Nação da pobreza: como os EUA criaram um pântano de baixos salários
Durante décadas, ambos os partidos norte-americanos
suplantaram um impulso para salários mais elevados com auxílios públicos
bem-intencionados. O resultado: calamidade.
A reportagem é de Joan Walsh, publicada na
revista Salon, 15-12-2013. A
tradução é de Moisés Sbardelotto.
2013 é o ano em que
muitos norte-americanos descobriram a crise dos trabalhadores pobres. E essa
também é a crise dos pobres que vivem de benefícios. Isso é difícil para nós:
os norte-americanos notoriamente detestam assistencialismo, a menos que seja
chamado de outra coisa e/ou nos beneficie pessoalmente. Nós achamos que isso é
para os preguiçosos, vagabundos e para pessoas que não fazem a sua parte.
Portanto, não temos
certeza de como lidar com o fato de que um quarto das pessoas que têm emprego
hoje ganham tão pouco dinheiro que elas também recebem alguma forma de
assistência pública, ou benefícios – uma proporção que é muito maior em alguns
dos setores de maior crescimento da força de trabalho. Ou que 60% dos adultos
beneficiários de auxilio alimentação estão empregados.
Um total de 52% das famílias dos trabalhadores de
fast-food recebe assistência pública – a maior parte dela vem do Medicaid [1], vale-refeição e do crédito de
imposto sobre rendimento (EITC) [2] – até a quantia de 7
bilhões de dólares anuais, de acordo com uma nova pesquisa do Centro de Pesquisa do Trabalho da Universidade da Califórnia-Berkeley e da Universidade de Illinois.
Segundo o estudo, somente os trabalhadores do McDonald's recebem 1,2 bilhão de dólares em ajuda pública. Essa é uma indústria, a
propósito, que no ano passado faturou 7,44 bilhões de dólares em lucros, paga
52,7 milhões de dólares aos seus altos executivos e distribuiu 7,7 bilhões em
dividendos e reaquisição de ações. Mesmo assim, “o recebimento de recursos
públicos é a regra, e não a exceção, para essa força de trabalho",
concluiu o estudo.
Depois, há o Wal-Mart,
que, como Josh Eidelson, da Salon, informou recentemente, vangloriou-se numa conferência do Goldman Sachs que "mais de 475 mil" de s
eus 1,3 milhão de trabalhadores ganham mais de 25.000 dólares por ano – o que
nos permite inferir que quase 60% ganham menos.
Os democratas do Comitê de
Educação e Força de Trabalho estimaram que as gigantescas cadeias
de varejo de baixo custo beneficiam-se de muitos bilhões de dólares em
financiamentos de assistência pública; um "hipermercado" do Wisconsin custa aos contribuintes pelo menos 1
milhão de dólares por ano em assistência pública para as famílias dos
trabalhadores. Lembre-se, também, que seis membros da família Walton possuem a riqueza equivalente a de 48
milhões de norte-americanos juntos.
Mas não é só fast-food e Wal-Mart: um em cada três caixas de banco recebe
assistência pública, revelou o Committee for Better Banks, na semana
passada, a um custo de quase 1 bilhão de dólares por ano em ajuda federal,
estadual e local. É isso mesmo: uma das indústrias mais rentáveis,
privilegiadas e de alto prestígio do país, a do ramo bancário, paga a um setor
de seus trabalhadores salários chocantemente baixos e depende dos contribuintes
para tirá-los da pobreza. Só em Nova York, 40% dos caixas de
banco e seus familiares recebem assistência pública, custando 112 milhões de
dólares em benefícios estaduais e federais.
Os CEOs dos bancos
ganham vários milhões de dólares em bônus quando os lucros aumentam, enquanto
milhões de caixas são tão pobres que recebem assistência social. Há algo de
errado nisso.
A repulsa pelas empresas rentáveis que pagam
salários em nível de pobreza está ajudando a alimentar uma onda de organização
há muito esperada e a protestar em nome dos trabalhadores com baixos salários,
desde greves de trabalhadores de fast-food que varreram o país até protestos
contra o Wal-Mart nessa temporada de
férias. Os contribuintes recuam diante da ideia, mas também muitos
trabalhadores. "Eu pensei que eu poderia me virar por conta própria. Isso
não aconteceu”, disse a funcionária do Wal-Mart Aubretia
Edick, aoHuffington
Post,
que ganha 11,70 dólares por hora e ainda recebe assistência pública. É por isso
que ela se juntou a uma greve de um dia. "O Wal-Mart não paga o meu
salário", disse. " Você paga o meu salário."
