Supercapitalismo: a transformação da sociedade
Por Ladislau Dowbor, novembro de 2009
O estudo de Robert Reich, “Supercapitalism”, é sem dúvida
mais ambicioso que seu anterior “O futuro do sucesso”. Agora ele foca o
conjunto das nossas relações econômicas, sociais e culturais, partindo
do mesmo capital de conhecimento que lhe foi dado nos anos que passou
tentando implementar uma política mais digna nas relações econômicas, no
quadro do governo Clinton. Reich sente na ponta dos dedos como se dão
as estruturas de poder realmente existentes no que chamou de
Supercapitalismo.
Este supercapitalismo, na realidade, é simplesmente o vale-tudo
econômico e financeiro que se instalou no quadro do que temos chamado de
globalização, e cuja lógica interna o autor destrincha de maneira
impressionantemente coerente. Não é aqui um comentário simpático sobre
um livro simpático: Reich nos traz realmente uma compreensão das
dinâmicas, com inúmeros exemplos práticos de empresas e comportamentos
bem documentados, e o tipo de desafios que enfrentamos torna-se muito
mais claro. Além do mais, Reich escreve de maneira excepcional: um
comentarista do San Francisco Magazine escreveu sobre esta obra: “Reich
faz parte de uma espécie muito exótica: um economista que sabe
escrever”.
Reich parte dos bastidores: não vai culpar Margareth Thatcher,
Ronald Reagan ou Milton Friedmann pelo fim dos Anos Dourados (1945-1975,
que ele aliás qualifica de anos “não tão dourados”), e sim vai buscar
as causas nas transformações tecnológicas, na globalização resultante, e
no vale-tudo das guerras intercorporativas que de certa forma aniquilou
as capacidades dos governos fazerem política econômica no sentido
amplo. E o autor analisa extensamente a base política para este
processo: o consumismo dos prósperos, que falam mal das truculências da
Wal-Mart mas aproveitam os seus preços, e o interesse dos investidores
que adoram o meio-ambiente mas compram ações da Exxon-Mobile porque
rendem mais.
Gerou-se assim um esquizofrenia social, na medida em que como
consumidores queremos o melhor negócio, como investidores o melhor
retorno, enquanto como cidadãos queremos uma sociedade decente e
sustentável. No centro da dinâmica, temos a apropriação dos políticos
através do financiamento privado das campanhas, e a monopolização da
agenda do congresso e do executivo pelos lobbies dos grandes grupos
empresariais, com as suas gigantescas campanhas (a indústria
farmacêutica contra a regulação dos medicamentos, da indústria da saúde
contra a saúde pública etc.).
O mecanismo de mercado, que sobrevivia nos “Anos não tão dourados”
mediante acordos relativamente equilibrados entre empresas, Estado e
sindicatos, alimentando uma ampla classe média, já não nos protege.
Wal-Mart (e outros tantos) esmagam os produtores ao usar o seu poder
para reduzir os prêços na origem, e navegam na satisfação dos
compradores e dos acionistas. Os jornais louvam. Os consumidores se
lambuzam. Gera-se uma classe de rentistas prósperos e a correspondente
concentração de renda. O meio-ambiente sofre e o consumismo leva a
impasses planetários. Mas o baile continua.
O espaço político local de regulação desaparece. “Pittsburgh já
abrigou as fábricas e operários que a Alcoa então precisava. Mas agora,
esses tipos de bens podem ser encontrados em qualquer lugar, porque as
cadeias globais de suprimentos da Alcoa os fornecem sem esforço nenhum.
Executivos da empresa negociam rotineiramente com o mundo todo. Tudo o
que a companhia precisa pode ser encontrado em Nova York, onde os
executivos da Alcoa têm acesso imediato aos melhores bancos, advogados,
consultores e profissionais de comunicação. Esse quadro de
especialistas, junto com o time da Alcoa, implanta uma cadeia global de
suprimentos e colocam no mercado os produtos e serviços da companhia de
forma a satisfazer os investidores (representados por Wall Street) e os
consumidores da Alcoa (representados pelo Wal-Mart e outras grandes
redes varejistas) na sua luta diária para obter grandes ganhos”. (119)
Reich, por experiência adquirida, mas também por pesquisa, tem
forte desconfiança de que os comportamentos irão mudar pela boa vontade
das corporações. Inclusive, segundo ele, porque os investidores “não
sabem ou não se importam”(176). O autor cosntata que “A maioria dos
‘fundos socialmente responsáveis’conta com a participação de
praticamente todas as grandes empresas em uma típica carteira de fundo
mútuo. Em 2004, trinta e três fundos socialmente responsáveis estavam
ligados às ações do Wal-Mart, vinte e três ao Halliburton, quarenta à
ExxonMobil, e quase todos à Microsoft, em sua tentativa de resistir ao
controle de mercado. No início dos anos 2000, muitos possuíam ações da
Enron, da WorldCom e da Adelphia, e nenhuma dessas empresas eram
conhecidas por prestarem serviços públicos.”(177)
Malvadeza das corporações? Não, lógica do sistema. Permite
remunerar bem os acionistas e oferece bons preços aos consumidores. Isto
articula a poderosa minoria dos que concentram ações, e uma classe mais
ampla de afortunados que têm capacidade de compra. E um CEO que não
alimentar estes interesses perde o cargo. A solução não está (ou não
apenas) na empresa ser decente, mas em haver leis que assegurem que esta
decência seja respeitada, e não dependa da boa vontade passageira de um
executivo. Inclusive, porque na dinâmica atual do mercado, quem
incorrer em custos maiores por respeitar determinados valores sociais,
vai perder mercado, e logo perder o emprego.
