"É ínfima a possibilidade de se encontrar solução para
qualquer problema global em arenas de 193 Estados dos quais apenas 28 conhecem
um incipiente processo de desapego da soberania nacional", escreve José Eli da Veiga, professor titular da USP,
em artigo publicado no jornal Valor,
29-11-2013.
Segundo ele, "o mantra das "responsabilidades comuns,
porém diferenciadas" passou a ser usado pelo Brasil para
retroceder à proposta de que o critério de distribuição dos engajamentos deveria
ser o conjunto das emissões imputáveis a cada nação desde a revolução
industrial".
Ele pergunta: "Qual pode ser o sentido ético de se
pretender estabelecer dívida por práticas dos antepassados das atuais populações
do primeiro mundo por problema que a ciência só começou a confirmar nos anos
1970, e cuja seriedade só foi admitida pela comunidade internacional entre 1988
e 1992?"
Eis
o artigo.
Há sobre o aquecimento global fundamentações
científicas muito mais extensas, profundas e legitimadas do que sobre qualquer
outra fronteira ecológica. Por isso, só pode ser ampla, geral e irrestrita a
perplexidade diante da falta de ações que mitiguem as emissões humanas de
carbono. A recente gincana multilateral de Varsóvia só
foi mais um capítulo da maçante novela 'Descompas
so entre Ciência e Política do Clima', em cartaz há um quarto de
século
Nesse contexto é inevitável a suspeita de que, em
última instância, a causa de tanta insensatez seja de caráter cognitivo. E como
nas negociações internacionais costuma ser dominante a influência dos
economistas, é sobre a natureza de seus diagnósticos e prescrições que
imediatamente se volta a averiguação da hipótese. Todavia, está na dinâmica
política de seleção de novas regras e normas internacionais a explicação para
tão dramático impasse.
Todos os economistas imunes à versão negacionista da
mudança climática insistem que o carbono precisa ter um preço capaz de corrigir
tamanha falha de mercado, embora essa unanimidade se desfaça quando a questão
passa a ser de engenharia: como obter o ajuste. A mais óbvia saída é a taxação,
proposta desde os anos 1970 nos estudos do pioneiroWilliam
D. Nordhaus, ainda na pré-história da formação do consenso científico
sobre o impacto dos gases de efeito estufa. E agora revisitada no livro "Cassino
Climático", comentado por Martin
Wolf nesta página do Valor de quarta, 27/11.
No entanto, em 1997, momento decisivo para construir as
instituições previstas naConvenção
de 1992, os corpos diplomáticos reunidos em Kyoto rechaçaram
a tributação em favor da proposta fundamentalista de gradual montagem de
mercados nos quais se formaria o preço do carbono. As consequências desse
cavalo-de-pau demoraram a ficar patentes, mas hoje todos os balanços evidenciam
que os efeitos dos muitos mercados de carbono não chegam a ser sequer
paliativos. Perdeu-se imenso tempo para constatar que não adianta constranger
grandes emissores do setor produtivo a cobrirem os custos de seus direitos de
poluir se todo o restante do sistema econômico permanece sem incentivo s para
reduzir suas emissões. E o pior é que ainda hoje há quem não perceba que uma
taxa-carbono sobre o consumo jamais poderia ter sido substituída por restrito
comércio de permissões entre as grandes empresas emissoras do setor
produtivo.
Porém, tamanha barbeiragem econômica foi ainda superada
em Kyoto quando
uma majoritária aliança das nações mais pobres manipuladas por potências
regionais emergentes (Brics) vibrou
com a vitória de Pirro de
só estabelecer metas obrigatórias de corte de emissões para as nações mais
ricas. E o fizeram sabendo que o parlamento da principal potência dispunha de
análises de custo/benefício nacional contrárias à imediata redução compulsória
de emissões de gases de efeito estufa, o inverso do que ocorrera com a questão
do ozônio no final dos anos 1980. Ou seja, se houve influê ncia de alguma
racionalidade econômica no âmago do Protocolo
de Kyoto ela foi irrisória e indireta, pois é política a longa marcha
do Sul contra o Norte nas instâncias multilaterais.
Ainda mais grave, contudo, é que agora o mantra das
"responsabilidades comuns, porém diferenciadas" passou a ser usado pelo Brasil para
retroceder à proposta de que o critério de distribuição dos engajamentos deveria
ser o conjunto das emissões imputáveis a cada nação desde a revolução
industrial. Qual pode ser o sentido ético de se pretender estabelecer dívida por
práticas dos antepassados das atuais populações do primeiro mundo por problema
que a ciência só começou a confirmar nos anos 1970, e cuja seriedade só foi
admitida pela comunidade internacional entre 1988 e 1992?
Além disso, não há proposta que possa ter efeito mais
desagregador, pois nenhuma das nações mais ricas poderá admitir que sua
precocidade em gerar e adotar as inovações que mais impulsionaram o
desenvolvimento moderno constitua motivo de indenização às nações que só mais
tarde delas puderam tirar proveito. Melhor seria que recompensassem as que lhes
forneceram escravos...
De resto, é ínfima a possibilidade de se encontrar
solução para qualquer problema global em arenas de 193 Estados dos quais apenas
28 conhecem um incipiente processo de desapego da soberania nacional. Então, por
mais que possam ser apontadas razões de natureza cognitiva, é mediante pesquisas
interdisciplinares sobre relações internacionais que se pode avançar no
entendimento e explicação da maluquice climática. Não por acaso foram elas que
já ensejaram no Brasil duas ótimas análises: "Copenhague:
Antes e Depois", deSérgio
Abranches (Civilização Brasileira, 2010) e "Sistema
Internacional d e Hegemonia Conservadora; Governança Global na Era da Crise
Climática", de Eduardo
Viola,Matías
Franchini e Thaís
Lemos Ribeiro (Annablume, 2013).
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