Os EUA agora
tem a maior proporção de trabalhadores com baixos salários do mundo
desenvolvido, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Um em cada quatro
norte-americanos ganha menos de dois terços do salário médio, que é a mesma
proporção que depende da ajuda pública. Está se tornando mais amplamente aceito
que a disseminação e persistência de empregos de baixos salários esteja por
trás do aumento da desigualdade de renda e redução da mobilidade social. O que
é menos conhecido é o papel que os democratas têm desempenhado na criação dessa
armadilha.
* * *
Em seu discurso amplamente admirado sobre a
desigualdade de renda, do dia 4 de dezembro, o presidente Obama parecia
compartilhar todas essas preocupações.
"Nós sabemos
que há os trabalhadores do aeroporto, os trabalhadores de fast-food, os
auxiliares de enfermagem e os vendedores do varejo que trabalham duro e ainda
vivem na pobreza ou um pouco acima dela", disse ele.
Baseado em grande parte naquele discurso e em
alguns sussurros vindos da Ala Oeste daCasa Branca, a revista Politico anunciou na
sexta-feira "O presidente Obama volta-se
para a esquerda". Mas, à parte de dizer mais uma vez que é hora de
aumentar o salári o mínimo, o presidente ainda não colocou muita força em uma
agenda de “esquerda” para os trabalhadores com baixos salários.
Também seria bom que Obama reconhecesse: o
fato de que tantos norte-americanos "trabalham duro e ainda estão vivendo
na pobreza ou um pouco acima dela" e que recebem assistência pública não é
apenas um acidente infeliz. É o resultado de uma política pública apoiada por
muitos democratas – e ele não tem feito muito para mudá-la ou desafiá-la. Na
verdade, o presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Obama fez a sua
defesa mais vigorosa.
A verdade é que um
consenso bipartidário que surgiu na década de 1990 dizia que um emprego,
praticamente qualquer emprego, era melhor do que a assistência pública a longo
prazo para os chamados adultos "capacitados fisicamente", incluindo
as mães com crianças pequenas. Isso levou à controversa reforma da legislação
da previdência, que teve ramificações muito além do domínio dos benefícios
sociais.
Os republicanos exigiam trabalho de beneficiários
da previdência social, a maioria dos democratas concordou, mas exigiu um novo
suporte para trabalhadores de baixa renda: uma expansão do EITC, Medicaid e elegibilidade do
vale-refeição mais amplos, novos (embora não suficientes) subsídios para
cuidados infantis. (Como senador do estado de Illinois,Obama era crítico da
ideia, mas, mais tarde, aprovou o acordo.) Os no vos programas de apoio também
ajudaram milhões de trabalhadores de baixa renda, que nunca tinham necessitado
de benefícios; enquanto os salários continuaram estagnando e até mesmo
diminuindo, mais pessoas passaram a ser elegíveis.
Mas quando os defensores trabalhistas começaram a
perceber e protestar que os empregadores estavam contando com os contribuintes
para apoiar a sua força de trabalho há uma década atrás, alguns liberais lhes
disseram para não se preocuparem com isso. Respondendo a uma onda anterior de
organização contra as práticas trabalhistas do Wal-Mart, o presidente do Conselho de Assessores
Econômicos (CEA, na sigla em inglês) do presidente Obama, Jason Furman, escreveu um
artigo muito influente em 2005 intitulado "Wal-Mart: uma historia de
sucesso progressista" (Oito anos depois, isso soa como se ele estivesse
debochando de nós.) O ex-conselheiro econômico de Clinton argumentou que os
preços baixos das grandes redes ajudaram os pobres, e que a dependência de seus
funcionários à assistência pública não foi um erro, mas uma característica da
política social progressista.
