sábado, 30 de agosto de 2014

Pikettismos: relexões sobre o Capital no Século XXI [1]


Ladislau Dowbor

26 de julho de 2014

O livro de Thomas Piketty está nos fazendo refletir, não só na esquerda, mas em todo o espectro político. Cada um, naturalmente, digere os argumentos, e em particular a arquitetura teórica do volume, à sua maneira. Os números de páginas se referem ao original francês.

1 A desigualdade na mira
A verdade é que Thomas Piketty, com a força da juventude e uma saudável distância das polarizações ideológicas que tanto permeiam a análise econômica, abriu novas janelas, trouxe vento fresco, nos permitiu deslocar a visão. Se bem que o problema da distribuição da renda sempre estivesse presente nas discussões, a teoria econômica terminou centrando-se muito mais no PIB, na produção de bens e serviços, e muito insuficientemente na repartição e nos mecanismos que aumentam ou reduzem a desigualdade.
Esta atingiu níveis obscenos. Quando uma centena de pessoas são donas de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto um bilhão de pessoas passa fome, francamente, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental avançada. Mas para muita gente, trata-se simplesmente de incompreensão, de desconhecimento dos mecanismos.
A lenta dissipação da neblina que cerca o problema da desigualdade vem sendo construída nas últimas décadas. Basicamente, enquanto a partir dos anos 1980 o capitalismo entra na fase de dominação dos intermediários financeiros sobre os processos produtivos – o rabo passa a abanar o cachorro (the tail wags the dog)é a expressão usada por americanos como Joel Kurtzmann – e com isto passa a aprofundar a desigualdade, foram se construindo, com grande atraso, as análises das implicações.
Um amplo estudo do Banco Mundial ajudou bastante ao mostrar que basicamente quem nasce pobre permanece pobre, e que quem enriquece é porque já nasceu bem. É a chamada armadilha da pobreza, a poverty trap. Esta pesquisa mostrou que a pobreza realmente existente simplesmente trava as oportunidades para dela sair. Com Amartya Sen passamos a entender a pobreza como falta de liberdade de escolher a vida que se quer levar, como privação de opções. O excelente La Hora de la Igualdad da CEPAL mostrou que a América Latina e o Caribe atingiram um grau de desigualdade que exige que centremos as nossas estratégias de desenvolvimento em torno a esta questão. Isto para mencionar algumas iniciativas básicas. O livro do Piketty não surge do nada, sistematiza um conjunto de visões que vinham sendo construídas.
E há naturalmente o acompanhamento do desastre crescente através de tantas instituições de estudos estatísticos. Hoje conhecemos o tamanho do rombo, temos dados para tudo, sabemos quem são os pobres. O The Next 4 Billion do Banco Mundial mostra que temos quase dois terços da população do planeta “sem acesso aos benefícios da globalização”, os dados do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2014 do PNUD mostram que 2,2 bilhões de pessoas vivem na pobreza, dos quais um pouco mais de um bilhão na miséria, abaixo de 1,25 dólares ao dia. Temos inclusive os detalhes dos 180 milhões de crianças que passam fome, de 4 milhões de crianças que morrem anualmente por não ter acesso a uma coisa tão elementar como água limpa. O Working for the Few, da Oxfam/UK, apresenta uma visão geral da desigualdade, em particular a da riqueza (patrimônio familiar acumulado), que ultrapassa de longe a desigualdade da renda.
Os nossos dilemas não são misteriosos. Estamos administrando o planeta para uma minoria, através de um modelo de produção e consumo que acaba com os nossos recursos naturais, transformando o binômio desigualdade/meio ambiente numa autêntica catástrofe em câmara lenta. Enquanto isto, os recursos necessários para financiar as políticas de equilíbrio estão girando na ciranda dos intermediários financeiros, na mão de algumas centenas de grupos que sequer conseguem administrar com um mínimo de competência as massas de dinheiro que controlam. O desafio, obviamente, é reorientar os recursos para financiar as políticas sociais destinadas a gerar uma economia inclusiva, e para financiar a reconversão dos processos de produção e de consumo que revertam a destruição do meio ambiente.
Falta convencer, naturalmente, o 1% que controla este universo financeiro diretamente através dos bancos e outras instituições e crescentemente de modo indireto através da apropriação dos processos políticos e das legislações. As pessoas não entendem o que é bilionário, e realmente não é um desafio que faz parte do nosso cotidiano. Mas uma forma simples de entender esta estranha criatura nos é apresentada por Susan George: um bilhão de dólares aplicados em modestos 5% ao ano numa poupança, rendem ao seu proprietário 137 mil dólares ao dia. O que ele vai fazer com este dinheiro? Por mais guloso que seja o bilionário, não há caviar que resolva. O dinheiro, portanto, é reaplicado, e a fortuna se transforma numa bola de neve, gerando os super-ricos, os que literalmente não sabem o que fazer com o seu dinheiro.
Um segundo mecanismo a ser entendido, é a diferença entre a renda e o patrimônio. A renda é anual – resultado de salário, de aluguéis, do rendimento de aplicações financeiras etc. – enquanto o patrimônio (net household wealth, patrimônio domiciliar líquido) – constitui a riqueza acumulada, sob forma de casas, contas bancárias (menos dívidas), ações e outras formas de riqueza. A verdade é que quem ganha pouco compra roupa para os filhos, paga aluguel, gasta uma grande parte da sua renda em comida e transporte, e não compra belas casas, fazendas e iates, e muito menos ainda faz aplicações financeiras de alto rendimento. O pobre gasta, o rico acumula. Sem processo redistributivo, gera-se uma dinâmica insustentável a prazo.
O livro do Piketty não é apenas muito bom, é oportuno. Pois é nesta situação explosiva de desigualdade no planeta, quando até Davos (Davos, meu Deus!) clama que a situação é insustentável, que surge uma explicitação de como se dão os principais mecanismos que geram a desigualdade, como evoluíram no longo prazo, como se apresentam no limiar do século XXI, e em particular como o problema pode ser enfrentado.
O raciocínio básico é simples e transparente: os avanços produtivos do planeta se situam na ordem de 1,5% a 2% ao ano, enquanto as aplicações financeiras dos que possuem capital acumulado aumentam numa ordem superior a 5%. Isto significa que uma parte crescente do que o planeta produz passa para a propriedade dos detentores de capital, que passam a viver da renda que este capital gera, o que justamente nos leva à fantástica concentração de riqueza nas mãos de poucos. E do lado propositivo, esperar que mecanismos econômicos resolvam o desequilíbrio crescente faz pouco sentido: precisamos criar ou expandir, segundo os casos, um imposto progressivo sobre o capital. O que inclusive seria produtivo, pois incitaria os seus detentores a buscar realizar investimentos produtivos em vez de observarem sentados o crescimento das suas aplicações financeiras.
Utópico? Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. E tributar o capital parado nas cirandas financeiras, rendendo sem produção correspondente, é particularmente interessante. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões, e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero, e geraria o equivalente a 2% do PIB europeu (cerca de 300 bilhões de euros), o suficiente para liquidar por exemplo o endividamento público em pouco anos, e tirar os países membros das mãos dos intermediários financeiros. (889). Seria um bom primeiro passo.
Novo? Não, não é novo, mas é apresentado no livro do Piketty de maneira muito legível (inclusive para não economistas), extremamente bem documentada, e com uma clareza na explicação passo a passo que transforma a obra numa ferramenta de trabalho de primeira ordem.
2 O lugar da ciência econômica
Chamar a economia de ciência faz parte do problema. Faz parecer que há leis imutáveis, como as da física, que uma vez descobertas permitem ações racionais. Piketty, citando Josiah Wedgwood, considera que “as democracias políticas que não democratizam o seu sistema econômico são intrinsicamente instáveis”. (821) Democratizar o sistema econômico implica justamente a intervenção do “demos”, do povo, sobre o sistema econômico. O que significa que estamos falando não de mecanismos imutáveis, mas de regras do jogo politicamente definidas e decididas, para que a economia funcione para o proveito de todos, ou, segundo o maior ou menor grau de democracia, o proveito de poucos. Isto também significa que as regras do jogo econômico podem ser alteradas, por serem regras políticas. Reconstitui-se assim o elo entre a economia e os processos democráticos.[2]
Um dos aportes fundamentais do Capital no Século XXI, é o de recolocar a economia no seu devido lugar, como uma das áreas das ciências sociais, voltando com isto a ser “economia política”, como na sua origem, ou seja, o estudo da dimensão econômica dos diversos processos da reprodução social. Com isto, o estudo dos mecanismos econômicos volta a ter pé e cabeça, ao ser compreendido nas suas complexas interações com a política, com os mecanismos de poder sob suas diversas formas, com os valores sociais das diferentes épocas e culturas. A desigualdade deixa de ser vista como o resultado de leis duras mas inevitáveis, mas como uma construção política que pode ser alterada. E a desigualdade que hoje vivemos, vista essencialmente como uma deformação da própria democracia. É o que Irving Fischer chamou de an undemocratic distribution of wealth, distribuição não-democrática de riqueza. (817)
Se isto pode parecer evidente, e para muitos de nós sempre foi, a realidade é que para o mainstream econômico, até ontem, as desgraças do mundo resultavam do fato que as políticas públicas estavam deformando as leis naturais da economia, que tinham a mágica virtude de restabelecerem os equilíbrios. Durante quanto tempo nos foi repetida a fábula da mão invisível? A imensa popularidade de Milton Friedman e da Escola de Chicago não resultou de qualquer criatividade científica particular, mas do fato de terem desenvolvido cálculos destinados a mostrar que a injustiça era de certa forma justa: era conforme às leis econômicas. Vestir a ganância dos interesses dominantes com respeitabilidade acadêmica rende.
Inventar aparências de justificação científica para o enriquecimento maior dos ricos rende muito. Como aparece tão bem no documentário Inside Job (Trabalho Interno), a Alta Academia e Wall Street passaram a trabalhar de mãos dadas, colonizaram o FED e o Tesouro, reduziram pela metade os impostos sobre os ricos, e geraram uma crise planetária. “A taxa marginal do imposto sobre a herança, aplicada aos níveis mais elevados nos Estados Unidos, passou de 70% em 1980 para 35% em 2013”. (811) O mesmo processo foi utilizado relativamente aos países mais pobres: “A partir dos anos 1980-1990, a nova onda ultraliberal vinda dos países desenvolvidos impõe aos países pobres cortes nos setores públicos e coloca no último grau de prioridades a construção de um sistema fiscal propício ao desenvolvimento. (789) É a herança, aliás, que hoje enfrentamos no Brasil.
A crise de 2008 deixou as coisas mais claras. O resgate veio, como em 1929, da volta do Estado como instrumento central de regulação econômica. O que foi a lei de regulação Glass-Steagall após a crise de 1929, hoje tenta-se recuperar com a lei Dodd-Frank. Ambas duramente combatidas, então como hoje, pelo universo de intermediários financeiros, os que vivem de taxar a produção e consumo dos outros. Aqui não há complexidades teóricas da ciência econômica, e sim a luta nua e crua, com propinas, lobbies e ameaças, guerras e derrubadas de governos, pelo enriquecimento dos mais ricos.
“Eu não concebo outro lugar para a economia, escreve Piketty no subtítulo Por uma economia política e histórica, do que como subdisciplina das ciências sociais, ao lado da história, da sociologia, da antropologia, das ciências políticas e de tantas outras…Não gosto muito da expressão ‘ciência econômica’, que me parece terrivelmente arrogante e que poderia nos fazer acreditar que a economia tenha atingido uma cientificidade superior, específica, distinta da ‘economia política’, talvez um pouco velhinha (viellotte), mas que tem o mérito de ilustrar o que me parece ser a única especificidade aceitável da economia no seio das ciências sociais, a saber a visão política, normativa e moral”. (945)
No plano propositivo, trata-se de resgatar o conhecimento histórico: “A experiência histórica continua sendo a nossa principal fonte de conhecimento”(947). Isto leva a um conselho muito saudável: “Os outros pesquisadores em ciências sociais não devem deixar o estudo dos fatos econômicos aos economistas, e devem parar de sair correndo logo que aparece uma cifra, e de se contentar em dizer que cada cifra é uma construção social, o que é naturalmente sempre verdadeiro, mas insuficiente.”(947) Precisamos entender “as instituições, as regras e as políticas que terminam por modelar as evoluções econômicas e sociais. É possível, e até indispensável, ter uma abordagem que seja ao mesmo tempo econômica e política, salarial e social, patrimonial e cultural.”(949) ) Assim, o binômio riqueza e poder só pode ser analisado e entendido como amplo processo social e político, como realidade total e complexa. Aqui, a economia volta ao seu lugar, como economia política, conjunto de ferramentas analíticas que adquirem riqueza e sentido através da articulação com as outras ciências sociais, e onde a ética retoma o seu devido lugar.
3 Renda e patrimônio
Se uma pessoa constrói uma casa, realizou um investimento. Se vendeu a casa e aplicou o dinheiro para render juros, realizou uma aplicação financeira. A construção da casa gerou um novo bem na economia, a aplicação financeira não mudou o estoque de riqueza do país. Houve apenas uma transferência: quem tinha o dinheiro agora tem uma casa, e quem tinha uma casa agora tem o dinheiro. Para os americanos, fica bastante confuso, pois eles usam a palavra investment para tudo, inclusive para atividades especulativas. Em francês fica bem claro, investissementsplacements financiers. No Brasil temos também a distinção, investimento e aplicação financeira, mas os bancos insistem em chamar tudo de investimento, fica parecendo mais nobre, e gera ilusão de serem produtivos. Os bancos podem até financiar um empreendedor que vai criar uma empresa de produtora de móveis, por exemplo, mas aqui o investidor é o empresário, e o banqueiro é um intermediário financeiro que realoca aplicações financeiras. A confusão é desnecessária, e frequentemente proposital. Pode-se jantar numa mesa, não nos papéis que representam o seu valor.
Com o conceito de renda temos um problema semelhante. A minha renda decorre do meu trabalho, descontada na folha pois sou assalariado. Mas quando falamos que alguém “vive de rendas”, não pensamos no seu rendimento como fruto direto do trabalho. É um rentista, na definição do Houaiss “aquele que vive exclusivamente de rendas”. Em inglês, desta vez fica mais claro, pois não se chama tudo de “renda” como no Brasil. Diferencia-se claramente income rent. Em francês, falaremos emrevenu rente, termos igualmente bem diferentes. No Brasil, temos o rentista, mas não temos a palavra “renta”. Seria útil aqui, adotar o conceito de rendimento, no sentido que usa Piketty, ao se referir por exemplo ao rendimento do capital (rendement du capital). (142)
As distinções, aqui, são fundamentais, porque a desigualdade assume diversas formas e tem várias fontes. Fiquemos aqui acordados que para fazer a economia crescer precisamos de investimentos, e que o resultado do crescimento econômico vai se manifestar, ao fim a ao cabo, na capacidade de compra diferenciada de cada família. Esta capacidade de compra é representada pela renda familiar anual, que provém tanto da renda do trabalho, como de rendimentos de diversas aplicações financeiras. Aqui, as coisas ficam bastante mais claras, pois no nível da família, como unidade básica, existe um fluxo anual de renda, e um estoque de patrimônio acumulado, que também chamamos de riqueza.
Os estudos de concentração de renda, que nos dão por exemplo medidas de desigualdade como o coeficiente de Gini, medem essencialmente a renda anual disponível para as famílias, segundo as classes de renda. Mas não nos informam sobre as fontes desta renda. Estudos sistemáticos da desigualdade de riqueza, de patrimônio familiar, são relativamente recentes. O WIDER (World Institute for Development Economics Research), ou o Crédit Suisse, por exemplo, já permitem estudos comparativos relativamente sérios, e Piketty se lamenta do começo ao fim do livro com a impressionante escassez de informações sobre a quem pertence afinal a riqueza que a sociedade cria. Ter de recorrer a fontes de glamourização de fortunas como Forbes para ter informações indispensáveis à análise dos desequilíbrios econômicos é cientificamente lamentável e tecnicamente insuficiente. Tanto se fala em transparência dos serviços públicos, mas sobre o imenso estoque, alocação e usos dos capitais privados estamos simplesmente com um impressionante déficit de informações.
