Espaço Aberto
A formação na sociedade do espetáculo:
gênese e atualidade do conceito*
Maria Luiza Belloni
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Educação
Na pura historicização da dialética, esta constatação se dialetiza mais uma vez: o “falso” é um momento do “verdadeiro” ao mesmo tempo enquanto “falso” e enquanto “não-falso”.
A formação na sociedade do espetáculo:
gênese e atualidade do conceito*
Maria Luiza Belloni
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Educação
Na pura historicização da dialética, esta constatação se dialetiza mais uma vez: o “falso” é um momento do “verdadeiro” ao mesmo tempo enquanto “falso” e enquanto “não-falso”.
Georg Lukács, História e consciência de classe
Prólogo, como não poderia deixar de ser
Apresentar Debord e sua obra, tão complexa e polêmica, é um grande desafio que só se explica pela convicção de que é extremamente importante evocar a radicalidade de seu pensamento e de suas ações e pôr em evidência seu caráter autenticamente revolucionário, na tentativa de lembrar a permanência e validade das idéias subversivas que o espetáculo quer a todo custo nos fazer esquecer.
Os leitores brasileiros já dispõem das duas principais obras de Debord (1991, 1997) e também do
melhor livro publicado na Europa sobre ele (Jappe, 1999). Falta-nos, no entanto, acesso a suas outras criações poéticas, filosóficas ou cinematográficas, bem como a informações sobre o contexto cultural e político que permite compreender seu verdadeiro significado. Sua obra é vasta e variada, ousada e revolucionária, e completamente fora dos padrões acadêmicos. Aliás, Debord detestava tudo o que é estabelecido, abominava a “recuperação”, pelo sistema mercantil, de formas e conceitos artísticos arrojados, como o surrealismo, por exemplo, e pregava a superação da própria arte.
Então, o prazer de revisitar as propostas revolucionárias de Debord e seus companheiros da Internacional Situacionista foi temperado por um vago sentimento de culpa, por recuperar Debord para o “sistema” das mercadorias e trazê-lo à academia. A certeza, porém, de que este é um fórum legítimo de discussão, que busca compreender o processo de formação de pessoas livres, no contexto da sociedade do espetáculo, redime esta autora do pecado de traição. Intelectual irrecuperável pelo sistema midiático, crítico ferrenho do marxismo oficial economicista e determinista, que ele pretendia superar ressignificando as idéias do jovem Marx, Debord liderou um grupo de intelectuais ultra-radicais que acreditavam na força das idéias para transformar o mundo. Esta é sem dúvida sua mais importante contribuição: lembrar-nos de que, assim como a ideologia dominante tem materialidade – no espetáculo –, as idéias de mudança podem ter potência política. Não se pretende, com esse trabalho, fazer uma resenha do autor e sua obra, mas apenas contextualizar o surgimento de sua contribuição teórica mais notável: o conceito de sociedade do espetáculo. Trata-se de uma tentativa de apresentar uma leitura ou interpretação que, embora se fundamente em argumentos teóricos (valor heurístico do conceito de espetáculo), permanece irremediavelmente muito pessoal. É mais um retrato impressionista historicamente contextualizado do que uma resenha ou análise teórica. A atualidade do conceito de sociedade do espetáculo é incontestável: recuperado pelas mídias que Debord tanto criticava, como [1]vitrines mais visíveis do espetáculo, “sua manifestação superficial mais esmagadora”, o conceito passou para o uso comum, corrente, sem determinar fontes. Isso demonstra o sucesso da idéia. Embora seu autor tenha continuado durante toda a vida como marginal ao sistema, a sociedade foi se tornando tão espetacular que o conceito foi se impondo como evidente para a compreensão e elaboração de uma teoria da sociedade contemporânea. O espetáculo é de tal forma eficaz que conseguiu recuperar esse conceito e reduzi-lo a mais uma teoria sobre as mídias, esvaziando-o de seu caráter revolucionário de explicação da totalidade. Conceituar o espetáculo como relação social significa uma compreensão premonitória da fase atual do capitalismo e do esgotamento do modelo socialista e de seus fundamentos teóricos marxistas como teoria da práxis que pode levar à transformação. Nossa perspectiva visa problematizar a seguinte questão: o que no conceito serve para a formação na sociedade contemporânea? Para isso é preciso retomar o conceito em seu sentido original de teoria e práxis: não só categoria com valor heurístico, de compreensão dos fenômenos sociais, mas também e principalmente como inspiração da prática de transformação da vida pelo sujeito emancipado. É o caráter revolucionário do conceito de espetáculo que precisamos recuperar, de uso crítico e radicalmente criativo, e das ferramentas mais importantes do espetáculo, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) ou mídias, porque são elas que produzem a imagem dele.
Prólogo, como não poderia deixar de ser
Apresentar Debord e sua obra, tão complexa e polêmica, é um grande desafio que só se explica pela convicção de que é extremamente importante evocar a radicalidade de seu pensamento e de suas ações e pôr em evidência seu caráter autenticamente revolucionário, na tentativa de lembrar a permanência e validade das idéias subversivas que o espetáculo quer a todo custo nos fazer esquecer.
Os leitores brasileiros já dispõem das duas principais obras de Debord (1991, 1997) e também do
melhor livro publicado na Europa sobre ele (Jappe, 1999). Falta-nos, no entanto, acesso a suas outras criações poéticas, filosóficas ou cinematográficas, bem como a informações sobre o contexto cultural e político que permite compreender seu verdadeiro significado. Sua obra é vasta e variada, ousada e revolucionária, e completamente fora dos padrões acadêmicos. Aliás, Debord detestava tudo o que é estabelecido, abominava a “recuperação”, pelo sistema mercantil, de formas e conceitos artísticos arrojados, como o surrealismo, por exemplo, e pregava a superação da própria arte.
Então, o prazer de revisitar as propostas revolucionárias de Debord e seus companheiros da Internacional Situacionista foi temperado por um vago sentimento de culpa, por recuperar Debord para o “sistema” das mercadorias e trazê-lo à academia. A certeza, porém, de que este é um fórum legítimo de discussão, que busca compreender o processo de formação de pessoas livres, no contexto da sociedade do espetáculo, redime esta autora do pecado de traição. Intelectual irrecuperável pelo sistema midiático, crítico ferrenho do marxismo oficial economicista e determinista, que ele pretendia superar ressignificando as idéias do jovem Marx, Debord liderou um grupo de intelectuais ultra-radicais que acreditavam na força das idéias para transformar o mundo. Esta é sem dúvida sua mais importante contribuição: lembrar-nos de que, assim como a ideologia dominante tem materialidade – no espetáculo –, as idéias de mudança podem ter potência política. Não se pretende, com esse trabalho, fazer uma resenha do autor e sua obra, mas apenas contextualizar o surgimento de sua contribuição teórica mais notável: o conceito de sociedade do espetáculo. Trata-se de uma tentativa de apresentar uma leitura ou interpretação que, embora se fundamente em argumentos teóricos (valor heurístico do conceito de espetáculo), permanece irremediavelmente muito pessoal. É mais um retrato impressionista historicamente contextualizado do que uma resenha ou análise teórica. A atualidade do conceito de sociedade do espetáculo é incontestável: recuperado pelas mídias que Debord tanto criticava, como [1]vitrines mais visíveis do espetáculo, “sua manifestação superficial mais esmagadora”, o conceito passou para o uso comum, corrente, sem determinar fontes. Isso demonstra o sucesso da idéia. Embora seu autor tenha continuado durante toda a vida como marginal ao sistema, a sociedade foi se tornando tão espetacular que o conceito foi se impondo como evidente para a compreensão e elaboração de uma teoria da sociedade contemporânea. O espetáculo é de tal forma eficaz que conseguiu recuperar esse conceito e reduzi-lo a mais uma teoria sobre as mídias, esvaziando-o de seu caráter revolucionário de explicação da totalidade. Conceituar o espetáculo como relação social significa uma compreensão premonitória da fase atual do capitalismo e do esgotamento do modelo socialista e de seus fundamentos teóricos marxistas como teoria da práxis que pode levar à transformação. Nossa perspectiva visa problematizar a seguinte questão: o que no conceito serve para a formação na sociedade contemporânea? Para isso é preciso retomar o conceito em seu sentido original de teoria e práxis: não só categoria com valor heurístico, de compreensão dos fenômenos sociais, mas também e principalmente como inspiração da prática de transformação da vida pelo sujeito emancipado. É o caráter revolucionário do conceito de espetáculo que precisamos recuperar, de uso crítico e radicalmente criativo, e das ferramentas mais importantes do espetáculo, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) ou mídias, porque são elas que produzem a imagem dele.