Furman reconheceu
o presidente Clinton como aquele que presidiu "a transformação da
nossa rede de segurança social de um suporte para os indigentes para um sistema
que faz o trabalho pagar (…) expansões em apoio aos trabalhadores de baixa
renda, incluindo um crédito de imposto sobre rendimento (EITC) mais generoso e esforços para
garantir que as crianç as não perdessem o seu Medicaid se seus pais
conseguissem um emprego de baixa remuneração". Essencialmente, a
dependência dos empregados do Wal-Mart em tais programas representou uma boa política
social-democrata, Furman argumentou. E em uma troca memorável com Barbara Ehrenreich no site Slate, ele repreendeu os
críticos progressistas do Wal-Mart p or "brincar com os instintos
primitivos antibenefício, antigoverno, anti-imposto de alguns
conservadores". (Deixe para um democrata da era Clinton culpar os
progressistas pelos bem estabelecidos "instintos primitivos
antibenefícios" da direita.)
Embora o artigo de Furman sobre o Wal-Mart seja de oito anos
atrás, ele foi amplamente citado como uma razão para os progressistas para
questionar a sua nomeação como presidente do CEA no início deste ano
(embora economistas progressistas desde Jared Bernstein a Paul Krugman endossaram a sua
seleção). Apenas alguns meses atrás, quando a câmara municipal de Washington
aprovou uma lei exigindo que grandes varejistas não-sindicalizados pagassem um
salário mínimo de 12,50 dólares por hora, o Wal-Mart enviou aos repórteres o
artigo de Furman na defesa.
Curiosamente, eu nunca vi Furman defender ou
qualificar ou atualizar o artigo, mesmo em face de uma nova onda de movimentos
anti-Wal-Mart. Eu não estava
completamente confortável em usar um documento de oito anos de idade para
defender seus pontos de vista, então pedi aos funcionários de comunicação da Casa Branca se ele falaria
comigo sobre isso. Eu não obtive resposta.
Como social-democrata, eu não acho que Furman esteja errado em
defender o papel dos programas sociais em melhorar a vida dos trabalhadores de
baixa renda. Muitos progressistas acreditam que devemos separar o plano de
saúde do emprego por completo, por exemplo, e torná-lo um benefício universal
pago por impostos corporativos e impostos de valores máximos, mais as
contribuições individuais de escala móvel. Em todo o mundo desenvolvido, os
trabalhadores de quase todos os níveis podem contar com planos de saúde,
puericultura, formação profissional e de treinamento, e até mesmo (em níveis
salariais mais baixos) suplementos salariais financiados pelo governo.<
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Mas não é
calvinismo punitivo ou vergonha dos benefícios em questionar até que ponto que
agora é certo que trabalhadores de baixa renda tenham que contar com o vale-refeição
e outras intervenções públicas, muitas vezes por um longo tempo, talvez
permanentemente. Por não exigirem também aumentos regulares do salário mínimo
ou colocar mais força na organização sindical, os democratas ajudaram a criar
um vasto conjunto de empregos de baixos salários que paira um pouco acima da
linha de pobreza, e às vezes ainda abaixo dela, graças à assistência pública, e
não tem a força econômica e política para melhorar os salários e as condições
de trabalho. Isso não pode ser bom para ninguém.
Na verdade, a noção de que tantos milhões de
pessoas trabalham tão duro e ainda são pobres o suficiente para receber ajuda
pública está aumentando: ela ajuda a mostrar que os salários baixos, não a
falta de esforço ou "dependência", são, em parte, aquilo que está
fazendo encolher a classe média. Não apenas os contribuintes, mas também os
trabalhadores de baixa renda acham que sair da pobreza, com a ajuda de
vale-refeição,Medicaid e o EITC, deve ser apenas
uma vitória temporária a caminho de um lugar sólido no mercado de trabalho onde
o trabalho é devidamente remunera do.
Eu certamente não
estou demonizando a assistência pública. Nós ainda gastamos uma ninharia para
ajudar os trabalhadores de baixos salários em comparação com o apoio social
desfrutado por seus pares em outras nações prósperas. Os progressistas
certamente estão orgulhosos de um estudo recente que mostrou que os programas
de combate à pobreza, de fato, tiram as pessoas da pobreza – cerca de um quarto
dos americanos viveriam abaixo da linha da pobreza se não fosse pelo apoio
social, em oposição a um triste 16 por cento hoje. Isso deve obliterar a
história infundada de Reagan de que "nós lutamos uma guerra contra a
pobreza, e a pobreza venceu".
Mas a cada dólar que o contribuinte paga para
subsidiar as empresas que pagam salários de miséria é um dólar não gasto em
programas de primeira infância, na construção de universidades ou no
financiamento da educação universitária. Sim, precisamos de redes de segurança,
mas também precisamos de escadas de oportunidade. O gasto do governo que
construiu a classe média depois da Segunda Guerra Mundial foi em educação e
pesquisa, e foi apoiado pela mais eficaz iniciativa antipobreza do New Deal: a Lei Wagner, que facilitou a
organização sindical.