O rendimento do capital, sob suas diferentes formas – juros, aluguéis, dividendos de ações etc. – pressupõe poupança para que o capital se forme, o que com maior frequência surge da herança de um capital que tanto mais facilmente se acumula na família quanto menos filhos as famílias possuem. A realidade básica, é que os dois terços da população mundial simplesmente não auferem renda anual suficiente para poupar e acumular patrimônio. E como não têm patrimônio acumulado, vivem apenas da renda do trabalho, o que raramente possibilita a formação de um capital capaz de reforçar a renda e ir gradualmente acumulando riqueza. O pobre compra roupa, aluga casa, às vezes até consegue comprá-la mas se endivida para pagar durante décadas, ou seja, consome o que recebe.
Um bilionário, para pensarmos grande, parte de outro patamar. Um bilhão de reais aplicados a 5% ao ano, o que não constitui nenhuma remuneração excepcional, rendem ao bilionário 137 mil reais ao dia. Como este rendimento não pode ser absorvido pelo consumo individual, transforma-se em mais aplicações, gerando uma espiral ascendente de enriquecimento, enquanto a renda das famílias na base da sociedade estagna. Gera-se assim um processo cumulativo de desigualdade. A partir de um certo nível, o grosso do ganho resulta não do esforço produtivo, mas do próprio mecanismo de aplicações financeiras.
Nas cifras da tabela acima, do Crédit Suisse, banco que tem tudo para entender de fortunas acumuladas, constatamos que 0,7% da população mundial, 32 milhões de pessoas, se apropriaram de 41% da riqueza do planeta (patrimônio acumulado, não renda), enquanto 68,7%, 3,2 bilhões de pessoas com patrimônio inferior a 10 mil dólares têm apenas 3%. Como ordem de grandeza para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%. Não há como equilibrar politicamente o planeta com esta situação, e muito menos quando está se agravando. Cifras muito mais impressionantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente.[3]
Não só a riqueza se acumula no topo da pirâmide social, mas o rendimento financeiro. Os muito ricos aplicam em papéis que cujo rendimento é muito superior ao crescimento da economia em geral. As grandes fortunas, inclusive, permitem aplicações financeiras de alto rendimento, muito além das pequenas aplicações típicas da classe média, por poderem pagar especialistas na gestão das suas fortunas. Tomando o exemplo do fundo de aplicações da universidade de Harvard, cujos dados são abertos e detalhados no longo prazo, trata-se de rendimentos da ordem de 10% líquidos ao ano, enquanto a economia cresce entre 1,5 e 2%. Aqui não há mistérios: quando uma minoria se apropria sistematicamente de recursos em ritmo muito superior ao crescimento da produção, gera-se um desequilíbrio cumulativo catastrófico. Catástrofes, aliás, que pontuaram os reajustes estruturas das crises e guerras do século passado. É tempo de constituirmos uma política econômica que enfrente esta dinâmica, que já tem sido qualificada justamente deslow-motion catastrophe, catástrofe em câmara lenta.
O fato do livro do Piketty se basear na distinção entre o fluxo anual de renda e o estoque de riqueza acumulada, permite assim deixar muito mais claro o processo cumulativo de desigualdade que se construiu na sociedade moderna. Como além disto o poder político dos mais ricos permitiu passar leis que desregulam a especulação financeira e que reduzem drasticamente o imposto sobre a fortuna ou sobre transmissões de herança, fica clara a falha estrutural do sistema em termos de equilíbrios de longo prazo.[4] “A evolução geral não deixa nenhuma dúvida: para além das bolhas, estamos assistindo sim a um grande retorno do capital privado nos países ricos desde os anos 1970, ou melhor, à emergência de um novo capitalismo patrimonial”.(273)
As projeções para o nosso século, que é o que Piketty busca delinear, mostram a necessidade de intervenções reguladoras: “Uma conclusão parece desde se delinear com com clareza: seria ilusório imaginar que exista na estrutura do crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que levem naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a uma harmoniosa estabilização” (598)
4 Riqueza e merecimento
A riqueza dos ricos é merecida? Quando os gestores ganham 300 vezes mais do que os trabalhadores na base da empresa, distância impressionante e que cresceu dramaticamente nas últimas décadas, podemos sem dúvida nos colocar questionamentos éticos. Eles, naturalmente, não têm 300 vezes mais filhos. Nem produzem 300 vezes mais. Ademais, ninguém precisa de tanto dinheiro, tanto assim que o essencial destes ganhos se transforma em aplicações financeiras, que simplesmente drenam recursos que poderiam dinamizar atividades produtivas para assegurar rendimentos financeiros.
A defesa da desigualdade mais generalizada é a que consiste em desqualificar quem a denuncia: seria um invejoso. O fenômeno provavelmente existe, mas a imensa maioria das pessoas quer simplesmente que o sistema funcione, assegurando a cada qual uma escola decente para os filhos, uma cerveja ou um vinho no fim de semana, a tranquilidade de um sistema de saúde acessível, um ambiente de vizinhança aprazível e razoavelmente seguro, e a redução da permanente ameaça do drama maior: a perda do emprego, o sofrimento e humilhação de não poder sustentar a própria família. François Villon exprimiu isto nesta belíssima prece do século 15º: “Senhor, meu Senhor dos olhos verdes…a cada qual dê um pouco, e não se esqueça de mim.” Nunca é demais recordar que com o que produzimos hoje no Brasil, se fosse repartido de maneira equilibrada, teríamos algo como 7 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Não se trata de inveja, e sim de bom senso e funcionalidade. E de um pouco de justiça também.
Muito mais provável é a vontade de se ver invejado. Desde Veblen sabemos a importância de parecer importante, e em particular de cobrir de coisas caras a nossa eventual falta de importância. As ‘importâncias’ que se tornaram proprietárias de apartamentos de 20 milhões na margem do rio Pinheiros, em São Paulo, têm de viver de janelas fechadas pelo fedor que emana deste esgoto a céu aberto, e enfrentam com ar condicionado a visibilidade do seu status. Inúmeros estudos, nos mais diversos países, mostram que acima de um nível relativamente modesto de renda, dinheiro a mais não aumenta a felicidade. Deverá ser procurada na criatividade, na riqueza do convívio e não das compras, no resgate do tempo livre, por vezes no prazer de um joguinho de praia ou de várzea onde o espaço é gratuito e as pessoas se tornam iguais. O problema não está na inveja, mas na idiotice de pessoas desorganizarem a sociedade através de batalhas comerciais e financeiras sem sentido, e que sequer as deixam mais felizes.
É importante aqui lembrar a imagem inversa: o dinheiro na base da sociedade gera sim muita felicidade. Uma família poder guardar água fresca, comida e medicamentos na geladeira altera muito a qualidade de vida. Ou seja, a compra do básico, o alimento, o acesso a uma casa decente, todos estes elementos não só trazem e multiplicam felicidade, como asseguram a dinamização de um conjunto de atividades econômicas, ampliam a base de empregos, reduzem o impacto dos ciclos de crises econômicas. A este consumo é preciso acrescentar a importância crescente do consumo coletivo: o acesso universal à educação, saúde, infraestruturas de lazer e esporte e outros bens públicos e gratuitos em muitos países ricos assegura economias de escala na sua produção, gera uma igualdade de chances à partida para os mais jovens, e reduz dramaticamente as tensões sociais. O dinheiro é tanto mais produtivo quanto mais se reparte de maneira equilibrada. Um candidato a empresário precisaria sem dúvida de mais dinheiro para poder investir, mas para isto existe o crédito, quando alocado sob forma de fomento econômico e não de complexos mecanismos de especulação financeira.
Um elemento essencial na visão de Thomas Piketty, é que uma parte desproporcional dos recursos termina parando nas mãos de uma ínfima minoria. Aqui estamos falando de menos de 1% da população. Lembremos, como vimos acima, que na pesquisa do Crédit Suisse, 0,7% da população mundial é dona de 41% da riqueza acumulada, 99 trilhões de dólares (o PIB dos Estados Unidos é de 14 trilhões, o PIB mundial da ordem de 80 trilhões). Estamos falando, portanto, não da classe média, e sim dos ricos, os chamados HNWI, ou High Net Worth Individuals.
Uma forma de analisar as fortunas, é ver a que servem. Para já, não para o consumo, ainda que algumas formas espalhafatosas de consumo conspícuo deem na vista. Piketty faz o cálculo seguinte: “Com um capital de 10 bilhões de euros, basta destinarem o equivalente a 0,1% do capital ao consumo para financiar um modo de vida de 10 milhões de euros (aproximadamente 35 milhões de reais por ano). Se o rendimento obtido é de 5%, isto significa que a taxa de poupança sobre este rendimento é de 98%; atinge 99% se o rendimento é de 10%; de qualquer forma, o consumo é insignificante”. Portanto, a quase totalidade do rendimento do capital pode ser aplicada. Trata-se aqui de um mecanismo econômico elementar, mas apesar disto importante, e cujas consequências temíveis são muito frequentemente subestimadas, em termos de dinâmica de longo prazo para a acumulação e a repartição dos patrimônios. O dinheiro tende por vezes a reproduzir-se por si só.”(703)
Portanto, ainda que tenham frequentemente origem numa atividade produtiva, as fortunas acumuladas tendem a aumentar de forma cumulativa, por meio das aplicações financeiras, gerando uma espiral descontrolada. Estes recursos, por sua vez, em mãos dos grandes intermediários financeiros a quem são confiados para a sua administração (bancos, hedge funds e fundos especulativos diversos) conferem ao sistema financeiro um poder radicalmente superior aos próprios sistemas produtivos. Lembremos aqui a pesquisa do ETH, o Instituto Federal Suiço de Pesquisa Tecnológica: no conjunto das grandes corporações do planeta, apenas 147 grupos controlam 40% do total dos recursos, sendo que 75% destes grupos são bancos. Esta concentração, levando à financeirização da economia hoje amplamente estudada, está na origem da crise financeira mundial de 2008 e da desorganização das finanças públicas.[5]
Esta distinção clara que Piketty utiliza no seu estudo, entre rendimentos que resultam de produção e os que resultam do patrimônio acumulado, permite portanto entender por que razão há tanta riqueza acumulada, tantos bilionários, e tão fraca dinâmica econômica. Não são os produtores que manejam o planeta, e sim os grandes intermediários, que cobram pedágio sobre diversas atividades produtivas, e frequentemente mudam as leis, evitam os impostos, desequilibram a economia. Esta compreensão permite por sua vez justificar, questão que veremos mais adiante, um imposto progressivo sobre o capital, obrigando os que o detêm a buscar a sua utilização produtiva, através de investimentos na economia real. “Claramente, nos diz Piketty, a fortuna não é apenas questão de mérito”.
5 – A origem das fortunas
A origem das fortunas, e por sua vez das desigualdades, nem sempre se localiza numa garagem, e muito menos a sua reprodução e ampliação ulterior. Basicamente, se trata de heranças, de aplicações financeiras, e dos mega-saláriosde executivos em algumas grandes corporações. As dinâmicas, naturalmente, são frequentemente articuladas. E tende a jogar um papel importante o controle ou capacidade de pressão sobre os governos.
Piketty nos traz o exemplo de Liliane Bettencourt, a partir dos artigos da Forbes. A sua fortuna, hoje de 23 bilhões de dólares, lhe veio por herança, pois nunca trabalhou. Mas o que herdou inicialmente, foram 2 bilhões de dólares, que devidamente aplicados foram e continuam crescendo ao ritmo de 10% a 11% (descontada a inflação).(702) Temos aqui na origem uma invenção e atividade produtiva, a tecnologia L’Oréal de tintas para cabelo, desenvolvida em 1907, mas depois é só deixar o dinheiro crescer. Quando subimos para o 1% dos mais ricos, o essencial dos rendimentos provém de aplicações financeiras: “As ações e participações empresariais compõem a quase totalidade das fortunas mais importantes”.(408)
“Os empreendedores tendem assim a se transformar em rentistas, não somente na passagem das gerações, mas igualmente no decorrer de uma mesma vida”.(708) O que leva Piketty a uma visão equilibrada: “Por mais justificada que sejam à partida, as fortunas se multiplicam e se perpetuam por vezes para além de qualquer limite e justificação racional possível em termos de utilidade social…Toda fortuna é ao mesmo tempo parcialmente justificada e potencialmente excessiva…Trata-se aqui da razão central justificando a introdução de um imposto progressivo anual sobre as maiores fortunas mundiais, única maneira de permitir um controle democrático deste processo potencialmente explosivo, ao mesmo tempo que se preserva o dinamismo empresarial e a abertura econômica internacional.”(708)
Na dimensão histórica do processo, a principal tendência global observada e amplamente comprovada no livro, é que entre o renda do trabalho e da inovação por uma lado, e os rendimentos patrimoniais por outro, estes últimos se tornaram absolutamente dominantes durante a fase final do século 19º e o início do século 20º, ruíram no processo mundial destrutivo das duas guerras mundiais e da crise de 1929, e voltaram, neste início do século 21º, praticamente ao nível máximo atingido na véspera da primeira guerra mundial de 1914.
Para dar uma dimensão mais concreta ao raciocínio, é útil acrescentar ao exemplo acima de Liliane Betttencourt, com ganhos hoje de aplicações essencialmente financeiras, os exemplos clássicos de Bill Gates e de Carlos Slim, que se revezam no topo das fortunas mundiais.
No caso de Carlos Slim, a Oxfam nos traz uma descrição sumária: “A privatização das telecomunicações mexicanas há 20 anos nos dá um claro exemplo do nexo entre comportamento monopolístico, instituições legais e de regulação insuficiente, e a desigualdade econômico que resulta. Carlos Slim, do México, entra e sai do posto de pessoa mais rica do mundo, possuindo uma riqueza estimada em 73 bilhões de dólares. A enormidade desta riqueza resulta do estabelecimento de um monopólio quase completo sobre serviços de comunicações em linhas fixas, móveis e de banda larga no México…Uma recente pesquisa de políticas e de regulação das telecomunicações no México, realizada pela OCDE, concluiu que o monopólio sobre o setor tem tido um efeito negativo significativo sobre a economia, e ocasiona um custo permanente para o bem estar dos cidadãos que se viram obrigados a pagar preços inflados pelas telecomunicações.”(Oxfam, 24). Para se ter uma ideia, “os rendimentos que a sua fortuna gera poderiam pagar os salários de 440 mil mexicanos.”(Oxfam, 9)[6]
Temos aqui a combinação de renda de monopólio (em inglês seria rent, forma diferenciada de income), com rendimentos financeiros, o que faz com que uma das duas maiores fortunas do planeta tenha origem em iniciativas prejudiciais para a economia (eliminação da concorrência pelo monopólio e esterilização da poupança pelas aplicações financeiras. No caso brasileiro o processo se manifesta no oligopólio Claro, Vivo e Tim. É sempre útil lembrar que formação de cartel é crime claramente definido na nossa Constituição).
No caso de Bill Gates, a sua fortuna é vista como legítimo resultado de criatividade e empreendedorismo. O texto do Piketty é aqui até divertido: “Bill Gates aparece com todas as virtudes do empreendedor modelo e merecedor…Sem dúvida, este verdadeiro culto se explica pela necessidade irresistível das sociedades democráticas modernas de darem um sentido às desigualdades…Por outro lado, imagino que as suas contribuições se apoiaram nos trabalhos de milhares de engenheiros e de pesquisadores em eletrônica e informática fundamental, sem os quais nenhuma das invenções nestes campos teria sido possível, e que não patentearam os seus artigos científicos”.(710) Temos aqui sem dúvida também um efeito monopolístico: temos de utilizar as ferramentas que são mais usadas, sob pena de não conseguirmos comunicar. A renda (no sentido de rent) consiste aqui essencialmente do efeito de dominação, não de concorrência. O exército jurídico da Microsoft é poderoso.
Tomando em particular o caso das grandes corporações norte-americanas, Piketty traz uma extensa análise dos salários de executivos nas empresas americanas, da ordem por vezes de dezenas de milhões de dólares por ano, mas apresentados como resultado de grandes capacidades e correspondendo à produtividade. Naturalmente, não há tanta diferença de capacidades que justifiquem tanta disparidade, mas o problema se agrava justamente porque este tipo de salário, fenômeno bastante recente, resulta em aplicações financeiras de grandes recursos, reforçando a dinâmica da desigualdade. O problema central do fenômeno dos salários dos “super-quadros”, como os define Piketty, é que a alta hierarquia define os seus próprios salários, o que gera uma espiral descontrolada.(498)
A dimensão brasileira é interessante. Na listagem da Forbes apresenta-se os 15 bilionários do país.[7]
1)     Marinho, Organizações Globo, US$ 28,9 bilhões
2)     Safra, Banco Safra, US$ 20,1 bilhões
3)     Ermírio de Moraes, Grupo Votorantim, US$ 15,4 bilhões
4)     Moreira Salles, Itaú/Unibanco, US$ 12,4 bilhões
5)     Camargo, Grupo Camargo Corrêa, US$ 8 bilhões
6)     Villela, holding Itaúsa, US$ 5 bilhões
7)     Maggi, Soja, US$ 4,9 bilhões
8)     Aguiar, Bradesco, US$ 4,5 bilhões
9)     Batista, JBS, US$ 4,3 bilhões
10)  Odebrecht, Organização Odebrecht US$ 3,9 bilhões
11)  Civita, Grupo Abril, US$ 3,3 bilhões
12)  Setubal, Itaú, US$ 3,3 bilhões
13)  Igel, Grupo Ultra, US$ 3,2 bilhões
14)  Marcondes Penido, CCR, US$ 2,8 bilhões
15)  Feffer, Grupo Suzano, US$ 2,3 bilhões