Internacional Situacionista: a gênese do conceito
Contexto histórico: Europa no período pós-guerra
Durante a década que se seguiu à derrota do nazismo na Europa e do império japonês no Oriente, a hegemonia americana consolidou-se inapelavelmente em nível planetário. A ameaça nuclear pairava sobre o planeta como uma sombra sinistra. O modo fordista de produção industrial tornava-se o paradigma dominante que, triunfante, iria servir de modelo para o Plano Marshal de reconstrução da Europa. A propaganda americana difundia alegremente a era fordista e a ilusão de que os conflitos sociais seriam substituídos pela harmonia das classes, com o desaparecimento do proletariado tradicional. Na onda criada pela ajuda dos Estados Unidos, o American way of life invade a velha Europa devastada pela guerra, trazendo consigo os símbolos da cultura capitalista do novo mundo, no bojo de um complexo processo de reorganização política e socioeconômica caracterizado pela prosperidade econômica, estabilidade geopolítica e a promessa de uma vida melhor, baseada na intervenção reguladora do Estado (welfare State). A (relativa) estabilidade geopolítica repousava então num equilíbrio precário entre as duas superpotências vitoriosas, que se enfrentavam no terreno ideológico, diplomático e econômico, fenômeno conhecido como “guerra fria”, que opunha dois modelos de sociedade: capitalismo versus comunismo. O primeiro se apresenta como modelo democrático e liberal baseado num modo de produção industrial eficiente, caracterizado pelo fordismo, taylorismo e liberalismo econômico (também relativo, já que a presença do Estado americano, principalmente militar mas também econômica, é significativa) e consolida sua hegemonia na Europa e América Latina. O comunismo, caracterizado por regimes ditatoriais, poder absoluto de um Estado centralizado, impondo uma economia voltada para o fortalecimento do Estado e para a guerra, disputa com o islamismo a hegemonia ideológica nos países africanos, recém-descolonizados, e na Ásia, fazendo surgir curiosos sincretismos. A Europa, traumatizada pelas guerras e ameaçada pelas intenções expansionistas do império soviético, abre suas portas para a democracia no modelo americano, ou seja, liberal e competitiva. Na França, a guerra de descolonização da Argélia acrescenta um grande complicador ao quadro político extremamente instável da 4ª República, resultante da guerra, e favorece a ascensão de um regime autoritário de cunho nacionalista, liderado pelo General De Gaulle, chefe militar do exército rebelde francês, que havia resistido ao nazismo e rejeitado o armistício e a colaboração com os alemães durante a guerra.
Movimentos culturais
O período pós-guerra caracteriza-se, tanto Europa quanto nos Estados Unidos, por uma grande efervescência cultural, com características realmente novas, como o surgimento de uma cultura de massa, que fugia completamente aos padrões estabelecidos da “alta cultura” européia. Nas artes e nas letras observa- se uma grande vitalidade, que busca afirmar-se propondo uma ruptura radical com os cânones estéticos. Na Europa, uma espécie de euforia criativa prega a revolução de formas em todas as artes, ruptura e revolução que revelam uma grande influência americana. As artes voltadas para o lazer (entretenimento), como a música (jazz, centro-americana), o teatro e o cinema, são as estrelas do momento, canalizando para o show business as energias comemorativas do fim da guerra e da nova prosperidade. Esses setores da produção cultural conhecem um grande desenvolvimento, evidenciado pela invasão do cinema de Hollywood nos países europeus e pelo progresso do cinema italiano e francês. Nos meios culturais das principais capitais européias (Paris, Londres, Bruxelas), as vanguardas artísticas do entre-guerras foram sendo radicalizadas nos anos 1950, com a reestruturação de movimentos como o Bauhaus Imaginista, o Surrealismo e o Dadaísmo, entre muitos outros. Essas vanguardas, todavia, perdem seu ímpeto de crítica radical, para se ir integrando ao novo sistema de produção cultural de caráter industrial, midiático e de massa. Das vanguardas dos anos 1920 e 1930 ressurgem, fortalecidos pelo clima de reconstrução, a arquitetura, o urbanismo e o design funcional. O urbanismo revolucionário arrojado, inspirado em Lê Corbusier, que vai influenciar Lúcio Costa na concepção de Brasília, bem como a arquitetura modernista de linhas curvas e puras com que Niemeyer vai marcar a nova capital brasileira, reflorescem no clima fértil da cultura parisiense. Nos enfumaçados cafés de Paris, intelectuais e artistas, inspirados pelo existencialismo, sonham em mudar radicalmente o mundo, com a liberdade de criadores, na esteira da destruição física e moral deixada pela guerra. No contexto da França saída dos traumas da guerra, da ocupação alemã e da colaboração, surge em 1952 um pequeno grupo de intelectuais e artistas de vários campos que se associam num movimento denominado Internacional Letrista, que está na origem da Internacional Situacionista, movimento artístico, político e poético criado e liderado por Debord, e que iria ter significativa importância no imaginário político da juventude européia nos anos 1960.
Movimentos políticos (maio de 1968): les enragés et les situationnistes
A vitória dos aliados fortalecera politicamente todos os grupos que haviam participado da resistência ao nazismo. Ao lado da reconstrução econômica no modelo capitalista, observou-se um crescimento da esquerda na Europa: os partidos comunistas e social-democratas destacavam-se na reorganização política e na luta pela descolonização. Nos anos 1960, na França, a clivagem entre esquerda e direita, ainda sob a sombra sinistra da colaboração com os nazistas, se aprofunda na questão da guerra da Argélia. O Partido Comunista Francês, no entanto, embora com um quarto dos votos e grande prestígio por seu papel na Resistência e seu nacionalismo, não atrai os jovens, em virtude, sobretudo, de sua fidelidade absoluta à URSS de Stalin e seu dogmatismo delirante. Nos EUA, após os anos dourados de triunfo do American dream, os jovens do movimento hippie, na esteira da famigerada beat generation, vêm decepcionar a geração dos heróis de guerra, e adentram os anos 1960 pregando uma contracultura contrária aos mais caros valores da sociedade americana: movimento pacifista contra a guerra do Vietnã; paz e amor livre; lugar ao sol para minorias, sem preconceitos (movimentos negro, feminista, gay); e, pecado dos pecados, trabalho artesanal e vida simples, alternativa, isto é, sem consumo. Na Europa “libertada” (França, Alemanha, Itália), a fúria juvenil contra um sistema que só se fazia fortalecer com a prosperidade econômica e que invadia a orgulhosa cultura local com produtos de qualidade duvidosa, vai desembocar em movimentos e manifestações diversas de rebelião nos meios estudantis e operários. Tais movimentos – reunidos no termo Maio/1968, mas que se estenderam por todo o primeiro semestre daquele ano – tinham como principal traço comum o fato de escaparem ao controle das forças organizadas nos sindicatos e partidos políticos e de criticarem as ideologias estabelecidas tanto de direita quanto de esquerda, atacando-se a todos os partidos políticos e grupelhos esquerdistas. Em Paris, o movimento de maio de 1968 vai se radicalizar no Movimento das Ocupações, que reunia estudantes e operários numa luta comum contra todo poder constituído – na família, na empresa, na universidade ou na política – e em favor de propostas mais radicais de mudança. Dentre os muitos grupos políticos que participam ativamente desse movimento destacam-se os “enragés” e os “situacionistas”, formados por Debord, Vaneigem e outros companheiros. Esses grupos eram muito mais radicais do que os grupos e líderes políticos de estudantes e operários, mais conhecidos e mais importantes na liderança do movimento, como o grupo “Movimento 22 de Março”, de Daniel Cohn-Bendit, mas tudo parece indicar que foram eles que forneceram as bases teóricas e os slogans mais radicais e inovadores do Movimento das Ocupações, que foi o grupo que durou mais tempo. Se o movimento de maio de 1968 em Paris, envolvendo jovens de todas as classes sociais na França, foi tão importante para a compreensão daquele momento histórico, não é tanto pelas transformações políticas que ele desencadeou, como a queda do general De Gaulle um ano após, por exemplo, mas sobretudo porque essa explosão social revestiu-se de um caráter emblemático portador da mensagem ideológica mais avançada que a época podia produzir. Como os arautos da contracultura americana haviam fornecido os argumentos e os ideais para a revolta da juventude contra uma guerra insensata e uma forma alienada de vida, os situacionistas forneceram as palavras de ordem mais radicais que iriam embalar o movimento e que permaneceram como registro das manifestações de maio de 1968 na França e na Europa. Os situacionistas buscavam expressar sua percepção, ainda que confusa e fragmentada (de certa forma ingênua), da importância de um novo fenômeno no campo cultural que iria transformar radicalmente a vida cotidiana e as estruturas simbólicas da sociedade: a produção industrial da cultura, potencializada pelo avanço tecnológico, que iria possibilitar uma “organização das aparências no estágio espetacular da sociedade mercantil” (Viénet, 1968, p. 13). Ao criticar a sociedade, os situacionistas atacavam tanto a esquerda quanto a direita, denunciando não só o capitalismo triunfante do Ocidente como a burocracia estalinista constituída em classe na Rússia e depois em outros países do leste europeu, pela tomada do poder do estado totalitário. Queriam mostrar a possibilidade e iminência de uma nova volta da revolução. Sua teoria revolucionária começa por uma crítica das condições de existência inerentes ao capitalismo superdesenvolvido: a pseudo-abundância da mercadoria e a redução da vida ao espetáculo, o urbanismo repressivo e a ideologia – entendida, como sempre, a serviço dos especialistas em dominação. Suas propostas de revolução mundial contra capitalismo e estalinismo, com base em uma perspectiva internacionalista e crítica da sociedade de consumo e do “capitalismo de Estado” dos países comunistas, forneciam aos jovens estudantes e operários uma alternativa sedutora ante o estalinismo rígido e ultrapassado dos aparelhos políticos burocratizados do sindicalismo e dos partidos. Sua crítica às artes, às ciências, aos intelectuais, ao establishment em geral, isto é, a crítica sem concessões ao status quo, aparecia como uma utopia quase ao alcance da mão. Ao deslocar a luta de classes do terreno da economia para o da cultura e da vida cotidiana, por meio dos novos meios técnicos colocados a serviço da arte e da cultura, os situacionistas acenavam com algo verdadeiramente novo no cenário político: a revolução das subjetividades. Suas propostas de revolução como busca por identificar os desejos e lutar para realizá-los é imbatível no imaginário político dos jovens europeus. Os slogans situacionistas pichados nas paredes da Sorbonne exprimem muito bem o estado de espírito lá reinante, de que era possível mudar o mundo, de que tudo era possível. Os estudantes tomaram a Sorbonne e a abriram para os trabalhadores e para os jovens rebeldes das periferias, identificados como os “jaquetas negras”, por se vestirem de couro preto. De slogan abstrato para as passeatas, a solidariedade operários-estudantes se transforma em prática política inovadora. Reina uma atmosfera de liberdade total de debate que impede qualquer ação de controle por parte de líderes e grupos estabelecidos. O que se passava na Sorbonne torna-se bússola para os operários de todo o país. Parecia construir-se ali, espontaneamente, uma nova proposta de democracia direta.