Hoje, temos uma
rede de segurança puída, mas essas escadas de oportunidade são ainda mais
frágeis e pouco confiáveis. Nós simplesmente não estamos construindo-as – e é
por isso que nós estamos enfrentando uma crise de desigualdade de renda e uma
estagnação da mobilidade social, que costumava ser o coração do sonho
americano.
* * *
O presidente Obama pareceu reconhecer
ao menos alguma conexão entre a proliferação de empregos de baixos salários e a
crise de desigualdade de renda em seu discurso marcante de 4 de dezembro.
Condenando o aumento do número de postos de trabalho que pagam salários a nível
de pobreza, ele declarou que "já está mais do que na hora de aumentar o
salário mínimo que, em termos reais, agora está abaixo de onde estava quando Harry Truman estava no
governo", e acrescentou que "está em tempo de gara ntir que as nossas
leis coletivas de negociação funcionem como deveriam, e assim os sindicatos
terão condições de concorrência equitativas para organizar um acordo melhor
para os trabalhadores e melhores salários para a classe média". Ele também
se comprometeu a reconstruir as "escadas de oportunidade" que fizeram
a sua família e milhões de outras, incluindo a minha, subir da classe
trabalhadora para a classe média. Dado o balanço de extrema-direita do Partido
Republicano, no entanto, não é provável que ele seja capaz de fazer muito disso
acontecer.
O que me leva ao outro problema dos trabalhadores
de baixa renda que estão sendo obrigados a depender da assistência pública:
eles são, infelizmente, vulneráveis a serem bode expiatório político e política
baixa. O deputado Paul Ryan chama a rede de segurança de "rede de
praia", o que é horrível quando sabemos que muitas pessoas tem pelo menos
um, e talvez dois, empregos e ainda permanecem pobres. Mitt Romney investiu contra os
47% dos norte-americanos que não pagam imposto de renda federal , o que inclui
milhões de trabalhadores de baixa renda que recebem o crédito fiscal dos
rendimentos auferidos (EITC), mesmo que esse
tenha sido uma ideia republicana, assinada em lei pelo presidente Gerald Ford e expandida por
ambos os presidentes Bush.
Mas os republicanos
não estão fazendo pressão para aumentar o salário mínimo ou tornar mais fácil
para os trabalhadores de baixa renda organizar sindicatos. A resposta deles é
retirar a rede de segurança dos trabalhadores sem a construção de escadas que
os fariam subir. E com cortes do vale-refeição, eles estão conseguindo o que
eles querem.
Neste momento, a melhor resposta é um movimento
operário revigorado em nome dos trabalhadores com baixos salários, e é
revitalizando vê-lo se desenvolver. Em um nível, é surpreendente que tenha
levado tanto tempo. Muitos empregos de baixos salários têm a vantagem de serem
de base territorial, eles não podem se mudar para países em desenvolvimento. Os
drones não vão entregar o seu hambúrguer do McDonald's num futuro próximo, e o Wal-Mart não pode vender
tudo online, senão ele iria. Os caixas de banco já foram dizimados por caixa s
eletrônicos e pelos serviços bancários online; aqueles que ainda têm emprego os
têm porque são necessários.
Mas também seria importante para mais pessoas –
mais democratas – reconhecer o papel que a política tem desempenhado na criação
desse pântano de empregos de baixos salários que tem sido um pouco menos
miserável devido aos subsídios públicos. Como a desigualdade de renda aumentou,
a mobilidade social, marca registrada dos EUA, diminuiu. A crise dos empregos de
baixos salários é cada vez mais reconhecida como parte daquilo que está
ampliando a desigualdade e retardando a mobilidade social. No quinto ano de sua
presidência, Obama está ficando melhor em descrever o problema, mas ele precisa
fazer mais para apoiar os trabalhadores que estão tentando pressionar por
soluções.
Notas:
1. Medicaid:
programa de assistência médica dos EUA para famílias e
indivíduos de baixa renda.
2.Earned Income Tax Credit: crédito recebido
através do imposto de renda federal dado para trabalhadores ou casais –
principalmente aqueles com filhos menores de idade.
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