Veja-se que se trata essencialmente de bancos (concessão pública, com carta patente, para trabalhar com dinheiro do público); de meios de comunicação (concessão pública de banda de espectro eletromagnético para prestar serviço de comunicação à população); de construtoras (as grandes, que trabalham com contratos públicos, nas condições que conhecemos); e de exploração de recursos naturais (solo, água, minérios) que são do país e que não precisaram produzir: o Imposto Territorial Rural, por exemplo, praticamente não existe no Brasil. É o divórcio crescente entre quem enriquece e quem contribui para o país. Piketty é claro: “A experiência histórica indica ademais que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm grande coisa a ver com o espírito empreendedor, e não têm nenhuma utilidade para o crescimento”. (944)
Vemos aqui uma vez mais o interesse da base metodológica clara e explícita do autor, ao separar os diversos níveis de renda e fontes de enriquecimento: “Os grupos de 10% e de 1% são definidos separadamente para a renda do trabalho de uma lado, para o rendimento de propriedade do capital de outro, e finalmente para a renda total, que resulta do trabalho e do capital, fazendo a síntese das duas dimensões e que define portanto uma hierarquia social composta que resulta das duas primeiras”.(400)
A força da argumentação, da documentação e da análise trazidas pela equipe de Piketty, com seus 15 anos de trabalho acumulado, é que casa com outras análises que surgiram em diversos setores de pesquisa. O livro, e o banco de dados online e aberto (com todos os dados primários da pesquisa) que lhe dá suporte, surge num momento histórico em que muitos agentes econômicos, sociais e políticos do planeta decidiram que não dá mais para ignorar o elefante no meio da sala, que é o drama da desigualdade. É uma ferramenta que surge no momento histórico certo. De certa maneira, passamos a ter uma arquitetura conceitual muito sólida que nos faz entender os novos desafios e alternativas.
6  A armadilha da dívida pública
O processo tem lógica. No geral, o mundo avança com uma expansão em ritmo aproximado de 1,5% a 2% ao ano, o que é perfeitamente respeitável, graças em particular aos avanços tecnológicos, e também ao aumento da população. A produtividade, no entanto, não tem se transformado em avanço correspondente da remuneração do trabalho. A quase totalidade do aumento de riqueza produzida vai para os 10% mais ricos, e em particular para o 1% superior. Esta renda nas mãos dos mais ricos, a partir de um certo nível, já não tem como se transformar em consumo, e passa a ser aplicada em diversos produtos financeiros, cuja rentabilidade está na ordem de 5% para aplicações médias, mas sobe para 10% para aplicações de grande vulto com gestores financeiros profissionais.
Com o rendimento sobre o capital ultrapassando fortemente os avanços da própria economia, na realidade gera-se um processo cumulativo de enriquecimento relativamente maior dos que já são mais ricos. O desequilíbrio gerado não tem como ser revertido por simples mecanismos de mercado, e na realidade já atingimos o grau de desequilíbrio de um século atrás, quando os mais afortunados “viviam de rendas”, mas em nível e volume superior. Esta é a dinâmica geral, em que os avanços gerados por produtores se veem apropriados por rentistas. É o “capitalismo rentista” que está justamente no centro do raciocínio.
A dinâmica particular que vemos agora, e que aparece na parte final do estudo do Piketty, é que os sistemas de gestão financeira que aplicam as grandes fortunas desenvolveram um segundo mecanismo, que consiste em se apropriar dos recursos públicos por meio da dívida pública. As pressões da direita para ampliar o endividamento público se explica: “Em vez de pagar os impostos para equilibrar os orçamentos públicos, os italianos – ou pelos menos os que têm os meios – emprestaram dinheiro ao governo ao comprar títulos do Tesouro ou ativos públicos, o que lhes permitiu aumentar os seu patrimônio particular – sem por isto aumentar o patrimônio nacional.” (291) O caso italiano aqui é apenas um exemplo, a expansão da dívida pública se generalizou pelo planeta, ao mesmo tempo que se reduziam os impostos sobre as fortunas e as operações financeiras. Os Estados Unidos têm hoje uma dívida da ordem de 15 trilhões de dólares, para um PIB mundial da ordem de 80 trilhões.
Estas operações, naturalmente, representam apenas transferências: “O nível do capital nacional em primeira aproximação não mudou. Simplesmente, a sua repartição entre capital público e privado inverteu-se totalmente”.(294) Na realidade, “a dívida pública não constitui mais do que um direito de uma parte do país (os que recebem os juros) sobre a outra parte (os que pagam os impostos): portanto deve-se excluí-lo do patrimônio nacional e incluí-lo somente no patrimônio privado”. (185) Trata-se de rentismo público (rentes publiques), que tem um impacto particularmente desastroso quando um país enfrenta dificuldades, pois os aplicadores em títulos públicos forçam os juros para cima, agravando a situação, como se viu na própria Itália, na Grécia, Espanha e tantos outros países.
O Estado, neste sentido, transformou-se em mais uma arena do aumento dos patrimônios dos mais afortunados. “Existem duas formas principais de um Estado financiar os seus gastos: pelo imposto, ou pela dívida. De maneira geral, o imposto é uma solução infinitamente preferível, tanto em termos de justiça como de eficácia.”(883) Esta opção pelo imposto é explicitada: “”O imposto sobre o capital põe a carga nos que detêm patrimônio elevado, enquanto as políticas de austeridade buscam em geral poupá-los”. (894) Dadas as relações de força internacionais, a opção geral que se viu, na Europa em particular, foi a da política de austeridade, com restrições das aposentadorias e das políticas sociais, atingindo o elo mais fraco tanto em termos econômicos como políticos.
O caso brasileiro é emblemático, e neste sentido poderia muito bem ilustrar as análises do pesquisador francês. A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, criou a sua justificação ética, a de estar combatendo a inflação: trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem, e a imensa maioria não sabe, a Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo, gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada também é uma inciativa dos governos nos anos 1990. Tipicamente, passou-se a pagar, a partir de 1996, já com inflação baixa, entre 25 e 30% sobre a dívida pública. Os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso aos nossos impostos. Com isto o governo comprava, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos grandes bancos situados no país, inclusive dos grupos financeiros transnacionais. Assim os governantes organizaram a transferência massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.
Amir Khair explicita a origem do mecanismo: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e 10,0% durante um ano.”[8] Se considerarmos, para simplificar, uma taxa de 10%, e um estoque de dívida de dois trilhões de reais, estaremos transferindo para os grandes intermediários financeiros algo da ordem de 200 bilhões de reais por ano, pagos dos nossos impostos, e frequentemente reaplicados para aumentar o estoque da dívida e o volume de ganhos.
Gera-se uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas, que além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazerem investimentos produtivos que gerariam produto e emprego. É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. E realizar investimentos produtivos, financiando por exemplo uma fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, seguimento, enfim, envolve atividades que vão além de aplicações financeiras. É na realidade o que os intermediários deveriam fazer: fomento, irrigar as atividades econômicas, sobre tudo porque estão trabalhando com o dinheiro dos outros. Tecnicamente, o que fazem ao tirar o dinheiro do circuito econômico e transferi-lo para a área financeira, é a esterilização da poupança.
No nosso caso, a justificação política é que se trata, ao manter juros elevados, de proteger a população da inflação. Neste ponto, o argumento de Piketty coincide com o que Amir Khair e outros têm repetido: “A inflação depende de múltiplas outras forças, e nomeadamente da concorrência internacional sobre preços e salários”.(905) Mas para uma população escaldada com inflações passadas, o argumento é poderoso, ainda que falso. Com um massacre midiático impressionante, os juros altos aparecem como bons (nos protegem da inflação), enquanto os impostos aparecem como negativos (inchaço da máquina pública e semelhantes. Os mais afortunados que deveriam pagar os seus impostos, aplicam na dívida pública, e fazem render o que deveriam devolver à sociedade.
As análises que o livro nos traz do problema da dívida pública apontam ainda um outro problema: o caos financeiros gerado. Chipre é parte da União Europeia, e no entanto ninguém tinha informações precisas sobre o tipo de, origem ou interesses dos detentores da sua dívida pública, grupos de certa forma donos de parcelas do sistema público. Revelou-se serem dominantemente oligarcas russos, que desarticularam completamente as tentativas do país de equilibrar as suas contas. E tem mais: de ponta a ponta do trabalho, Piketty nos traz exemplos da ausência geral de transparência sobre os estoques e fluxos financeiros: “os países não dispõem nem de transmissões automáticas de informações bancárias internacionais nem de cadastro financeiro que lhes permitisse repartir de forma transparente e eficaz as perdas e os esforços.”(908) O sistema financeiro atua no planeta, os Estados atuam em espaços delimitados por fronteiras nacionais. As próprias finanças públicas, como resultado, se vêm jogadas na ciranda.
7  O imposto progressivo sobre o capital
Como enfrentar o capitalismo patrimonial globalizado do século 21º? Esta é a questão central colocada no estudo do Piketty. O desafio tende a desanimar. O autor se refere, com coragem, à “utopia útil” que está propondo. Ainda mais que é um realista, plenamente consciente “do grau de má fé atingido pelas elites econômicas e financeiras na defesa dos seus interesses, bem como por vezes pelos economistas, que ocupam atualmente uma posição invejável na hierarquia americana de rendimentos, e que têm frequentemente uma lamentável tendência a defender os seus interesses particulares, sempre dissimulando-se por trás de uma improvável defesa do interesse geral.” O congressista médio nos Estados Unidos teria um patrimônio pessoal da ordem de 15 milhões de dólares, frente ao patrimônio médio do adulto americano de 200 mil dólares. Não vai ser fácil. (834) Vem-nos aqui à lembrança os dilemas de Lincoln ao tentar fazer um congresso constituído por donos de escravos votar o fim da escravidão.
A visão mais ampla em termos propositivos está na linha de um imposto progressivo sobre o capital acumulado. Já que os mecanismos de mercado, neste caso, em vez de gerar equilíbrios, geram um processo cumulativo de desigualdade, com uma espiral descontrolada de enriquecimento cada vez menos vinculado à contribuição produtiva, uma intervenção institucional para organizar a redistribuição torna-se indispensável. “A ferramenta ideal, escreve o autor, seria um imposto mundial e progressivo sobre o capital, acompanhado de uma muito grande transparência financeira internacional. Uma instituição deste tipo permitiria evitar uma espiral de desigualdade sem fim e regular de forma eficaz a inquietante dinâmica da concentração mundial dos patrimônios.”(835)
Não se trata apenas de frear uma dinâmica descontrolada. Trata-se também de recompor e ampliar as políticas sociais, para as quais a ação pública é essencial. Piketty tem total clareza do peso essencial que tiveram as políticas sociais na fase equilibrada de desenvolvimento do pós-guerra. O Estado não é “gasto”, é prestação “de serviços públicos que beneficiam gratuitamente as famílias, em particular os serviços de educação e de saúde financiados diretamente pelo poder público. Estas ‘transferências in natura’ têm tanto valor quanto as transferências monetárias contabilizadas na renda disponível: evitam que as pessoas interessadas tenham de desembolsar somas comparáveis – ou por vezes nitidamente mais elevadas – junto a produtores privados de serviços de educação e de saúde”. Tem também clareza dos aportes de Amartya Sen, de que a políticas sociais, ainda recentemente classificados como gastos, constituem investimentos nas pessoas, com impactos produtivos generalizados.[9]
Piketty é antes de tudo um historiador da economia. A sua análise do longo prazo permite, e isto se sente em toda a extensão do livro, um recuo muito saudável, que permite reduzir as simplificações e reações ideológicas. Ver descritas as declarações indignadas dos ricos, há um século atrás, quando se iniciou a cobrança do próprio imposto de renda, com alguns pontos percentuais apenas sobre pessoas de renda elevada, nos dá inclusive a dimensão de que certas coisas que pareciam absolutamente impossíveis hoje já fazem parte do cotidiano. A expansão da carga tributária na Europa e nos Estados Unidos é que permitiu os avanços civilizatórios: “O desenvolvimento do Estado Fiscal durante o século passado corresponde no essencial à constituição de um Estado social.” (765)
Piketty mostra inclusive que as diversas formas de renda mínima, com grande impacto social, representam custos muito limitados: Os ‘mínimos sociais’, como os denomina, “correspondem a menos de 1% da renda nacional, quase insignificantes na escala da totalidade dos gastos públicos.” Aqui aflora o humanista, e a consciência da guerra ideológica: “Trata-se, no entanto, de gastos frequentemente contestados com a maior violência: suspeita-se os beneficiários de escolherem de se instalar eternamente na assistência, ainda que a taxa de demanda por estes ‘mínimos’ seja geralmente muito mais fraca do que a das outras prestações, o que reflete o fato que os efeitos de estigma (e frequentemente a complexidade dos dispositivos) tenda frequentemente a dissuadir os que a elas teriam direito.” Nos Estados Unidos, o estigma casa com o racismo pouco velado: “Observa-se que este tipo de questionamento dos mínimos sociais tanto nos Estados Unidos (onde a mãe solteira, negra e ociosa joga o papel de rechaço absoluto para os que desprezam o magro Welfare State americano) quanto na Europa.” O autor denuncia o “Estado carcerário” que substitui por vezes o Estado provedor: 5% dos homens negros nos Estados Unidos estão nas prisões.(765)
Há portanto grandes ganhos de produtividade social através da reorientação dos recursos e da taxação do seu uso especulativo e improdutivo. Um outro vetor importante do imposto sobre as fortunas é a transparência criada. Hoje, com as pesquisas do Tax Justice Network e outras fontes sabemos que entre um terço e metade do PIB mundial se esconde em paraísos fiscais, gerando uma desorganização planetária ao deformar os tributos pagos nos países de origem, abrindo inclusive as portas para tráfico de armas e de drogas, além evidentemente da própria evasão dos impostos por parte de quem mais deveria pagá-los.[10]
Daí o caminho das propostas do livro, no sentido de se criar um imposto progressivo mas muito baixo, para começar a organizar o gigantesco caos planetário criado. Esta proposta, na realidade, se aproxima aqui da Taxa Tobin, que seria uma taxação de transações financeiras internacionais, gerando recursos sem dúvida, mas antes de tudo permitindo o registro dos fluxos. Conforme vimos, um exemplo de imposto possível seria de isenção ou 0,1% abaixo de 1 milhão de euros, de 1% entre 1 e 5 milhões de euros, e de 2% entre 5 e 10 milhões e assim por diante.(943)
Mas o argumento mais forte é que a imposição deste capital parado, que rende sem que as pessoas precisem organizar a sua utilização produtiva, rendendo por aplicações especulativas e frequentemente por simples transferência dos nossos impostos (como é o caso da nossa taxa Selic), tanto permitiria reduzir a dívida pública, como financiar mais políticas sociais, e bancar investimentos tecnológicos e produtivos em geral. O imposto sobre o capital já existe de forma incipiente em diversos países, trata-se de dinamizar uma política que se tornou hoje indispensável no nível planetário.
Utópico? Sem dúvida. Mas já foram utópicos o imposto de renda (“os ricos nunca aceitariam”), a renda mínima, o direito de greve e tantas outras impossibilidades até que as ideias encontraram âncoras na mente das pessoas.