A completa liberdade de expressão se manifesta na apropriação das paredes tanto quanto na livre discussão em todas as assembléias. Cartazes de todas as tendências, até os maoístas, coabitavam nas paredes sem serem rasgados ou recobertos: somente os estalinistas do PCF preferiam abster-se. As pichações apareceram um pouco mais tarde. Nesta primeira noite, a primeira pichação, feita sobre um afresco – a famosa fórmula “A humanidade só será feliz no dia em que o último burocrata tiver sido enforcado com as tripas do último capitalista” – levanta alguma agitação. Após um debate público, a maioria decidiu apagá-la. O que foi feito. (Viénet, 1968, p. 75, minha tradução, grifo meu)
René Viénet, situacionista muito ativo no movimento das ocupações, explica em nota de rodapé ter sido ele mesmo o autor dessa primeira pichação, que, de tão revolucionária, foi censurada e apagada por seus próprios companheiros de luta. Viénet ressalta o caráter inovador dessa prática, o “desvio” (détournement) de obras famosas com a inscrição de slogans ou desenhos que as ressignificam, atribuindo-lhes novo sentido revolucionário contraditório com seu sentido original. Tal prática, originária do surrealismo (sob o nome de colagem, por exemplo, desenhar um bigode no retrato da Mona Lisa), foi muito controvertida no primeiro momento de Maio/1968, mas abriu caminho para uma “tão fértil atividade”, e é hoje prática comum tanto nas artes estabelecidas como nos grafites de rua (Viénet, 1968, p. 75). Os situacionistas propunham formas novas de luta que escapavam dos padrões tradicionais da panfletagem política e tinham sua origem nas artes plásticas. Um texto publicado na revista Internationale Situationniste n° 11, de outubro de 1967, com o título Les situationnistes et les nouvelles formes d’action contre la politique et l’art, assinado por René Viénet, propõe “ligar a crítica teórica da sociedade moderna à crítica em atos desta sociedade [...] desviando as próprias propostas do espetáculo, daremos as razões das revoltas de hoje e de amanhã”. O autor fornece alguns exemplos: experimentação do “desvio” de fotonovelas ou de fotos “ditas pornográficas”, substituindo os textos dos “balões” por textos subversivos; promoção da guerrilha nos mass media, considerada mais eficaz do que a guerrilha urbana; produção de comics situacionistas, já que as histórias em quadrinhos são a única forma realmente popular de literatura; realização de filmes situacionistas, pois o cinema é o meio de expressão mais novo da época, sendo pois preciso se apropriar das técnicas dessa nova linguagem, especialmente seus exemplos mais bem-sucedidos, como os cinejornais, anúncios publicitários e traillers. Dois livros de autores situacionistas publicados no ano anterior foram retomados pelos estudantes como fonte de inspiração para palavras de ordem a serem gritadas nas assembléias permanentes e pichadas nas paredes e muros de Paris e das principais universidades francesas: La société du spectacle, de Debord, e Lê traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations, de Raoul Vainegem. Além desses textos fundadores, foram também importantes outros textos publicados na revista Internationale Situationniste (IS), especialmente um longo panfleto de mais de 20 páginas, publicado em 1966 e republicado muitas vezes nos anos seguintes, escrito por membros da Internacional Situacionista e por estudantes de Strasbourg, cujo longo título diz muito de suas intenções revolucionárias: De la misère en millieu étudiant considérée sous ses aspects économomique, politique, psychologique, sexuel et notamment intellectuel, et de quelques moyens pour y remédier (“Sobre a miséria no meio estudantil, considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e notadamente intelectual, e sobre alguns meios para remediar isto”) (IS, n° 10, 1966).
Internacional Situacionista (1958/1969)
O programa da Internacional Letrista, apresentado no primeiro número da revista Potlatch (1954), é claramente radical: “Nós trabalhamos para o estabelecimento consciente e coletivo de uma nova civilização”. Essa mesma proposta revolucionária será confirmada mais tarde (1957) por Debord e seus companheiros, na formação da Internacional Situacionista: “Pensamos que antes de mais nada é preciso mudar o mundo. Queremos a mudança mais libertadora da sociedade e da vida nas quais estamos presos” (Rapport sur la construction des situations, junho de 1957). Os situacionistas orientam suas pesquisas e reflexões na perspectiva de uma superação da arte, levando às últimas conseqüências as propostas das vanguardas futurista, dadaísta e surrealista. Como esses movimentos, pregam o fim das práticas artísticas clássicas e a eliminação de todos os cânones que as estruturavam. Buscam realizar a arte na vida, ou seja, superar a própria arte e fazer dela uma prática participativa, eliminando a separação entre artistacriador e sujeito-espectador. Isso os levou a conceber, com base em pesquisas “psicogeográficas”, propostas de um urbanismo experimental que possibilitasse a experimentação de comportamentos lúdicos e a construção de situações efêmeras e poéticas. Tal como os dadaístas e os surrealistas, os situacionistas usam e abusam de armas como o escândalo, a carta de insulto, as expulsões e as rupturas violentas. São grandes utilizadores da pichação como forma de divulgar seus slogans, entre os quais cabe lembrar um de autoria do próprio Debord, inscrito por ele mesmo numa parede da rua de Seine, em Paris: “Não trabalhem nunca”. Assim, embora sejam poucos e marginalizados dos fóruns estabelecidos da cultura e das artes, os situacionistas conseguem significativa repercussão de suas idéias, especialmente entre os jovens intelectuais e estudantes revoltados com o autoritarismo político e a invasão do American way of life. Os situacionistas não se limitam a propor uma revolução meramente política ou mesmo puramente cultural: pretendem e lutam por uma nova civilização e uma transformação radical das sociedades humanas, uma “real mutação antropológica” (Jappe, 1999, p. 90). Nesse sentido, visam atuar na transformação da vida cotidiana e da cultura, fazendo da “batalha do lazer” o palco privilegiado da luta de classe. A participação de todos na construção das situações se opõe
ao espetáculo e à não-participação que ele implica. As possibilidades infinitas de desenvolvimento da consciência humana, uma vez libertada da alienação do trabalho, estão no centro das preocupações dos pensadores mais avançados e revolucionários da época e têm sua origem em Marx, como bem revela a seguinte afirmação dos situacionistas: “Numa sociedade sem classes, pode-se dizer, não haverá mais pintores, mas situacionistas que, entre outras coisas, pintarão” (Debord, 1957), paráfrase de um trecho da Ideologia alemã: “Numa sociedade comunista, não há pintores, mas, no máximo, seres humanos que, entre outras coisas, pintam” (apud Jappe, 1999, p. 90). Os situacionistas se exprimem sobretudo através da revista Internationale Situationniste, cujo primeiro número, de junho de 1958, começa com uma crítica acerca do surrealismo, segundo eles “recuperado e utilizado pelo sistema repressivo que ele combatia”. Essa crítica se explicita na análise dos aspectos formais, recuperados e transformados em apelos mercadológicos (símbolos da mercadoria) pelo sistema, e na denúncia do abandono dos ideais revolucionários de mudança radical do mundo. No centro da discussão estão os avanços técnicos e científicos.
O mundo moderno alcançou o avanço formal que o surrealismo tinha sobre ele. As manifestações da novidade (do novo) nas disciplinas que progridem efetivamente (todas as técnicas científicas) tomam uma aparência surrealista: fez-se escrever, em 1955, por um robô da Universidade de Manchester, uma carta de amor que poderia passar por um ensaio de escrita automática de um surrealista medíocre. Mas a realidade que comanda esta evolução é que, uma vez que a revolução não foi feita, tudo o que constituiu para o surrealismo uma margem de liberdade foi retomado e utilizado pelo mundo repressivo que ele combatia.
(Amarga vitória do surrealismo, IS, n° 1, p. 3, 1958).
Na mesma revista, cujas regras de ouro eram a redação coletiva e o estímulo à livre reprodução de seus textos, os situacionistas atacam tanto a rebeldia da juventude americana e escandinava que se comprazem no consumo das formas falsamente “surrealistas” (leia-se revolucionárias), quanto os intelectuais dessa geração, “abusivamente chamada de existencialista pelos jornais”, que incluía os nomes famosos de Françoise Sagan, Roger Vadim e Robbe-Grillet, entre outros, considerados pelos situacionistas como ilustrações excessivas da resignação (O ruído e o furor, IS, n° 1, p. 4, 1958). Segundo eles, a juventude, que adere à continuação do surrealismo (cujo sucesso burguês foi deformador), não pode superar a contradição entre a exigência revolucionária e a imobilidade desse pseudo-sucesso e se “refugia nos aspectos reacionários que o surrealismo trazia em si desde sua formação (magia, esoterismo, crença numa idade de ouro que poderia estar fora da história etc.)”. Trata-se, pois, de ir além do surrealismo e fazer a revolução, não só das formas das artes, mas das formas da vida. Trata-se de identificar os desejos e lutar para realizá-los numa perspectiva coletiva onde todos são criadores e parceiros na construção de situações, conceito central no projeto situacionista. A partir da crítica do “funcionalismo, que é uma expressão necessária do avanço técnico e que busca eliminar inteiramente o jogo” (o lúdico, o brinquedo), e do design industrial (“que estimula a criação artística aplicada a novos desenhos de geladeiras”), os situacionistas fazem a crítica da vida cotidiana e propõem,
contra todas as formas regressivas do jogo e das artes, realizar as formas experimentais de um jogo revolucionário, cujas principais definições são apresentadas no primeiro número da revista Internationale Situationniste:
• Situação construída: Momento da vida, concreta e deliberadamente construída pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de eventos.
