria caminhada ad infinitum,
sempre caminhada, sempre esforço, sempre mais exigente e sempre diante
de novos desafios para toda a sociedade, até mesmo porque a natureza e
as comunidades estão constante mutação, em direção ao bem viver e deixar
outros seres e coisas bem viver e existir.
Cabe destacar também que a ideia de sustentabilidade nunca foi
apenas preservar o meio ambiente, desde que Ignacy Sachs ajudou a
formular a noção de ecodesenvolvimento, que depois se transformou, para
pior, convenhamos, em desenvolvimento sustentável.
Usando as ideias de Ignacy Sachs, pode-se compreender que o
desenvolvimento sustentável é sempre em um território e, portanto, varia
de um local para outro, não existindo o desenvolvimento sustentável,
mas os processos de desenvolvimento sustentável em diferentes cidades. E
para que ele se efetive, Sachs defende que a participação popular é
essencial, visto que a defesa do meio ambiente não se mantém em
contextos de baixa participação popular, restrição de liberdades
democráticas, limitação autocrática da atuação da imprensa, reduzida
transparência e controle social frágil.
Esse pesquisador também defende que o desenvolvimento sustentável
precisa se fundar na redução das desigualdades sociais e da pobreza,
visto que populações em situação de vulnerabilidade estão mais sujeitas a
se vitimarem com as tragédias ambientais e a darem vazão a processos de
degradação ambiental para garantirem sua sobrevivência, ao passo que
grupos que detém renda muito elevada em relação à média da sociedade
podem desenvolver um estilo de vida baseado em consumo exagerado e
desnecessário, que se torna referência para outros segmentos sociais,
disseminando modos de vida pouco ou nada compatíveis com o
desenvolvimento sustentável.
Em suma, o desenvolvimento sustentável tem estreita conexão com o
modo de vida das comunidades, sendo assim também uma expressão cultural
dos diferentes grupos sociais que compõem as cidades. Por fim, ele opera
dentro da chamada economia verde e inclusiva, aquela que se desenvolve
em bases que protegem o meio ambiente e ajudam a mitigar desigualdades
econômicas, sociais, políticas e no acesso ao meio ambiente.
Vários campos de conhecimento, como já é amplamente sabido, se
cruzam na construção dos saberes ambientais, como defende Enrique Leff.
No campo das chamadas ciências sociais e humanas, as tradições de estudo
do Urbanismo, Economia, Direito, Gestão Pública, Ciências Sociais,
Antropologia, Ciências Políticas e Administração se embaralham
oferecendo múltiplas abordagens e perspectivas que devem ser resgatadas e
postas em ação e diálogo para a promoção do desenvolvimento sustentável
nas cidades.
Nesse caldeirão, devem estar presentes o planejamento regional e
urbano, o estudo dos modos de vida e sociabilidade urbanos, a análise de
políticas públicas, a discussão sobre a ampliação da cidadania e as
dinâmicas de democracia participativa, o direito à moradia, à mobilidade
e à regularização fundiária nos espaços urbanos e uma série de outros
temas, abordagens e tradições de estudos que têm como objeto de análise e
de desejo as cidades.
Numa época em que as cidades também recebem inúmeros adjetivos que
vão desde as cidades competitivas, cujo um dos casos emblemáticos é
Barcelona, passando pelas cidades inteligentes, digitais, democráticas,
inovadoras até chegar nas cidades resilientes, as cidades sustentáveis
podem se transformar apenas em mais uma meta bem abstrata em um oceano
repleto de possibilidades, com muitos riscos de inanição diante de
tantos focos de ação, dispersando esforços e lutas.
A arte e a maestria por detrás da construção dos processos de
desenvolvimento sustentável nas cidades reside em se alcançar o difícil,
mas necessário equilíbrio entre pluralidade de caminhos e frentes de
ação e a convergência de esforços, energias e avanços nas formas de vida
e convivência urbanas.
Ainda assim, nessa multiplicidade de estudos, abordagens,
ferramentas de trabalho e possibilidades de ação, algumas referências
são essenciais. Mesmo correndo-se o risco de deixar de lado algumas
obras e pesquisadores seminais, pode-se dizer que sem algumas discussões
e análises dificilmente se consegue alcançar uma compreensão mais
robusta e capaz de suportar mais e melhores estratégias, políticas,
programas e instrumentos deintervenção socioambiental nas cidades.