8 Uma utopia útil?
Piketty tem uma posição clara contra os excessos da desigualdade, oferece bases empíricas extremamente sólidas para se entender quão nocivo se tornou para a economia e para a política o reinado dos rentistas, sem ceder a ódios nem preconceitos. No decorrer de todo o texto temos o sentimento de estarmos acompanhando um pesquisador que tem cabeça aberta, e profunda compreensão dos mecanismos econômicos, inclusive da hipocrisia com a qual elites justificam as suas fortunas. É claramente um humanista. Mas classificar a sua obra além disto resiste às nossas divisões ideológicas tradicionais. Claramente, ele quer que o sistema funcione, e demostra cabalmente que como está não funciona.
Por outro lado, ao reunir e organizar um volume absolutamente impressionante de dados, com metodologia muito transparente, inclusive com inúmeras advertências quando os números são pouco seguros, traz o que é a meu ver a ferramenta mais útil que surge nas últimas décadas, para compreender as dinâmicas econômicas, sociais e políticas atuais. É realmente uma obra prima. E como é muito bem escrito, junta-se o útil e o agradável. São 15 anos de trabalho reunidos num volume que se lê em um par de semanas, e se lê porque gera o prazer de entender melhor os nossos dilemas mais significativos.
Em termos ideológicos, Piketty claramente foge às classificações. Sabe perfeitamente que o mundo econômico adoraria declará-lo marxista, para não precisar enfrentar os seus argumentos. O Financial Times se lançou em contestar os números, e se deu mal: o trabalho é sólido. Krugman, Stiglitz, até o Economist tão conservador se dizem impressionados. E os que hesitam a fazer a lição de casa e ler o livro, podem também descartá-lo como reformista. Eu francamente, fiz a lição de casa. E conheço suficientemente a minha área para saber quando encontro boa ciência.
A passagem que talvez melhor situe o autor é onde se refere a “uma utopia útil”. Frente à concentração desmedida e cumulativa da riqueza em poucas mãos, e ao caos que progressivamente se instala, ele considera que a desigualdade se tornou o desafio principal, e o imposto progressivo sobre o capital acumulado a principal ferramenta. Frente aos diversos protecionismos, nacionalismos e controles que alguns países adotam, ele vê este imposto como uma alternativa melhor: “Tais ferramentas representam em verdade substitutos bem pouco satisfatórios à regulação ideal que constitui o imposto mundial sobe o capital, que tem o mérito de preservar a abertura econômica e a mundialização, permitindo ao mesmo tempo regulá-la eficazmente e repartir os benefícios de maneira justa tanto dentro dos países como entre eles. Muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma ilusão perigosa, da mesma forma como o imposto sobre a renda era rejeitado há um pouco mais de um século. No entanto, olhando bem, esta solução é mito menos perigosa do que as opções alternativas.”(837)
Ignacy Sachs se declara um adepto da economia mista, e eu mesmo sigo muito esta linha. Curioso inclusive ler o recente documento oficial que traça a orientação atual da China: “O sistema econômico da China se apoia na propriedade pública servindo como sua estrutura principal mas permitindo o desenvolvimento de todos os tipos de propriedade. Tanto a propriedade pública como não pública são componentes-chave da economia socialista de mercado”. Trata-se aqui de uma “economia de propriedade diversificada” (diversified ownership economy).[11] Ultrapassando as grandes simplificações ideológicas do século passado, buscamos hoje articulações inovadoras.
A O “cor” política de Piketty parece se refletir nesta passagem da parte final do livro: “O Estado-Nação permanece sendo um nível pertinente para modernizar profundamente numerosas políticas sociais e fiscais, e também numa certa medida para desenvolver novas formas de governança e de propriedade partilhada, intermediária entre a propriedade pública e privada, que é um dos grandes desafios do futuro. Mas somente a integração política regional permite considerar uma regulação eficaz do capitalismo patrimonial globalizado do século que se inicia”.(945)
Aqui se caracteriza uma fase do capitalismo (patrimonial globalizado), a expressão das diferentes escalas territoriais (o Estado-Nação e a política regional), e a articulação de diversas formas de propriedade, em particular a “propriedade partilhada”. Isto a meu ver caracteriza mais os desafios do que propriamente uma tomada de posição, mas também nos traz toda a complexidade da transição atual, em que a política nacional não consegue regular uma economia que se globalizou, em que o poder financeiro passou a dominar não só a economia produtiva mas os próprios mecanismos democráticos, em que se misturam formas diversificadas de propriedade (pública, privada, associativa), de gestão (concessões, partilhas, cogestão), de controle (competência local, nacional, regional) e de marco jurídico (do local até o global). A propriedade já não é suficiente para definir o tipo de animal econômico que temos pela frente. Podemos ter um hospital de propriedade pública, gerido em regime de concessão a uma cooperativa de médicos, sob controle de um conselho municipal de saúde, no quadro de um marco regulatório estadual ou federal. Ou outras combinações. É a era da sociedade complexa. No entanto, o “norte” permanece: não podemos continuar a destruir o planeta em proveito de uma minoria que desarticula inclusive os processos produtivos.
Em termos teóricos, eu colocaria Piketty na linha relativamente mais próxima, que é a da economia institucional. Ele não busca derrubar o capitalismo, busca devolver ao nível político, que é onde podemos ter uma certa democracia, um papel regulador sobre o conjunto do processo. Eu tenho trabalhado isto na linha da “Democracia Econômica”, ou seja, na visão de que a própria economia tem de ser democratizada, com novos mecanismos de regulação, transparência, participação, controle democrático. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes, no texto Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, tentamos delinear eixos propositivos nesta linha.[12]
O trabalho do Piketty e de sua equipe não é uma proposta revolucionária, mas ajudou imensamente a tornar o meio do campo mais claro. Nos dá instrumentos para pensarmos as ferramentas, as alternativas. Para as novas construções, a sua proposta central, que é de um imposto progressivo global sobre o capital, torna-se um ponto de referência necessário. Acoplada a esta proposta, e explicitada em todo o livro, está a necessidade de gerar os sistemas informativos que permitam gerar luz nesta caixa preta, coisa que pode ser começada em nível nacional, mas que hoje exige um sistema mundial de informação e controle de fluxos. Fica, naturalmente, a grande pergunta: o marco político-institucional presente comporta este tipo de modestos avanços?
Ladislau Dowbor é professor de economia da PUC de São Paulo, consultor de diversas agências das Nações Unidas, e autor de numerosos estudos disponíveis em http://dowb.or.org. Contato ldowbor@gmail.com