• Situacionista: O que se relaciona com a teoria ou a atividade prática de uma construção das situações. Aquele que se dedica a construir situações. Membro da Internacional Situacionista.
• Psicogeografia: Estudo dos efeitos precisos do meio geográfico conscientemente organizado ou não, que age diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos.
• Deriva: Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida através de ambiências variadas. Designa também a duração do exercício contínuo desta experiência.
•Urbanismo unitário: Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que se conjugam na construção integral de um meio ambiente dinamicamente ligado a experiências de comportamento.
• Cultura: Reflexo e prefiguração, em cada momento histórico, das possibilidades de organização da vida cotidiana; complexo da estética, dos sentimentos e dos costumes, pelo qual uma coletividade reage sobre a vida que lhe é objetivamente dada por sua economia.
• Decomposição: Processo pelo qual as formas culturais tradicionais destruíram a si próprias, sob o efeito do aparecimento de meios superiores de dominação da natureza, permitindo e exigindo construções culturais superiores. Distingue-se entre uma fase ativa de decomposição, demolição efetiva das velhas superestruturas – que cessa nos anos 30 –, e uma fase de repetição, que domina desde então. O atraso na passagem da decomposição a construções novas está ligado ao atraso na liquidação revolucionária do capitalismo (IS, n°1, p. 13, 1958). Ainda nesse primeiro número da revista IS, os situacionistas atacam as características alienantes da vida nas grandes cidades propondo um novo urbanismo e uma arquitetura voltados para a transformação radical da vida cotidiana. Os avanços técnicos não são percebidos como entrave, muito pelo contrário, eles devem estar a serviço da mudança. Seus gritos de alerta contra os perigos da banalização, lançados nos anos 1950, tomam agora contornos premonitórios, como é possível perceber no texto a seguir, que retoma um relatório adotado pela Internacional Letrista, já em 1953:
Uma doença mental invadiu o planeta: a banalização. Todos estão hipnotizados pela produção e pelo conforto – esgotos, elevador, banheiros, máquina de lavar. Este estado de fato, que nasceu de um protesto contra a miséria, extrapola seu objetivo longínquo – libertação do homem de suas preocupações materiais – para se tornar uma imagem obsessiva no imediato. Entre o amor e a coleta automática de lixo a juventude de todos os países fez sua escolha e prefere a coleta de lixo. Uma reviravolta completa do espírito (mente) tornou-se indispensável, pelo desvelamento dos desejos esquecidos e a criação de desejos inteiramente novos. E por uma propaganda intensiva em favor destes desejos. (Gilles Ivain, Formulaire pour un urbanisme nouveau, IS, n° 1, p. 17-18, 1958, minha tradução)
Fundador do movimento, Debord publica, nesse primeiro número, um pequeno texto sobre a revolução cultural, que não se refere à China mas à decadência das velhas estruturas culturais européias ante os novos acontecimentos, no qual ele responde a Henri Lefebvre (que, aliás, era o único intelectual do establishment, amigo de Debord, tolerado pelos situacionistas), rebatendo a crítica que este fazia aos situacionistas como “românticos-revolucionários”. Nesse texto, que fará estragos nos meios da esquerda,
Debord propõe uma associação internacional de situacionistas que seria uma “união dos trabalhadores de um setor avançado da cultura” ou como uma “tentativa de organização de revolucionários profissionais da cultura” (Debord, Thèses sur la révolution culturelle, IS, n° 1, p. 21, 1958). Encontramos, ainda nesse primeiro número, um artigo do artista plástico dinamarquês Asger Jorn sobre a automação, que coloca, de modo embrionário, muitas das questões relacionadas com o avanço técnico ainda hoje não resolvidas, alertando contra os perigos de um progresso tecnológico não discutido e não apropriado conscientemente pela sociedade:
Se, como pretendem os cientistas e técnicos, a automação é um novo meio de libertação do homem, ela deve implicar uma superação das atividades humanas precedentes. Isto obriga a imaginação ativa do homem a superar a realização da própria automação. Onde encontramos tais perspectivas, que fazem do homem mestre e não escravo da automação?. (Asger Jorn, Les situacionnistes et l’automation, IS, n° 1, p. 22-23, 1958, minha tradução, grifo meu)
A preocupação com os perigos e benesses trazidos por tecnologias novas e de poder desconhecido se revela ainda maior quando se relaciona com a cultura e arte e, por conseqüência, com a política. O cinema é percebido como o “substituto passivo da atividade artística unitária que se tornou possível”, pois ele traz “poderes inéditos à força reacionária e gasta do espetáculo sem participação”. O revolucionário deve então, ao mesmo tempo, combater no cinema a “tendência a constituir a anticonstrução de situações (a construção de ambiência do escravo, a sucessão de catedrais)” e reconhecer os aportes positivos das novas aplicações técnicas. Trata-se de se apropriar do cinema, visto como meio extremamente importante, pois ele traz “meios superiores de influência” e por isso acarreta necessariamente seu controle pela classe dominante. O anticinema de Debord é talvez o melhor exemplo prático desta vontade radical de denunciar a dimensão alienante do cinema industrial, baseado na passividade distraída dos espectadores. É provável que ele tenha sido o primeiro cineasta maldito, se não o único.
No cinema, Debord sempre se propôs a não fazer nada do que nele se fazia, e de fazer tudo o que aí não se fazia. Durante todo um período de vinte e cinco anos, cada um de seus filmes, bem concebidos para agravar seu caso, confirmou esta detestável ambição. [...] O negativo tendo sido menos experimentado no cinema que em outras partes, talvez não tivesse existido nenhum cineasta maldito se Debord não tivesse realizado seus filmes. (Comentário irônico na “orelha” do livro Oeuvres cinématographiques complètes, Debord, 1978)
A recusa do trabalho e a luta revolucionária, em termos diametralmente opostos aos da esquerda organizada, baseadas na afirmação da subjetividade e na prática cultural, revelam suas origens surrealistas e aproximam os situacionistas do existencialismo, que eles criticam e desprezam, mas do qual representam bem uma versão mais radical, pois compartilham com os existencialistas uma oposição extremada da subjetividade do sujeito à objetividade do mundo. O grande interesse das primeiras propostas dos letristas, retomadas e aprofundadas pelos situacionistas, está no fato de que eles estão entre os primeiros a perceber questões inéditas colocadas pelo progresso técnico e pelas transformações do trabalho, criando maior tempo livre e uma nova dimensão da vida social: o lazer, em sua dupla acepção de tempo livre e divertimento. A questão estava em saber, ante as possibilidades da técnica, se o homem poderia viver plenamente seu tempo livre, realizando seus desejos e exercendo sua criatividade, ou se, ao contrário, os meios técnicos serviriam para aprofundar a exploração e criar novas formas de alienação. Revelando uma filiação hegeliana que os sustenta na crença idealista de uma revolução nascida na dimensão cultural, impossível de ser pensada no quadro do marxismo ortodoxo vigente na época, que reduzia a cultura a mera superestrutura determinada pela economia, os situacionistas se propõem a transformar o mundo com as armas da arte, incluídas as novas mídias:
Evidentemente, a decadência das formas artísticas, embora se traduza pela impossibilidade de sua renovação criativa, não acarreta imediatamente seu verdadeiro desaparecimento prático. Elas podem se repetir com diversas nuances. Mas tudo revela o “abalo deste mundo”, para falar como Hegel no prefácio da Fenomenologia do espírito. [...] Nós devemos ir mais longe, sem nos vincularmos a nada da cultura moderna, nem tampouco de sua negação. Nós não queremos trabalhar para o espetáculo do fim do
mundo, mas para o fim do mundo do espetáculo. (IS, n° 3, p. 8, 1959, minha tradução, grifo meu)
Os situacionistas se colocam contra a cultura em sua forma convencional, mas não contra a cultura em si. Ao contrário, eles estão a favor ao outro lado da cultura: “Não antes dela, mas depois. Dizemos que é necessário realizá-la, superando-a enquanto esfera separada” (IS, n° 8, 1963, p. 21). Os situacionistas não querem pôr a poesia a serviço da revolução, como propõe o realismo-socialista, mas “pôr a revolução a serviço da poesia”, porém de uma poesia sem poemas, já que a obra de arte deixa de ter sentido na sociedade sem classes e sem trabalho, de realização dos desejos, sonhada por eles. Isso lhes valeu críticas de todos os lados, presentes e póstumas, como a de Anselm Jappe (1999):
No entanto, é curioso observar o quanto a condenação situacionista da obra de arte se assemelha à concepção psicanalítica que vê na obra a sublimação de um desejo irrealizado. Segundo os situacionistas, dado que o progresso eliminou todo o entrave à realização dos desejos, a arte perde sua função, pois esta é, de qualquer modo, inferior aos desejos. Este é, sem dúvida, um dos pontos mais discutíveis da teoria situacionista da arte. (p. 996)
A sociedade do espetáculo: a atualidade do conceito
A completa liberdade de expressão se manifesta na apropriação das paredes tanto quanto na livre discussão em todas as assembléias. Cartazes de todas as tendências, até os maoístas, coabitavam nas paredes sem serem rasgados ou recobertos: somente os estalinistas do PCF preferiam abster-se. As pichações apareceram um pouco mais tarde. Nesta primeira noite, a primeira pichação, feita sobre um afresco – a famosa fórmula “A humanidade só será feliz no dia em que o último burocrata tiver sido enforcado com as tripas do último capitalista” – levanta alguma agitação. Após um debate público, a maioria decidiu apagá-la. O que foi feito. (Viénet, 1968, p. 75, minha tradução, grifo meu)