Reich tem aqui um surto de sinceridade: “Por muitos anos tenho
pregado que responsabilidade social e lucro são conquistados no longo
prazo. Isso porque uma empresa que respeita e valoriza seus
funcionários, a comunidade e o meio ambiente certamente ganha o respeito
e a gratidão dos funcionários, e de toda a comunidade – o que,
eventualmente, ajuda o bottom line. Mas eu nunca consegui provar essa
proposição, nem encontrar um estudo que a confirme.” (171)
As soluções, segundo Reich, não estão na recuperação da ética
corporativa, mas no resgate da capacidade do Estado negociar os pactos
necessários para uma sociedade mais equilibrada. Isto envolve, antes de
tudo, tirar o dinheiro corporativo de dentro das campanhas eleitorais, o
dinheiro do lobby do gabinete dos senadores e dos juizes, resgatando um
equilíbrio que desapareceu, entre as nossas dimensões como
consumidores, aplicadores financeiros, e cidadãos.
A perda da nossa dimensão cidadã leva à detorioração dos nossos
interesses como sociedade, e exacerbação dos nossos interesses como
indivíduos. “Se a maioria das pessoas sempre tem duas opiniões sobre o
Supercapitalismo, porque então o lado dos consumidores-investidores
sempre ganha? A resposta é que os mercados se tornaram extremamente
eficientes em oferecer as melhores ofertas para os desejos individuais,
mas são muito ruins em atingir os objetivos que gostaríamos de alcançar
juntos. Enquanto o Wal-Mart e Wall Street agregam as exigências dos
investidores e consumidores em formidáveis blocos de poder, as
instituições que agregam os valores dos cidadão estão caindo.” (126)
Alternativas? São variadas e interessantes, e aqui aflora o
ministro do trabalho que foi: “A única maneira para os cidadãos vencerem
os consumidores e investidores em si mesmas é por meio de leis e
regulações que façam de nossas compras e investimentos uma escolha ao
mesmo tempo social e pessoal. Uma mudança na legislação trabalhista que
facilite a negociação de melhores condições para os trabalhadores pode,
por exemplo, aumentar ligeiramente o preço de produtos e serviços que se
compra – especialmente nos serviços locais que não fazem parte da
concorrência global. Meu consumidor interior não vai gostar muito disso,
mas o cidadão em mim acredita que esse é um preço justo a se pagar. Eu
também defendo um pequeno imposto sobre as vendas de ações, com o
objetivo de diminuir ligeiramente o movimento de capitais para que as
pessoas e as comunidades tenham um pouco mais de tempo para se adaptar
às novas circunstâncias. Isso poderia reduzir o retorno no meu fundo de
aposentadoria por uma pequena fração, mas o cidadão em mim acha que vale
a pena. Pela mesma razão, parece-me que deveria haver “disjuntores”
para prevenir que o número de trabalhadores em uma empresa grande e
rentável caia mais do que uma certa proporção no decorrer de um ano.”
(127)
“Eu não iria tão longe na re-regulação do setor de transportes
aéreos ou em estabelecer um livre comércio com a China e a Índia – isso
custaria-me muito mais como consumidor – mas eu apoiaria mais um
seguro-desemprego combinado com um seguro-salarial e treinamento
profissional para aliviar a dor dos trabalhadores que sofrem com as
consequências da desregulamentação do comércio. E eu acho que os
tratados comerciais deveriam exigir que todas as nações participantes
permitam que seus cidadãos organizem sindicatos e estabeleçam salários
mínimos, que seriam a metade do seu ganhos médios. Eu também apoiaria
uma licença familiar remunerada para que os trabalhadores possam
atualizar seus conhecimentos ou terem tempo para cuidar de um
recém-nascido ou de um parente doente. Estas disposições podem acabar
por me custar algum dinheiro, mas o cidadão em mim acredita que elas
valem o preço. Não sei como vamos criar bons empregos de classe média se
nossas escolas não forem muito melhores – o que exigirá pagamento bom o
suficiente para atrair jovens homens e mulheres talentosos para as
salas de aula do nosso país (a lei da oferta e da procura não foi
revogada na porta da escola) e contratar mais professores para que menos
crianças fiquem em cada sala de aula. Como pagar isso? Por meio de um
sistema fiscal mais progressivo. O salário líquido de CEOs, banqueiros,
gestores de fundos e celebridades chegou a um nível tão astronômico que
um imposto mais elevado sobre a remuneração não desencorajaia as pessoas
talentosas de perseguir esses trabalhos. Finalmente, eu dissociaria a
saúde e o trabalho, e utilizaria a poupança fiscal – lembre-se que um
plano de saúde pago pelo empregador é um benefício livre de impostos –
para dar acesso ao seguro saúde a todos, sem exceção.”
Há muitas outras sugestões no texto. No conjunto, buscam o
reequilibramento geral do sistema através do resgate da autonomia e
capacidade negociadora do Estado, e do resgate da nossa dimensão cidadã,
relativamente às nossas dimensões como consumidores e aplicadores
financeiros. A meu ver, trata-se de um livro de fundamental importância.
Li durante um fim de semana, texto bem escrito se lê com prazer, e o
objetivo do livro, aliás, é justamente devolver esta dimensão às nossas
vidas.
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