[1] Thomas Piketty – Le capital au XXIº siècle – Paris, Seuil, 2013 (edição em inglês e em espanhol disponíveis online, em português prevista para novembro)
[2] Sobre este tema, ver o nosso Democracia Econômica, Ed. Vozes 2012,http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/12-DemoEco1.doc
[3] Sobre estes dados, ver o excelente relatório da OXFAM, 2014,http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2014/01/www.oxfam_.org_sites_www.oxfam_.org_files_bp-working-for-few-political-capture-economic-inequality-200114-en.pdf ; a tabela do Crédit Suisse está na p. 9 do relatório.
[4] Piketty aponta “o interesse em se representar assim a evolução histórica da relação capital/renda e de se explorar desta maneira as contas nacionais em termos de estoque e de fluxo”. Thomas Piketty, Le Capital au XXIº Siècle, p. 305.
[5] Ver Rede de Poder Corporativo Mundial, 2012, http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[8] Amir Khair, O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2012; ver também A taxa Selic é o veneno da economia,http://criseoportunidade.wordpress.com/2014/04/09/a-taxa-selic-e-o-veneno-da-economia-entrevista-especial-com-amir-khair-abril-2014-2p/
[9] Uma sistematização particularmente bem apresentada destas novas tendências pode ser encontrada no documento da CEPAL, das Nações Unidas, La Hora de la Igualdad, com versão abreviada em português.