René Viénet, situacionista muito ativo no movimento das ocupações, explica em nota de rodapé ter sido ele mesmo o autor dessa primeira pichação, que, de tão revolucionária, foi censurada e apagada por seus próprios companheiros de luta. Viénet ressalta o caráter inovador dessa prática, o “desvio” (détournement) de obras famosas com a inscrição de slogans ou desenhos que as ressignificam, atribuindo-lhes novo sentido revolucionário contraditório com seu sentido original. Tal prática, originária do surrealismo (sob o nome de colagem, por exemplo, desenhar um bigode no retrato da Mona Lisa), foi muito controvertida no primeiro momento de Maio/1968, mas abriu caminho para uma “tão fértil atividade”, e é hoje prática comum tanto nas artes estabelecidas como nos grafites de rua (Viénet, 1968, p. 75). Os situacionistas propunham formas novas de luta que escapavam dos padrões tradicionais da panfletagem política e tinham sua origem nas artes plásticas. Um texto publicado na revista Internationale Situationniste n° 11, de outubro de 1967, com o título Les situationnistes et les nouvelles formes d’action contre la politique et l’art, assinado por René Viénet, propõe “ligar a crítica teórica da sociedade moderna à crítica em atos desta sociedade [...] desviando as próprias propostas do espetáculo, daremos as razões das revoltas de hoje e de amanhã”. O autor fornece alguns exemplos: experimentação do “desvio” de fotonovelas ou de fotos “ditas pornográficas”, substituindo os textos dos “balões” por textos subversivos; promoção da guerrilha nos mass media, considerada mais eficaz do que a guerrilha urbana; produção de comics situacionistas, já que as histórias em quadrinhos são a única forma realmente popular de literatura; realização de filmes situacionistas, pois o cinema é o meio de expressão mais novo da época, sendo pois preciso se apropriar das técnicas dessa nova linguagem, especialmente seus exemplos mais bem-sucedidos, como os cinejornais, anúncios publicitários e traillers. Dois livros de autores situacionistas publicados no ano anterior foram retomados pelos estudantes como fonte de inspiração para palavras de ordem a serem gritadas nas assembléias permanentes e pichadas nas paredes e muros de Paris e das principais universidades francesas: La société du spectacle, de Debord, e Lê traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations, de Raoul Vainegem. Além desses textos fundadores, foram também importantes outros textos publicados na revista Internationale Situationniste (IS), especialmente um longo panfleto de mais de 20 páginas, publicado em 1966 e republicado muitas vezes nos anos seguintes, escrito por membros da Internacional Situacionista e por estudantes de Strasbourg, cujo longo título diz muito de suas intenções revolucionárias: De la misère en millieu étudiant considérée sous ses aspects économomique, politique, psychologique, sexuel et notamment intellectuel, et de quelques moyens pour y remédier (“Sobre a miséria no meio estudantil, considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e notadamente intelectual, e sobre alguns meios para remediar isto”) (IS, n° 10, 1966).
Internacional Situacionista (1958/1969)
O programa da Internacional Letrista, apresentado no primeiro número da revista Potlatch (1954), é claramente radical: “Nós trabalhamos para o estabelecimento consciente e coletivo de uma nova civilização”. Essa mesma proposta revolucionária será confirmada mais tarde (1957) por Debord e seus companheiros, na formação da Internacional Situacionista: “Pensamos que antes de mais nada é preciso mudar o mundo. Queremos a mudança mais libertadora da sociedade e da vida nas quais estamos presos” (Rapport sur la construction des situations, junho de 1957). Os situacionistas orientam suas pesquisas e reflexões na perspectiva de uma superação da arte, levando às últimas conseqüências as propostas das vanguardas futurista, dadaísta e surrealista. Como esses movimentos, pregam o fim das práticas artísticas clássicas e a eliminação de todos os cânones que as estruturavam. Buscam realizar a arte na vida, ou seja, superar a própria arte e fazer dela uma prática participativa, eliminando a separação entre artistacriador e sujeito-espectador. Isso os levou a conceber, com base em pesquisas “psicogeográficas”, propostas de um urbanismo experimental que possibilitasse a experimentação de comportamentos lúdicos e a construção de situações efêmeras e poéticas. Tal como os dadaístas e os surrealistas, os situacionistas usam e abusam de armas como o escândalo, a carta de insulto, as expulsões e as rupturas violentas. São grandes utilizadores da pichação como forma de divulgar seus slogans, entre os quais cabe lembrar um de autoria do próprio Debord, inscrito por ele mesmo numa parede da rua de Seine, em Paris: “Não trabalhem nunca”. Assim, embora sejam poucos e marginalizados dos fóruns estabelecidos da cultura e das artes, os situacionistas conseguem significativa repercussão de suas idéias, especialmente entre os jovens intelectuais e estudantes revoltados com o autoritarismo político e a invasão do American way of life. Os situacionistas não se limitam a propor uma revolução meramente política ou mesmo puramente cultural: pretendem e lutam por uma nova civilização e uma transformação radical das sociedades humanas, uma “real mutação antropológica” (Jappe, 1999, p. 90). Nesse sentido, visam atuar na transformação da vida cotidiana e da cultura, fazendo da “batalha do lazer” o palco privilegiado da luta de classe. A participação de todos na construção das situações se opõe
ao espetáculo e à não-participação que ele implica. As possibilidades infinitas de desenvolvimento da consciência humana, uma vez libertada da alienação do trabalho, estão no centro das preocupações dos pensadores mais avançados e revolucionários da época e têm sua origem em Marx, como bem revela a seguinte afirmação dos situacionistas: “Numa sociedade sem classes, pode-se dizer, não haverá mais pintores, mas situacionistas que, entre outras coisas, pintarão” (Debord, 1957), paráfrase de um trecho da Ideologia alemã: “Numa sociedade comunista, não há pintores, mas, no máximo, seres humanos que, entre outras coisas, pintam” (apud Jappe, 1999, p. 90). Os situacionistas se exprimem sobretudo através da revista Internationale Situationniste, cujo primeiro número, de junho de 1958, começa com uma crítica acerca do surrealismo, segundo eles “recuperado e utilizado pelo sistema repressivo que ele combatia”. Essa crítica se explicita na análise dos aspectos formais, recuperados e transformados em apelos mercadológicos (símbolos da mercadoria) pelo sistema, e na denúncia do abandono dos ideais revolucionários de mudança radical do mundo. No centro da discussão estão os avanços técnicos e científicos.
O mundo moderno alcançou o avanço formal que o surrealismo tinha sobre ele. As manifestações da novidade (do novo) nas disciplinas que progridem efetivamente (todas as técnicas científicas) tomam uma aparência surrealista: fez-se escrever, em 1955, por um robô da Universidade de Manchester, uma carta de amor que poderia passar por um ensaio de escrita automática de um surrealista medíocre. Mas a realidade que comanda esta evolução é que, uma vez que a revolução não foi feita, tudo o que constituiu para o surrealismo uma margem de liberdade foi retomado e utilizado pelo mundo repressivo que ele combatia.
(Amarga vitória do surrealismo, IS, n° 1, p. 3, 1958).
Na mesma revista, cujas regras de ouro eram a redação coletiva e o estímulo à livre reprodução de seus textos, os situacionistas atacam tanto a rebeldia da juventude americana e escandinava que se comprazem no consumo das formas falsamente “surrealistas” (leia-se revolucionárias), quanto os intelectuais dessa geração, “abusivamente chamada de existencialista pelos jornais”, que incluía os nomes famosos de Françoise Sagan, Roger Vadim e Robbe-Grillet, entre outros, considerados pelos situacionistas como ilustrações excessivas da resignação (O ruído e o furor, IS, n° 1, p. 4, 1958). Segundo eles, a juventude, que adere à continuação do surrealismo (cujo sucesso burguês foi deformador), não pode superar a contradição entre a exigência revolucionária e a imobilidade desse pseudo-sucesso e se “refugia nos aspectos reacionários que o surrealismo trazia em si desde sua formação (magia, esoterismo, crença numa idade de ouro que poderia estar fora da história etc.)”. Trata-se, pois, de ir além do surrealismo e fazer a revolução, não só das formas das artes, mas das formas da vida. Trata-se de identificar os desejos e lutar para realizá-los numa perspectiva coletiva onde todos são criadores e parceiros na construção de situações, conceito central no projeto situacionista. A partir da crítica do “funcionalismo, que é uma expressão necessária do avanço técnico e que busca eliminar inteiramente o jogo” (o lúdico, o brinquedo), e do design industrial (“que estimula a criação artística aplicada a novos desenhos de geladeiras”), os situacionistas fazem a crítica da vida cotidiana e propõem,
contra todas as formas regressivas do jogo e das artes, realizar as formas experimentais de um jogo revolucionário, cujas principais definições são apresentadas no primeiro número da revista Internationale Situationniste:
• Situação construída: Momento da vida, concreta e deliberadamente construída pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de eventos.
• Situacionista: O que se relaciona com a teoria ou a atividade prática de uma construção das situações. Aquele que se dedica a construir situações. Membro da Internacional Situacionista.
• Psicogeografia: Estudo dos efeitos precisos do meio geográfico conscientemente organizado ou não, que age diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos.
• Deriva: Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida através de ambiências variadas. Designa também a duração do exercício contínuo desta experiência.
•Urbanismo unitário: Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que se conjugam na construção integral de um meio ambiente dinamicamente ligado a experiências de comportamento.
• Cultura: Reflexo e prefiguração, em cada momento histórico, das possibilidades de organização da vida cotidiana; complexo da estética, dos sentimentos e dos costumes, pelo qual uma coletividade reage sobre a vida que lhe é objetivamente dada por sua economia.