São elas geradas por Pedro Jacobi e seus estudos sobre participação
e meio ambiente, movimentos sociais ambientais e construção da
consciência ambiental no ambiente urbano;Ricardo Abramovay e sua
compreensão sobre as estreitas conexões entre mercados e realidades
sociais e culturais, oferecendo inovadoras análises sobre formas
híbridas de construção de dinâmicas econômicas capazes de preservar o
meio ambiente e mitigar desigualdades sociais; José Eli da Veiga e a sua
compreensão dos limites das dinâmicas econômicas tradicionais e os
mitos da difusão da chamada “economia verde”, capaz de tudo, menos de
efetivamente esverdear as cidades; Saskia Sassen, uma das maiores
estudiosas das cidades, e sua discussão sobre espaço urbano,
globalização, gentrificação e resistência espacial; Ladislau Dowbor e os
aparatos teóricos que mobiliza para discutir desenvolvimento local de
forma a valorizar, respeitar e ajudar a promover os saberes locais na
construção das bases da chamada economia inclusiva e criativa; Richard
Sennett e sua trajetória de estudos sobre as cidades, demonstrando como
podem ser um espaço privilegiado de construção da cooperação, mas também
locais repletos de contradições e ambiguidades na construção das
chamadas cidades inteligentes e inovadoras; David Harvey, outro
pesquisador essencial, e sua visão sobre a dinâmica econômica das
cidades, sua inserção no circuito global de transações mercantis e o
curto-circuito da economia capitalista nos tempos atuais; Jeremy Rifkin e
sua discussão sobre economia de baixo carbono, do acesso e do
compartilhamento; Mike Davis, autor de Planeta Favela, obra essencial
para o entendimento da “morte e vida severina” nas cidades pelo mundo
afora e seus estudos sobre a crescente urbanização, degradação do meio
ambiente nas cidades, desigualdade e exclusão; Andrea Zhouri e suas
análises sobre os avanços, dificuldades e ambiguidades da construção de
políticas públicas ambientais e de uma governança urbana mais
compartilhada na gestão do meio ambiente; Henri Acselrad e suas
investigações baseadas nas noções de justiça ambiental e racismo
ambiental, que oferecem um olhar essencial sobre as contradições
ambientais bem escondidas no ambiente urbano; Raquel Rolnik e suas
análises sempre contundentes sobre as cidades que excluem e desrespeitam
direitos das populações em situação de risco e vulnerabilidade,
colocando-as em maior e mais incisiva degradação através de políticas
públicas higienistas, sobretudo em tempos de megaeventos esportivos; e
enfim, mas não em último lugar, Yves Cabannes e seus estudos sobre a
apropriação coletiva do espaço urbano, construindo dinâmicas
compartilhadas e democráticas de governança dos bens públicos urbanos
tanto em cidades ricas quanto em espaços urbanos de países pobres e em
desenvolvimento.
Mas como sempre perdura a pergunta, principalmente por parte do
leitor ávido por se envolver nas batalhas socioambientais urbanas, de
como promover efetivamente essa utopia tão necessária, urgente e
possível de ser conquistada, mesmo que a duras penas, a difusão mais
robusta do desenvolvimento sustentável em sua cidade, cabe listar
algumas frentes de ação principais. O desenvolvimento sustentável nas
cidades brasileiras opera necessariamente pela:
a) ampliação dos espaços de participação popular na discussão sobre
caminhos para o desenvolvimento e por parcerias intersetoriais, ou
seja, entre governos, organizações da sociedade civil e empresas que não
sejam capturadas pelos parceiros mais fortes e por interesses privados
travestidos de públicos;
b) dinâmica econômica que permita que pequenos empreendimentos
inovadores em termos sociais ambientais floresçam com crédito justo e
que geram trabalho, renda e condições de trabalho justas, mitigando a
pobreza e reduzindo as diferenças de renda dentro do espaço urbano;
c) promoção de políticas públicas que contribuam para o transporte coletivo em detrimento do individual;
d) ampliação do acesso a parques, jardins e natureza não apenas para quem tem renda, status e poder nas cidades;
e) política de tratamento adequado da água capaz de efetivamente
mitigar problemas de enchentes ou de escassez para os pobres; e) redução
dos níveis de poluição atmosférica;
f) difusão de uma educação ambiental capaz não apenas de informar e
conscientizar sobre os problemas ambientais urbanos, mas de mudar
atitudes e posturas no dia-a-dia da realidade das cidades;
g) ampliação do saneamento urbano para todos, principalmente para as comunidades periféricas;
h) promoção do encontro e da vida compartilhada entre diferentes
grupos que compõem o espaço urbano, fazendo florescer a diversidade em
suas diferentes dimensões na concretude de um mesmo local, ao contrário
de segregá-las em bairros populares, periferias e guetos;
i) difusão da expressão cultural das populações periféricas, combatendo o “racismo ambiental”;
j) promoção de formas compartilhadas de acesso e gerenciamento da
habitação popular em oposição ao lobby dos interesses imobiliários
urbanos;
l) ampliação da cultura de transparência, prestação de contas e controle social;
m) implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sem que
nenhuma concessão seja feita para dinâmicas empresariais ávidas por
excluir os recicladores da riqueza gerada pelo lixo atualmente e por
difundir tecnologias de incineração, comprovadamente desfavoráveis ao
meio ambiente e a saúde humana.
Como vários caminhos levam ao desenvolvimento sustentável e como
isso é quase que mudar tudo ao mesmo tempo agora e promover na Terra a
“Cidade de Deus” de Santo Agostinho, pode-se começar com um passo de
cada vez. Para tanto, é preciso que floresçam nas cidades não apenas o
belo e contagiante espírito de indignação contra as mazelas das
políticas públicas e da política no Brasil, mas também uma
multiplicidade de organizações da sociedade civil, atuando nos múltiplos
campos de promoção do desenvolvimento sustentável no espaço urbano,
movidas por uma indignação que resulta em obras, ações, maiores e
melhores debates, maiores e melhores dúvidas e controvérsias, que
semeadas em solo democrático, podem levar a melhores formas de se bem
viver nas cidades desde que sejam sempre regadas pelo compromisso com o
interesse público.
PARA LER MAIS:
02/08/2012 - O que pode levar a uma cidade sustentável?
25/11/2013 - Sustentabilidade, muito além da questão ambiental, artigo de Gelma Reis
01/11/2013 - “Estado do Mundo 2013” pergunta: a sustentabilidade ainda é possível?
17/08/2011 - Para além do "desenvolvimento sustentável"
VEJA TAMBÉM:
Desenvolvimento sustentável: fundamentação teórico-prática. Revista IHU On-Line, Edição nº 203
A política na condução do desenvolvimento sustentável. Revista IHU On-Line, Edição nº 358
A incompatibilidade entre sustentabilidade, pobreza e miséria. Revista IHU On-Line, Edição nº 384
Rio+20: centrada no equilíbrio entre a sustentabilidade e a equidade. Revista IHU On-Line, Edição nº 384
Vale do Sinos inova em tecnologia e sustentabilidade. Revista IHU On-Line, Edição nº 328
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