domingo, 24 de agosto de 2014

Supercapitalismo

Supercapitalismo: a transformação da sociedade
 
Por Ladislau Dowbor, novembro de 2009
 
O estudo de Robert Reich, “Supercapitalism”, é sem dúvida mais ambicioso que seu anterior “O futuro do sucesso”. Agora ele foca o conjunto das nossas relações econômicas, sociais e culturais, partindo do mesmo capital de conhecimento que lhe foi dado nos anos que passou tentando implementar uma política mais digna nas relações econômicas, no quadro do governo Clinton. Reich sente na ponta dos dedos como se dão as estruturas de poder realmente existentes no que chamou de Supercapitalismo.
Este supercapitalismo, na realidade, é simplesmente o vale-tudo econômico e financeiro que se instalou no quadro do que temos chamado de globalização, e cuja lógica interna o autor destrincha de maneira impressionantemente coerente. Não é aqui um comentário simpático sobre um livro simpático: Reich nos traz realmente uma compreensão das dinâmicas, com inúmeros exemplos práticos de empresas e comportamentos bem documentados, e o tipo de desafios que enfrentamos torna-se muito mais claro. Além do mais, Reich escreve de maneira excepcional: um comentarista do San Francisco Magazine escreveu sobre esta obra: “Reich faz parte de uma espécie muito exótica: um economista que sabe escrever”.
Reich parte dos bastidores: não vai culpar Margareth Thatcher, Ronald Reagan ou Milton Friedmann pelo fim dos Anos Dourados (1945-1975, que ele aliás qualifica de anos “não tão dourados”), e sim vai buscar as causas nas transformações tecnológicas, na globalização resultante, e no vale-tudo das guerras intercorporativas que de certa forma aniquilou as capacidades dos governos fazerem política econômica no sentido amplo. E o autor analisa extensamente a base política para este processo: o consumismo dos prósperos, que falam mal das truculências da Wal-Mart mas aproveitam os seus preços, e o interesse dos investidores que adoram o meio-ambiente mas compram ações da Exxon-Mobile porque rendem mais.
Gerou-se assim um esquizofrenia social, na medida em que como consumidores queremos o melhor negócio, como investidores o melhor retorno, enquanto como cidadãos queremos uma sociedade decente e sustentável. No centro da dinâmica, temos a apropriação dos políticos através do financiamento privado das campanhas, e a monopolização da agenda do congresso e do executivo pelos lobbies dos grandes grupos empresariais, com as suas gigantescas campanhas (a indústria farmacêutica contra a regulação dos medicamentos, da indústria da saúde contra a saúde pública etc.).
O mecanismo de mercado, que sobrevivia nos “Anos não tão dourados” mediante acordos relativamente equilibrados entre empresas, Estado e sindicatos, alimentando uma ampla classe média, já não nos protege. Wal-Mart (e outros tantos) esmagam os produtores ao usar o seu poder para reduzir os prêços na origem, e navegam na satisfação dos compradores e dos acionistas. Os jornais louvam. Os consumidores se lambuzam. Gera-se uma classe de rentistas prósperos e a correspondente concentração de renda. O meio-ambiente sofre e o consumismo leva a impasses planetários. Mas o baile continua.
O espaço político local de regulação desaparece. “Pittsburgh já abrigou as fábricas e operários que a Alcoa então precisava. Mas agora, esses tipos de bens podem ser encontrados em qualquer lugar, porque as cadeias globais de suprimentos da Alcoa os fornecem sem esforço nenhum. Executivos da empresa negociam rotineiramente com o mundo todo. Tudo o que a companhia precisa pode ser encontrado em Nova York, onde os executivos da Alcoa têm acesso imediato aos melhores bancos, advogados, consultores e profissionais de comunicação. Esse quadro de especialistas, junto com o time da Alcoa, implanta uma cadeia global de suprimentos e colocam no mercado os produtos e serviços da companhia de forma a satisfazer os investidores (representados por Wall Street) e os consumidores da Alcoa (representados pelo Wal-Mart e outras grandes redes varejistas) na sua luta diária para obter grandes ganhos”. (119)
Reich, por experiência adquirida, mas também por pesquisa, tem forte desconfiança de que os comportamentos irão mudar pela boa vontade das corporações. Inclusive, segundo ele, porque os investidores “não sabem ou não se importam”(176). O autor cosntata que “A maioria dos ‘fundos socialmente responsáveis’conta com a participação de praticamente todas as grandes empresas em uma típica carteira de fundo mútuo. Em 2004, trinta e três fundos socialmente responsáveis estavam ligados às ações do Wal-Mart, vinte e três ao Halliburton, quarenta à ExxonMobil, e quase todos à Microsoft, em sua tentativa de resistir ao controle de mercado. No início dos anos 2000, muitos possuíam ações da Enron, da WorldCom e da Adelphia, e nenhuma dessas empresas eram conhecidas por prestarem serviços públicos.”(177)
Malvadeza das corporações? Não, lógica do sistema. Permite remunerar bem os acionistas e oferece bons preços aos consumidores. Isto articula a poderosa minoria dos que concentram ações, e uma classe mais ampla de afortunados que têm capacidade de compra. E um CEO que não alimentar estes interesses perde o cargo. A solução não está (ou não apenas) na empresa ser decente, mas em haver leis que assegurem que esta decência seja respeitada, e não dependa da boa vontade passageira de um executivo. Inclusive, porque na dinâmica atual do mercado, quem incorrer em custos maiores por respeitar determinados valores sociais, vai perder mercado, e logo perder o emprego.
Reich tem aqui um surto de sinceridade: “Por muitos anos tenho pregado que responsabilidade social e lucro são conquistados no longo prazo. Isso porque uma empresa que respeita e valoriza seus funcionários, a comunidade e o meio ambiente certamente ganha o respeito e a gratidão dos funcionários, e de toda a comunidade – o que, eventualmente, ajuda o bottom line. Mas eu nunca consegui provar essa proposição, nem encontrar um estudo que a confirme.” (171)
As soluções, segundo Reich, não estão na recuperação da ética corporativa, mas no resgate da capacidade do Estado negociar os pactos necessários para uma sociedade mais equilibrada. Isto envolve, antes de tudo, tirar o dinheiro corporativo de dentro das campanhas eleitorais, o dinheiro do lobby do gabinete dos senadores e dos juizes, resgatando um equilíbrio que desapareceu, entre as nossas dimensões como consumidores, aplicadores financeiros, e cidadãos.
A perda da nossa dimensão cidadã leva à detorioração dos nossos interesses como sociedade, e exacerbação dos nossos interesses como indivíduos. “Se a maioria das pessoas sempre tem duas opiniões sobre o Supercapitalismo, porque então o lado dos consumidores-investidores sempre ganha? A resposta é que os mercados se tornaram extremamente eficientes em oferecer as melhores ofertas para os desejos individuais, mas são muito ruins em atingir os objetivos que gostaríamos de alcançar juntos. Enquanto o Wal-Mart e Wall Street agregam as exigências dos investidores e consumidores em formidáveis blocos de poder, as instituições que agregam os valores dos cidadão estão caindo.” (126)
Alternativas? São variadas e interessantes, e aqui aflora o ministro do trabalho que foi: “A única maneira para os cidadãos vencerem os consumidores e investidores em si mesmas é por meio de leis e regulações que façam de nossas compras e investimentos uma escolha ao mesmo tempo social e pessoal. Uma mudança na legislação trabalhista que facilite a negociação de melhores condições para os trabalhadores pode, por exemplo, aumentar ligeiramente o preço de produtos e serviços que se compra – especialmente nos serviços locais que não fazem parte da concorrência global. Meu consumidor interior não vai gostar muito disso, mas o cidadão em mim acredita que esse é um preço justo a se pagar. Eu também defendo um pequeno imposto sobre as vendas de ações, com o objetivo de diminuir ligeiramente o movimento de capitais para que as pessoas e as comunidades tenham um pouco mais de tempo para se adaptar às novas circunstâncias. Isso poderia reduzir o retorno no meu fundo de aposentadoria por uma pequena fração, mas o cidadão em mim acha que vale a pena. Pela mesma razão, parece-me que deveria haver “disjuntores” para prevenir que o número de trabalhadores em uma empresa grande e rentável caia mais do que uma certa proporção no decorrer de um ano.” (127)
“Eu não iria tão longe na re-regulação do setor de transportes aéreos ou em estabelecer um livre comércio com a China e a Índia – isso custaria-me muito mais como consumidor – mas eu apoiaria mais um seguro-desemprego combinado com um seguro-salarial e treinamento profissional para aliviar a dor dos trabalhadores que sofrem com as consequências da desregulamentação do comércio. E eu acho que os tratados comerciais deveriam exigir que todas as nações participantes permitam que seus cidadãos organizem sindicatos e estabeleçam salários mínimos, que seriam a metade do seu ganhos médios. Eu também apoiaria uma licença familiar remunerada para que os trabalhadores possam atualizar seus conhecimentos ou terem tempo para cuidar de um recém-nascido ou de um parente doente. Estas disposições podem acabar por me custar algum dinheiro, mas o cidadão em mim acredita que elas valem o preço. Não sei como vamos criar bons empregos de classe média se nossas escolas não forem muito melhores – o que exigirá pagamento bom o suficiente para atrair jovens homens e mulheres talentosos para as salas de aula do nosso país (a lei da oferta e da procura não foi revogada na porta da escola) e contratar mais professores para que menos crianças fiquem em cada sala de aula. Como pagar isso? Por meio de um sistema fiscal mais progressivo. O salário líquido de CEOs, banqueiros, gestores de fundos e celebridades chegou a um nível tão astronômico que um imposto mais elevado sobre a remuneração não desencorajaia as pessoas talentosas de perseguir esses trabalhos. Finalmente, eu dissociaria a saúde e o trabalho, e utilizaria a poupança fiscal – lembre-se que um plano de saúde pago pelo empregador é um benefício livre de impostos – para dar acesso ao seguro saúde a todos, sem exceção.”
Há muitas outras sugestões no texto. No conjunto, buscam o reequilibramento geral do sistema através do resgate da autonomia e capacidade negociadora do Estado, e do resgate da nossa dimensão cidadã, relativamente às nossas dimensões como consumidores e aplicadores financeiros. A meu ver, trata-se de um livro de fundamental importância. Li durante um fim de semana, texto bem escrito se lê com prazer, e o objetivo do livro, aliás, é justamente devolver esta dimensão às nossas vidas.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O fenômeno da multiplicação dos empregos