• Decomposição: Processo pelo qual as formas culturais tradicionais destruíram a si próprias, sob o efeito do aparecimento de meios superiores de dominação da natureza, permitindo e exigindo construções culturais superiores. Distingue-se entre uma fase ativa de decomposição, demolição efetiva das velhas superestruturas – que cessa nos anos 30 –, e uma fase de repetição, que domina desde então. O atraso na passagem da decomposição a construções novas está ligado ao atraso na liquidação revolucionária do capitalismo (IS, n°1, p. 13, 1958). Ainda nesse primeiro número da revista IS, os situacionistas atacam as características alienantes da vida nas grandes cidades propondo um novo urbanismo e uma arquitetura voltados para a transformação radical da vida cotidiana. Os avanços técnicos não são percebidos como entrave, muito pelo contrário, eles devem estar a serviço da mudança. Seus gritos de alerta contra os perigos da banalização, lançados nos anos 1950, tomam agora contornos premonitórios, como é possível perceber no texto a seguir, que retoma um relatório adotado pela Internacional Letrista, já em 1953:
Uma doença mental invadiu o planeta: a banalização. Todos estão hipnotizados pela produção e pelo conforto – esgotos, elevador, banheiros, máquina de lavar. Este estado de fato, que nasceu de um protesto contra a miséria, extrapola seu objetivo longínquo – libertação do homem de suas preocupações materiais – para se tornar uma imagem obsessiva no imediato. Entre o amor e a coleta automática de lixo a juventude de todos os países fez sua escolha e prefere a coleta de lixo. Uma reviravolta completa do espírito (mente) tornou-se indispensável, pelo desvelamento dos desejos esquecidos e a criação de desejos inteiramente novos. E por uma propaganda intensiva em favor destes desejos. (Gilles Ivain, Formulaire pour un urbanisme nouveau, IS, n° 1, p. 17-18, 1958, minha tradução)
Fundador do movimento, Debord publica, nesse primeiro número, um pequeno texto sobre a revolução cultural, que não se refere à China mas à decadência das velhas estruturas culturais européias ante os novos acontecimentos, no qual ele responde a Henri Lefebvre (que, aliás, era o único intelectual do establishment, amigo de Debord, tolerado pelos situacionistas), rebatendo a crítica que este fazia aos situacionistas como “românticos-revolucionários”. Nesse texto, que fará estragos nos meios da esquerda,
Debord propõe uma associação internacional de situacionistas que seria uma “união dos trabalhadores de um setor avançado da cultura” ou como uma “tentativa de organização de revolucionários profissionais da cultura” (Debord, Thèses sur la révolution culturelle, IS, n° 1, p. 21, 1958). Encontramos, ainda nesse primeiro número, um artigo do artista plástico dinamarquês Asger Jorn sobre a automação, que coloca, de modo embrionário, muitas das questões relacionadas com o avanço técnico ainda hoje não resolvidas, alertando contra os perigos de um progresso tecnológico não discutido e não apropriado conscientemente pela sociedade:
Se, como pretendem os cientistas e técnicos, a automação é um novo meio de libertação do homem, ela deve implicar uma superação das atividades humanas precedentes. Isto obriga a imaginação ativa do homem a superar a realização da própria automação. Onde encontramos tais perspectivas, que fazem do homem mestre e não escravo da automação?. (Asger Jorn, Les situacionnistes et l’automation, IS, n° 1, p. 22-23, 1958, minha tradução, grifo meu)
A preocupação com os perigos e benesses trazidos por tecnologias novas e de poder desconhecido se revela ainda maior quando se relaciona com a cultura e arte e, por conseqüência, com a política. O cinema é percebido como o “substituto passivo da atividade artística unitária que se tornou possível”, pois ele traz “poderes inéditos à força reacionária e gasta do espetáculo sem participação”. O revolucionário deve então, ao mesmo tempo, combater no cinema a “tendência a constituir a anticonstrução de situações (a construção de ambiência do escravo, a sucessão de catedrais)” e reconhecer os aportes positivos das novas aplicações técnicas. Trata-se de se apropriar do cinema, visto como meio extremamente importante, pois ele traz “meios superiores de influência” e por isso acarreta necessariamente seu controle pela classe dominante. O anticinema de Debord é talvez o melhor exemplo prático desta vontade radical de denunciar a dimensão alienante do cinema industrial, baseado na passividade distraída dos espectadores. É provável que ele tenha sido o primeiro cineasta maldito, se não o único.
No cinema, Debord sempre se propôs a não fazer nada do que nele se fazia, e de fazer tudo o que aí não se fazia. Durante todo um período de vinte e cinco anos, cada um de seus filmes, bem concebidos para agravar seu caso, confirmou esta detestável ambição. [...] O negativo tendo sido menos experimentado no cinema que em outras partes, talvez não tivesse existido nenhum cineasta maldito se Debord não tivesse realizado seus filmes. (Comentário irônico na “orelha” do livro Oeuvres cinématographiques complètes, Debord, 1978)
A recusa do trabalho e a luta revolucionária, em termos diametralmente opostos aos da esquerda organizada, baseadas na afirmação da subjetividade e na prática cultural, revelam suas origens surrealistas e aproximam os situacionistas do existencialismo, que eles criticam e desprezam, mas do qual representam bem uma versão mais radical, pois compartilham com os existencialistas uma oposição extremada da subjetividade do sujeito à objetividade do mundo. O grande interesse das primeiras propostas dos letristas, retomadas e aprofundadas pelos situacionistas, está no fato de que eles estão entre os primeiros a perceber questões inéditas colocadas pelo progresso técnico e pelas transformações do trabalho, criando maior tempo livre e uma nova dimensão da vida social: o lazer, em sua dupla acepção de tempo livre e divertimento. A questão estava em saber, ante as possibilidades da técnica, se o homem poderia viver plenamente seu tempo livre, realizando seus desejos e exercendo sua criatividade, ou se, ao contrário, os meios técnicos serviriam para aprofundar a exploração e criar novas formas de alienação. Revelando uma filiação hegeliana que os sustenta na crença idealista de uma revolução nascida na dimensão cultural, impossível de ser pensada no quadro do marxismo ortodoxo vigente na época, que reduzia a cultura a mera superestrutura determinada pela economia, os situacionistas se propõem a transformar o mundo com as armas da arte, incluídas as novas mídias:
Evidentemente, a decadência das formas artísticas, embora se traduza pela impossibilidade de sua renovação criativa, não acarreta imediatamente seu verdadeiro desaparecimento prático. Elas podem se repetir com diversas nuances. Mas tudo revela o “abalo deste mundo”, para falar como Hegel no prefácio da Fenomenologia do espírito. [...] Nós devemos ir mais longe, sem nos vincularmos a nada da cultura moderna, nem tampouco de sua negação. Nós não queremos trabalhar para o espetáculo do fim do
mundo, mas para o fim do mundo do espetáculo. (IS, n° 3, p. 8, 1959, minha tradução, grifo meu)
Os situacionistas se colocam contra a cultura em sua forma convencional, mas não contra a cultura em si. Ao contrário, eles estão a favor ao outro lado da cultura: “Não antes dela, mas depois. Dizemos que é necessário realizá-la, superando-a enquanto esfera separada” (IS, n° 8, 1963, p. 21). Os situacionistas não querem pôr a poesia a serviço da revolução, como propõe o realismo-socialista, mas “pôr a revolução a serviço da poesia”, porém de uma poesia sem poemas, já que a obra de arte deixa de ter sentido na sociedade sem classes e sem trabalho, de realização dos desejos, sonhada por eles. Isso lhes valeu críticas de todos os lados, presentes e póstumas, como a de Anselm Jappe (1999):
No entanto, é curioso observar o quanto a condenação situacionista da obra de arte se assemelha à concepção psicanalítica que vê na obra a sublimação de um desejo irrealizado. Segundo os situacionistas, dado que o progresso eliminou todo o entrave à realização dos desejos, a arte perde sua função, pois esta é, de qualquer modo, inferior aos desejos. Este é, sem dúvida, um dos pontos mais discutíveis da teoria situacionista da arte. (p. 996)
A sociedade do espetáculo: a atualidade do conceito
As idéias revolucionárias discutidas à exaustão nas intermináveis reuniões situacionistas iriam fazer brotar do gênio de Debord uma das obras mais importantes para a compreensão do mundo ocidental, no final do século XX. Debord, intelectual “maldito”, cineasta radical do anticinema, filósofo das “situações e “doutor de nada”, escreveu, aos 26 anos, A sociedade do espetáculo, na qual prenuncia o século XXI, povoado de máquinas “inteligentes” que nos perturbam. A sociedade do espetáculo (1967)1 condensa, em poucas páginas, na forma de aforismos, num estilo impecavelmente elegante e claro, inspirado nos filósofos moralistas e nos memorialistas do século XVII, uma reflexão original sobre a sociedade contemporânea, que revisita, “desvia” e ressignifica – radicalizando – as categorias fundamentais do marxismo hegeliano dos jovens Marx e Lukács: alienação, falsa consciência, reificação, fetichismo da mercadoria, forma-mercadoria, valor de troca, trabalho abstrato. Trata-se, para Debord, de levar às últimas conseqüências a crítica ao marxismo oficial (dos partidos, das universidades), preso na armadilha estruturalista do determinismo econômico, que acaba por aceitar como “natural” a autonomização da economia que submete a vida humana à sua lógica, que modela todas as esferas do mundo vivido. Debord pretende construir uma alternativa revolucionária, ir além do marxismo ortodoxo, com uma teoria que supere a separação entre a teoria e a prática.
Com os instrumentos de Marx e de Lukács, Debord tentará, na seqüência, construir uma teoria que possa compreender e combater essa forma particular de fetichismo que nasceu nesse meio tempo, que ele chama de espetáculo. (Jappe, 1999, p. 17)
Jappe ressalta também que, para entender Debord, é preciso “analisar as fontes, às quais deve mais do parece à primeira vista”. De fato, a inspiração marxiana do pensamento de Debord é declarada logo no primeiro aforismo de A sociedade do espetáculo:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação. (SdE, §1)
Tal afirmação categórica é simplesmente uma paráfrase da primeira frase de O capital: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como ‘imensa acumulação de mercadorias’”, na qual Marx (1983, v. 1, p. 43) se refere à sua obra anterior, Contribuição à crítica da economia política. Esse início audacioso revela de saída o caráter do personagem, inclinado à provocação intelectual e ao radicalismo das opiniões, mas também diz muito da época e da ambiência dos anos 1950 e 1960, de progresso técnico, econômico e social e muita agitação política, quando tudo parecia possível, quando a irreverência e a iconoclastia começavam a extrapolar os limites das vanguardas artísticas para inspirar a rebeldia de grande parte da juventude na Europa, nos Estados Unidos e nos países do Terceiro Mundo.
Sua inspiração marxista, no entanto, está na contracorrente tanto do marxismo dos partidos comu nistas, que se havia tornado a ideologia legitimadora da modernização tardia do capitalismo de Estado dos regimes totalitários do leste europeu, quanto dos outros partidos de esquerda, críticos do estalinismo soviético, mas tão ortodoxos e ideológicos quanto os partidos comunistas (Maoísmo, Trotskismo etc.). Debord se colocava também contra os universitários de todas as correntes da esquerda que se deixavam fascinar pelo marxismo científico, irrefutável porque científico, professado nas academias, a quem os situacionistas dirigiam suas mais acerbas críticas. Alain Touraine, Abrahan Moles, Edgar Morin e, evidentemente, Louis Althusser são alguns dos nomes muito conhecidos hoje e que na época eram os alvos preferidos das flechas teóricas dos situacionistas, que os acusavam de defender concepções estruturalistas negadoras da história e de desfrutar as benesses do estruturalismo oficial, entre outros pecados menores. Debord vai concentrar seus esforços teóricos num tema central da obra de Marx, deliberadamente ignorado pelo marxismo oficial: a crítica radical ao fetichismo da mercadoria, conceito tão difícil de entender quanto de operacionalizar como palavra de ordem de mobilização das massas trabalhadoras. O conceito de espetáculo é central para compreender essa proposta teórica que se quer revolucionária. Nele estão contidas as idéias fundamentais de Debord sobre a sociedade contemporânea: a separação, o afastamento do mundo vivido em imagens que o representam, criando um mundo de imagens autonomizadas, que escapam ao controle do homem, da mesma forma que, segundo Sfez (1994), a criatura (TICs) escapa ao controle do criador. O espetáculo é uma inversão da vida e, enquanto tal, “é o movimento autônomo do nãovivo” (SdE, § 2).
A separação é outro dos conceitos fundamentais da teoria do espetáculo. Da mesma forma que o trabalhador, separado não só do produto de seu trabalho como do processo de produção, perde a visão unitária sobre sua atividade, o indivíduo perde, na sociedade do espetáculo, a visão da totalidade, da unidade do mundo. Segundo Debord, a separação faz parte dessa unidade, pois a própria “práxis social global se cindiu em realidade e imagem” (SdE, § 7). Essa cisão faz o espetáculo aparecer como finalidade do modo de produção reinante, quando na verdade o espetáculo é muito mais seu modo de funcionamento: o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens (SdE, § 4).
A vitrine do espetáculo, sua face mais visível, seu monólogo ininterrupto e auto-elogioso, é composta por esse complexo sistema de mídias que Debord pressentia como modelo socialmente dominante, como “afirmação onipresente” da lógica da produção industrial e do consumo de massa, “presença permanente” das justificações do sistema ocupando o tempo livre do indivíduo, das mais variadas formas de produtos espetaculares: informação, lazer, publicidade (SdE, § 6). O conceito de “sociedade do espetáculo” não deve, pois, ser entendido como uma mera referência aos meios de comunicação de massa, que Debord considera como “o aspecto restrito” do espetáculo, sua “manifestação superficial mais esmagadora”. Essa manifestação, todavia, faz parte da totalidade e é a mais espetacular e, por isso, parece invadir a sociedade como “instrumentação que convém a seu automovimento total” (SdE, § 24).
A comunicação unilateral, típica desses meios, é absolutamente funcional ao sistema, à lógica dominante, de tal modo que a satisfação das necessidades sociais, a “administração desta sociedade e todo o contato entre os homens já não se podem exercer senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo” (SdE, § 24).
O conceito de espetáculo foi gestado na Internacional Situacionista nos anos 1950 e aparece pela primeira vez na revista em 1958, influenciado pela leitura surrealista e vanguardista do mundo e por propostas revolucionárias: a construção de situações – novas – de arte como participação, tendo superado a separação artista/espectador – começaria depois do desmoronamento da noção de espetáculo, cujo princípio está ligado ao conceito de alienação, ou seja, de não-participação.
A ressignificação do conceito marxista de alienação é central para a compreensão do que é espetáculo para Debord e os situacionistas, que destacam a evolução histórica desse fenômeno, caracterizado como uma degradação que vai do “ser” pré-moderno ao “ter” capitalista, típico da modernidade, para chegar ao “parecer” do espetáculo. Essa evolução significa o empobrecimento da vida cotidiana (mundo vivido), fragmentado em esferas cada vez mais separadas. Tudo o que antes era vivido afasta-se em imagens e representações. Ficam muito claros os tons idealistas do pensamento de Debord: de um lado por idealizar um passado não-alienado, uma idade de ouro, e de outro, por buscar inspiração e argumentos nos textos mais hegelianos de Marx, justamente aqueles considerados “filosóficos”, logo, pouco científicos, pelos exegetas do marxismo (SdE, § 1, 30, 32). No espetáculo das mídias, as vedetes têm a função de viver e representar todos os aspectos importantes da vida dos quais os indivíduos reais estão separados, incapacitados de viver diretamente. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social” (SdE, § 41), ou seja, a lógica mercantil tomou conta de todas as dimensões da vida humana:
“Neste ponto da ‘segunda revolução industrial’, o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada” (idem).
A inspiração em Lukács é clara na reapropriação das categorias essenciais de História e consciência de classe (1960), a obra mestra do jovem Lukács: totalidade, consciência de classe, fetichismo da mercadoria, falsa consciência e separação. A idéia de separação, fundamental em Lukács, é característica básica da sociedade do espetáculo e corresponde à proposta dos situacionistas de superação da arte como dualidade entre criador e espectador. O espetáculo é um fenômeno total, que só pode ser compreendido pela categoria da totalidade, interpretação hegeliana da dialética, em oposição a uma concepção mais “científica” (estruturalista ou positivista) do materialismo dialético, que enfoca mais a determinação econômica, entendida como uma contradição entre estruturas. Lukács é retomado pelos situacionistas, que enfatizam as categorias de falsa consciência e reificação, que Lukács relaciona, de forma mais clara que Marx, com a divisão do trabalho, agora tornada muito mais complexa e planejada, com o taylorismo e o fordismo. O “otimismo ingênuo de Lukács” inspira os jovens intelectuais situacionistas, pois lhes permite construir uma utopia: a idealização de um sujeito irredutível à reificação, capaz de se apropriar das técnicas e colocá-las a serviço da poesia e da arte vividas por todos os seres humanos. O sonho do sujeito emancipado, reatualizado e radicalizado pelos situacionistas, um dos eixos básicos da teoria do espetáculo de Debord, inscreve-se na “linha de continuidade e da autocrítica do iluminismo, isto é, da “dialética do iluminismo” (Jappe, 1999, p. 201). A razão iluminista, no entanto, que devia libertar os homens do medo e dos mitos e torná-lo soberano, isto é, emancipado, tinha se transformado em razão instrumental, submetendo o espírito humano ao trabalho alienado. Trata-se, pois, de superar as novas formas de alienação, criando novas formas de interação, idéias que remetem a Habermas e à sua proposta de ação comunicativa como razão alternativa à lógica instrumental do capital. Além do jovem Lukács, essa filiação idealista e hegeliana de Debord o aproxima de outro pensador que, na mesma época, construía uma visão semelhante da sociedade industrial: Herbert Marcuse, um dos membros da Escola de Frankfurt e filósofo inspirador do movimento hippie americano. O indivíduo típico do capitalismo, o homem unidimensional de Marcuse – completamente determinado pela lógica do trabalho e estabelecendo “relações libidinosas com a mercadoria” como forma de realizar a felicidade e satisfazer instintos –, está terrivelmente próximo do indivíduo preso a papéis falaciosos e miseráveis, dos indivíduos isolados e das massas atomizadas que são a base da sociedade do espetáculo (SdE, § 60, 62 e 221; Marcuse, 1968).