Ronaldo Lemos
 

Laurel Ptak criou uma obra polêmica. A artista escreveu um manifesto chamado "Salários pelo Facebook" exibida no museu da Universidade da Califórnia em San Diego. De acordo com ela, todo usuário do site deveria receber um "salário" por conta do trabalho gratuito feito para ele (veja o texto em wagesforfacebook.com )
Apesar do exagero da obra, não dá para negar que o trabalho neste século está mudando completamente. Muita gente hoje trabalha das 8h às 18h para seus empregadores e quando chega em casa trabalha das 18h até tarde para várias empresas da internet.
Mesmo depois da jornada "oficial", continuamos a produzir valor para alguém quando usamos serviços on-line. Essa produção acontece até nos tempos mortos da vida. Está esperando o elevador? Dá tempo de fazer um ou dois posts e gerar centavos em algum lugar.
Na França, o tema ganhou contornos institucionais. Um relatório do governo francês chega a debater se o imposto sobre folha de pagamento deveria ser estendido a esse "trabalho" feito nas redes sociais. A premissa é de que seríamos todos funcionários (ou "microfuncionários") de várias empresas de tecnologia. Por conta disso, o valor gerado nessas atividades seria passível de tributação, tal como acontece na folha de pagamento "tradicional".
É claro que essa discussão é complexa. E que o tema precisa ser visto com lentes mais sofisticadas do que aquelas usadas no passado. Mas é fato que as fronteiras entre trabalho, lazer e consumo estão deixando de existir.
Um relatório do Instituto de Museus e Bibliotecas dos EUA chama atenção justamente para o fenômeno da multiplicação dos empregos. Se no século passado esperava-se que as pessoas tivessem no máximo 2 empregos ao longo da vida, hoje a expectativa é que sejam entre 10 e 15.
Nesse contexto, deveria ser aceitável atualizar o currículo profissional para incluir outras habilidades "profissionais". Por exemplo, além de colunista da Folha, poderia adicionar: curador de conteúdo para o Facebook, organizador de informações para o Google, jornalista cidadão para o Twitter e o WhatsApp, corretor de imóveis para o Airbnb, colunista social para o Instagram, agente de talentos para o Kickstarter, DJ para o Spotify e gestor de banco de currículos para o Linkedin.
Há quem proponha que o caminho é construir um novo pacto social sobre a criação e uso da informação, reafirmando a separação entre trabalho e vida. Tarefa que hoje parece utópica. Alguém conceberia um acordo social pelo qual ninguém mais precisaria ler ou responder mensagens nos fins de semana? Ou fora do horário de trabalho? Ao menos, são provocações que sinalizam um desejo de que nossa relação com a informação torne-se também sustentável.
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JÁ ERA
Achar que games são mero entretenimento
JÁ É
Games sendo reconhecidos como plataforma para temas "sérios"
JÁ VEM
"Thralled", game-ensaio sobre o período da escravidão no Brasil

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O antropólogo contra o Estado



"Foi preciso a esquerda para realizar o projeto da direita" 
 
 
Marcio Ferreira da Silva, um sujeito grandalhão e bem-humorado, professor de antropologia na Universidade de São Paulo, tentava encontrar um volume nas estantes de seu apartamento. Depois de perscrutar as prateleiras da sala, sumiu por um instante no corredor que levava aos quartos. “Achei”, exclamou. Trouxe lá de dentro uma edição especial da revista L’Homme, publicada no ano 2000, em que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aos 91 anos, comentava os avanços recentes de sua disciplina.
 
A reportagem é de Rafael Cariello, publicada na Revista Piaui, dezembro de 2013.
 