No centro da concepção de espetáculo está a tecnologia, com seus desafios à criação artística e científica e seu poder potencializador da separação generalizada, típica do espetáculo e fundamento da alienação – nexo a fazer com Habermas (1973, 1976), que na mesma época, na Alemanha, buscava estabelecer as relações entre interesse e conhecimento e entre ideologia, ciência e técnica e construir as bases de sua teoria da ação comunicativa. A crença na possibilidade de dominar (maîtriser) o avanço técnico e colocá-lo a serviço do desenvolvimento humano pleno, emancipado, acha seu fundamento na crença em um sujeito capaz de escapar da alienação, inspirada em Lukács. A crítica de Jappe, trinta anos depois, é arrasadora, considerando o incrível avanço das TICs:
Parece ausente de História e consciência de classe, bem como de A Sociedade do espetáculo, a suspeita de que o sujeito possa ser corroído em seu próprio interior pelas forças da alienação que, condicionando também o inconsciente dos sujeitos, os faz identificarem-se ativamente com o sistema que os contém. (1999, p. 46)
Embora muitos situacionistas acreditassem que bastaria os sujeitos interagirem para construir o consenso
revolucionário, Debord provavelmente é menos ingênuo e enfatizava o poder do espetáculo e de suas técnicas. Ele está longe, no entanto, de acreditar na potência autônoma da técnica: a separação entre a ação social real e sua representação cristalizada nas mídias não é, de modo nenhum, para Debord, uma conseqüência inexorável da evolução técnica, mas de uma certa apropriação de seus resultados: o poder econômico e político, isto é, o capitalismo e sua (nova) forma espetacular. O conceito de espetáculo se refere tanto à sociedade capitalista como à comunista, considerada pelos situacionistas como uma forma subdesenvolvida de capitalismo “de Estado”. Duas formas diferentes de espetáculo caracterizam uma e outra: o espetáculo difuso, típico das sociedades de consumo, e o espetáculo concentrado, dos países socialistas não-democráticos, seja o império soviético, sejam as novíssimas repúblicas da África ou da Ásia. No espetáculo difuso,
[...] o capitalismo, chegado à etapa da abundância das mercadorias, dispersa suas representações da felicidade e, pois, do sucesso hierárquico, em uma infinidade de objetos e gadgets que exprimem, real e ilusoriamente, signos de pertencimento a estratificações da sociedade de consumo [...]. O espetáculo dos objetos múltiplos que estão à venda convida a assumir papéis múltiplos, porque ele obriga cada um a se reconhecer, a se realizar, no consumo efetivo desta produção difundida por toda a parte. (IS, n° 10, p. 45, 1966)
Para ilustrar a idéia de espetáculo concentrado, os situacionistas, curiosamente, recorrem aos exemplos do Terceiro Mundo; não diretamente ao império soviético, mas a suas encarnações periféricas. Segundo eles:
Na zona subdesenvolvida do mercado mundial, reúne-se na ideologia e, no caso extremo, num só homem, tudo o que é garantido pelo estado como admirável, indiscutível, que se trata de aplaudir e de consumir passivamente. A fraca quantidade de mercadorias realmente disponíveis tende a reduzir este consumo a um puro olhar. A imagem do poder, na qual este olhar deve achar toda sua felicidade, é pois um conjunto das qualidades socialmente reconhecidas. Sukarno (o ditador indonésio) devia ser ao mesmo tempo um genial condutor do povo e um irresistível sedutor de cinema. (idem, p. 44)
Para Debord, a forma concentrada do espetáculo é típica do “capitalismo burocrático”, no qual a ditadra da economia não deixa “nenhuma escolha às massas exploradas”, devendo pois ser “acompanhada de violência”. Essa violência é simbólica quando o espetáculo apresenta a imagem imposta do bem que “concentra-se num único homem, que é a garantia de sua coesão totalitária”. Na falta de mercadorias a consumir, consome-se a imagem do líder, num sentido aceitável para a exploração absoluta: “Se cada chinês deve aprender Mao, e assim ser Mao, é que ele não tem mais nada para ser”. Por outro lado, ela baseia-se na violência física, como adverte Debord: “Lá onde domina o espetacular concentrado domina também a polícia” (SdE, § 64, grifo do autor). O espetacular difuso é baseado na satisfação “que a mercadoria abundante já não pode dar no uso” e que terá de ser buscada em signos abstratos de prestígio atribuídos a ela pela publicidade, nos quais se pode reconhecer a manifestação de “um abandono místico à transcendência da mercadoria” (SdE, § 67). O indivíduo reificado se perde nas relações animistas e íntimas com os objetos e o “fetichismo da mercadoria” se assemelha ao velho fetichismo religioso, com seus arrebatamentos e convulsões: “O único uso que ainda se exprime aqui é o uso fundamental da submissão” (idem). A sociedade hegemônica domina o planeta enquanto sociedade do espetáculo, impondo uma “divisão mundial das tarefas espetaculares” (SdE, § 57). Mesmo “lá onde a base material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social de cada continente”. Ou seja, nos países periféricos, sem mercadorias em abundância, o espetáculo confirma e reitera sem cessar a legitimidade daquela divisão mundial do trabalho, na qual esses países consomem mas não produzem objetos técnicos de que não precisam (idem). Com a fim da guerra fria, após a queda do império soviético e o triunfo do capitalismo, a hegemonia americana em sua fase pós-fordista vai impor um novo espetáculo: o espetacular integrado. Essa nova forma, Debord já a anunciava em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, quando ainda muitos intelectuais ocidentais acreditavam nas promessas de Gorbatchev de um comunismo mais humano. Ao tecer seus comentários sobre a sociedade do espetáculo,Debord (1997) define com clareza as principais características das sociedades contemporâneas de economia globalizada e cultura mundializada:
A sociedade modernizada até o estágio do espetacular integrado se caracteriza pela combinação de cinco aspectos principais: a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo. (p. 175)
Dessas características, as duas primeiras se referem à “base material da sociedade”, enquanto as outras três dizem respeito à dimensão cultural, que nos interessa mais. Debord prenuncia, nesse texto, a nova unidade básica a que tudo se resume, do capitalismo “pós”: a informação, que o autor trata em seus dois aspectos modernos; a informação secreta, dos “serviços de inteligência”, e a informação pública, construída e difundida pelos meios de comunicação de massa para formar a “opinião pública”, essa última tendo como função principal a desinformação:
Ao contrário do que seu conceito espetacular invertido afirma, a prática da desinformação só pode servir o Estado aqui e agora, sob sua direção direta, ou por iniciativa dos que defendem os mesmos valores. De fato, a desinformação reside em toda a informação existente; é como seu caráter principal. Ela só é nomeada quando é preciso manter, pela intimidação, a passividade. Quando a desinformação é nomeada, ela não existe. Quando existe, não é nomeada. (Debord, 1997, p. 204)
Com a alienação tendo sido sempre o foco de sua reflexão, Debord percebe com clareza as enormes potencialidades das mídias no sentido de potencializar ao máximo os aspectos enganadores, isto é, produtores de falsa consciência, da sociedade do espetacular integrado. Suas análises sobre o complô como modo regular de participação política efetiva e sobre as falsificações tão terrivelmente perfeitas que são mais verdadeiras que os originais, são aspectos importantes de seu pensamento crítico radical da sociedade contemporânea. Para demonstrar a atualidade e a importância desses conceitos, ele próprio retoma, 30 anos depois, a famosa paráfrase de Hegel encontrada no parágrafo 9 de A sociedade do espetáculo:
Invertendo uma frase famosa de Hegel, eu observava, já em 1967, que no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso. Os anos que transcorreram desde então mostraram os progressos desse princípio em cada domínio específico, sem exceção. (Debord, 1997, p. 206)
O que vale a pena resgatar do pensamento de Debord e das propostas situacionistas são algumas lições que nos orientem na compreensão do que deve ser a formação na sociedade atual e nosso papel nela.
Contra o realismo socialista, que “coloca a poesia a serviço da revolução”, nossos jovens situacionistas pregavam a apropriação revolucionária do cinema, da arquitetura, da fotografia, da arte e da técnica, armas da burguesia, não para colocá-las a serviço da revolução, mas para, por meio delas, pôr a revolução a serviço da poesia e da realização dos desejos.
Em tempos de realidade virtual, de ciberespaço e cultura da simulação, pode parecer ingênuo falar de revolução, especialmente tendo em vista a realidade da violência e da morte lá fora. Mas é justamente com base nessa realidade, que não conhecemos diretamente, que aparece com mais clareza a falsificação da vida social construída cuidadosamente pelo espetáculo integrado: a espetacularização do cotidiano nos reality shows (a banalização do banal, como diz Baudrillard, 2001); o jornalismo eletrônico (news all time, on line), uma proposta excessiva que lembra a pergunta tropicalista de Caetano Veloso: Quem lê tanta notícia?; os modelos de corpos perfeitos que mostram cruelmente a obsolescência dos nossos pobres corpos cansados de tanto nos adaptarmos às ergonomias maquínicas. Tudo parece concorrer para que a lógica do espetáculo triunfe. A não ser que dos instrumentos do espetáculo façamos ferramentas ou armas de formação, pela apropriação criativa das tecnologias que permita superar a separação entre o sujeito e sua representação. A não ser que, em algum lugar, alguns indivíduos em busca de emancipação levem a sério a advertência de Anselm Jappe (1999, p. 17): “É absolutamente vão estudar as obras de Debord se não se pretende, afinal, aboliro mercado e o Estado”.
MARIA LUIZA BELLONI, doutora em Ciências da Educação pela Universidade Paris V, com pós-doutorado em Comunicação
Política no CNRS (França) e em Educação a Distância pela Universidade Aberta de Portugal, é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o grupo de pesquisa
Comunic e o Laboratório de Novas Tecnologias. Últimas publicações: O que é mídia-educação (Autores Associados, 2001);
A formação na sociedade do espetáculo (coletânea organizada pela autora, Loyola, 2002) e Ensaio sobre a educação a distância no Brasil (Revista Educação e Sociedade, Cedes/Unicamp, nº 78, abril de 2002, p. 117-142). E-mail: malu@intergate.com.br
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Maria Luiza Belloni
136 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22
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Recebido em setembro de 2002
[1] [1]* A autora agradece ao professor Jean-Luc Rosinger pelo acesso à sua biblioteca situacionista.
Maria Luiza Belloni 122 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22
2 comentários:
intiresno muito, obrigado
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