“Olha o que o bruxo escreveu!”, disse o antropólogo da USP. Passou então a ler em voz alta os parágrafos finais de um artigo em que o etnólogo francês exalta o trabalho dos “colegas brasileiros”, atribuindo a eles a descoberta de uma metafísica própria aos índios sul-americanos. “A filosofia ocupa novamente o proscênio da antropologia”, escreveu Lévi-Strauss. “Não mais a nossa filosofia”, acrescentou, mas a filosofia dos “povos exóticos”. O texto que Marcio Silva tinha nas mãos indicava que algo havia mudado na relação da academia brasileira com a metrópole – uma relação que poderia ser descrita como uma via de mão única, ou quase isso, ao longo da maior parte do século XX.
Num artigo que causou certa discussão, escrito em 1968 para a aut aut, prestigiosa revista italiana de filosofia, o filósofo Bento Prado Jr. registrou que resenhar, naquela publicação, as obras de seus pares produzidas no Brasil “não implicaria nenhuma informação para o leitor europeu”. E argumentava: “Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo.” Mas não havia novidade ou contribuição maior: “Quase sempre, o que se faz é divulgação.” Três décadas depois, Lévi-Strauss identificava um conjunto de ideias na fronteira da antropologia e da filosofia que, a seu ver, o leitor europeu precisava conhecer.
Marcio Silva havia retirado outro volume da estante. Leu o título: Transformations of Kinship [Transformações do Parentesco]. “É a última grande compilação de estudos da área. O último grande livro do século XX. Tem um artigo do Eduardo”, disse, referindo-se ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, nos anos 80. Abriu o livro nas páginas finais e procurou referências bibliográficas. Encontrou os nomes de ex-alunos de Viveiros de Castro. “Olha aqui o Carlos Fausto. Citado em português! AAparecida Vilaça também.” O próprio Silva também constava da lista. “Foi por causa do Eduardo que os ‘colegas brasileiros’ passaram a existir”, disse. “É muito fácil aferir isso. Basta folhear as principais revistas da disciplina. Isso mudou. E mudou por causa dele.”
Eduardo Viveiros de Castro mora com a mulher, Déborah Danowski, e a única filha deles, Irene, de 18 anos, num prédio antigo, estilo art déco, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No apartamento de pé-direito alto, estantes de livros cobrem as paredes já no pequeno corredor que serve como hall de entrada. Na prateleira de uma delas, na sala, vê-se uma foto antiga do antropólogo, na casa dos 20 anos, com o cabelo comprido. Ao lado, um retrato de Bob Dylan.
Numa noite de outubro do ano passado, Viveiros de Castro criticava o avanço do governo de Dilma Rousseff sobre a Amazônia, seus projetos de estradas e usinas hidrelétricas, benefícios ao agronegócio – e descaso com os direitos dos povos indígenas. Sentado no sofá, o antropólogo comparou as ambições desenvolvimentistas da atual presidente à megalomania da ditadura, com seu ideário de “Brasil Grande”.
“Hegel deve estar dando pulinhos de alegria no túmulo, vendo como a dialética funciona”, ele disse. “Foi preciso a esquerda, uma ex-guerrilheira, para realizar o projeto da direita. Na verdade, eles sempre quiseram a mesma coisa, que é mandar no povo. Direita e esquerda achavam que sabiam o que era melhor para o povo e, o que é pior, o que eles pensavam que fosse o melhor é muito parecido. Os militares talvez fossem mais violentos, mais fascistas, mas o fato é que é muito parecido.”
Apesar da contundência, falava com calma, o tom de voz baixo. “O PT, a esquerda em geral, tem uma incapacidade congênita para pensar todo tipo de gente que não seja o bom operário que vai se transformar em consumidor. Uma incapacidade enorme para entender as populações que se recusaram a entrar no jogo do capitalismo. Quem não entrou no jogo – o índio, o seringueiro, o camponês, o quilombola –, gente que quer viver em paz, que quer ficar na dela, eles não entendem. O Lula e o PT pensam o Brasil a partir de São Bernardo. Ou de Barretos. Eles têm essa concepção de produção, de que viver é produzir – ‘O trabalho é a essência do homem’. O trabalho é a essência do homem porra nenhuma. A atividade talvez seja, mas trabalhar, não.”
Viveiros de Castro não é um homem alto. “Oficialmente”, mede 1,68 metro, mas diz que a idade já deve lhe ter roubado 1 ou 2 centímetros. Tem 62 anos, o cabelo e a barba grisalhos. O que se destaca em sua fisionomia é o nariz grande, reto, quase um triângulo retângulo aplicado ao rosto. Seus gestos são contidos e ele fala numa versão mais atenuada, mais diluída, do sotaque carioca. Em contraste com o discurso combativo, faz lembrar, na prosódia e nos modos, um diplomata. Afável, o antropólogo recusa a imagem: a comparação com a elite burocrática do país – espécie de símbolo da vida burguesa bem-comportada – não lhe agrada.
Num texto memorialístico recente, Viveiros de Castro contabilizou dezesseis anos de estudo, do primário à faculdade, em duas tradicionais instituições cariocas: o Colégio Santo Inácio e a Pontifícia Universidade Católica do Rio. “Dois estabelecimentos privados de classe média e alta – ninguém é perfeito – de minha cidade natal, ambos dirigidos pelos padres jesuítas”, escreveu. Seu pai pertencia a uma família de “políticos e juristas”. Augusto Olympio Viveiros de Castro, bisavô de Eduardo, foi ministro do Supremo Tribunal Federal e hoje é nome de rua em Copacabana. Outro bisavô, Lauro Sodré, nome de avenida emBotafogo, foi militar, senador e governador do Pará. Participou da Revolta da Vacina, em 1904 – segundo o antropólogo, por ser positivista e acreditar que o Estado “só podia chegar até a pele” dos cidadãos. “Um argumento curioso”, comentou. “Equivocado, no caso da vacina. Mas tem seu interesse retórico. Tendo a simpatizar com ele. Acho que o Estado devia parar muito antes, bem longe da pele.”
Do ponto de vista intelectual, Viveiros de Castro é herdeiro de cientistas sociais que ajudaram a derrubar o senso comum de que os povos indígenas são marcados pelo atraso em relação ao mundo ocidental. Essas sociedades sempre foram descritas como “primitivas” por carecerem de instituições modernas – como o Estado e a ciência.
Foi Claude Lévi-Strauss quem aposentou definitivamente a ideia de que os povos sem escrita seriam menos racionais do que os europeus. Os índios ocupavam um lugar próximo, nessa visão de mundo que ele ajudou a desfazer, ao das crianças, ou dos loucos. O pesquisador francês argumentou que havia método e ordem nas aparentemente caóticas associações que esses povos faziam – entre tipos de animais, acidentes geográficos, corpos celestes e instituições sociais. Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo sentido, de seu excesso. O que nenhuma sociedade humana tolera, dizia Lévi-Strauss, é a falta de sentido. O “pensamento selvagem”, assim, é totalizante, e procura, por meio de analogias, uma compreensão completa de todo o universo, estabelecendo relações entre os diferentes tipos de fenômenos. Um determinado rio se distingue de outro de maneira análoga ao modo como uma espécie animal é diferente de outra, ou um grupo social, de seus vizinhos. Nada pode escapar à sua malha de significados.
Nos anos 70, o antropólogo francês Pierre Clastres argumentou que a falta de Estado nos povos das terras baixas sul-americanas – em contraste com a forte centralização política de seus vizinhos andinos – não seria uma carência, mas uma escolha deliberada, coletiva. Há entre eles, com frequência, alguma forma de chefia. Em troca de prestígio, o chefe ocupa um lugar privilegiado, e apartado, em relação aos demais integrantes da sociedade. Pode falar à vontade. Mas ninguém lhe dá ouvidos. “O chefe por vezes prega no deserto”, escreveuClastres. Do chefe é exigida uma generosidade maior, que o obriga a distribuir bens para o restante da sociedade. Lévi-Strauss, ao falar dos Nambikwara, dizia que “a generosidade desempenha um papel fundamental para determinar o grau de popularidade de que gozará o novo chefe”.
Por mais populares que sejam, contudo, tais líderes não dispõem de nenhuma capacidade coercitiva. O chefe não manda. Tudo se passa como se essas sociedades criassem uma posição privilegiada, o lugar exato onde o Estado poderia nascer, para então esvaziá-la de poder, numa espécie de ação preventiva. Foi o que Clastres chamou de “sociedades contra o Estado”. Defendeu a ideia, em um de seus artigos, argumentando que “só os tolos podem acreditar que, para recusar a alienação, é preciso primeiro tê-la experimentado”.
Naquela mesma década de 70, o norte-americano Marshall Sahlins se ocupou da dimensão econômica dessas sociedades. Procurou analisar as mais “pobres” dentre elas, os grupos nômades de caçadores-coletores. Segundo a visão então consagrada, tais sociedades mal conseguiriam assegurar a própria subsistência. Com técnicas pouco desenvolvidas e baixa produtividade, por certo não havia nelas produção excedente, poupança, investimento. Viviam da mão para a boca.
Ocorre que o tempo dedicado ao trabalho também era pequeno. Esses estranhos “primitivos” pareciam ser ao mesmo tempo miseráveis e ociosos. O que Sahlins argumentou é que não fazia sentido, para grupos nômades, acumular bens – quanto menos tivessem que carregar, tanto melhor. Tampouco era lógico produzir estoques, quando esses estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar pouco era uma escolha, e aqueles grupos constituiriam o que o antropólogo chamou de primeira “sociedade de afluência”.
Em alguns de seus textos, Viveiros de Castro cita Lévi-Strauss e Pierre Clastres como paixões intelectuais. Não chega a fazer o mesmo com Sahlins, mas o ex-aluno dos padres jesuítas retomou o autor norte-americano, num ensaio recente, para argumentar que, junto aos outros dois, ele contribuiu para colocar em questão “a santíssima trindade do homem moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo dateologia capitalista”. Em vez de símbolo de atraso, a “sociedade primitiva”, escreveu o antropólogo carioca, “é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo”.
O antropólogo e sua mulher mantêm uma casa simples num condomínio de classe média alta, em Petrópolis, na serra fluminense. Costumam passar os finais de semana lá. No centro do terreno se ergue uma espécie de pequeno Pão de Açúcar, uma pedra grande, com cerca de 5 metros de diâmetro, que se mostrou providencial para baratear o preço do lote. “O pessoal por aqui quer casa com cinco salas, cinco suítes”, disse Viveiros de Castro. “Esse pedregulho atrapalha.” Nos fundos, fica uma obra a que ele se dedica com afinco e que parece lhe dar grande orgulho: um jardim-pomar.
Num domingo de céu sem nuvens, ele caminhava por entre os arbustos distribuídos no terreno gramado. Levava um cajado de madeira quase do seu tamanho. Usava-o sobretudo para apontar as frutas de nomes estranhos, que eram sempre aparentadas de outras, mais conhecidas. “Essa é da família da pitanga”; aquela outra, “parente da lichia”; uma terceira, “deliciosa, com o gosto entre a goiaba e o abacaxi”. Déborah acompanhava o percurso. Ela é professora de filosofia na PUC do Rio. Os dois são casados há quase três décadas. Quando voltamos para a sala da casa, pedi que Viveiros de Castro falasse sobre a ideia que o projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos”, a que se referia Lévi-Strauss, surgiu em 1996. Ganhou o nome de “perspectivismo ameríndio”.
Fazia já alguns anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço específico do pensamento indígena nas Américas. Em contraste com a ênfase dada pelas sociedades industriais à produção de objetos, vigora entre esses povos a lógica da predação. O pensamento ameríndio dá muita importância às relações entre caça e caçador – que têm, para eles, um valor comparável ao que conferimos ao trabalho e à fabricação de bens de consumo. Diferentes espécies animais são pensadas a partir da posição que ocupam nessa relação. Gente, por exemplo, é ao mesmo tempo presa de onça e predadora de porcos.
Duas alunas suas, Aparecida Vilaça e Tânia Stolze Lima, preparavam, naquela ocasião, teses de doutorado que chamavam a atenção para outra característica curiosa do pensamento de diferentes grupos indígenas. Tânia pesquisava os Juruna, do Xingu;Aparecida, os Wari, em Rondônia. Pois bem: de acordo com os interlocutores de ambas, os animais podiam assumir a perspectiva humana. Tânia e Viveiros de Castro fizeram um levantamento que indicava a existência de ideias semelhantes em outros grupos espalhados pelas Américas, do Alasca à Patagônia. Segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos.
Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente é quem ocupa a posição de sujeito. No mundo amazônico, escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias”.
Ao se verem como gente, os animais adotam também todas as características culturais humanas. Da perspectiva de um urubu, os vermes da carne podre que ele come são peixes grelhados, comida de gente. O sangue que a onça bebe é, para ela, cauim, porque é cauim o que se bebe com tanto gosto. Urubus entre urubus também têm relações sociais humanas, com ritos, festas e regras de casamento. O mesmo vale para peixes entre peixes, ou porcos-do-mato entre porcos-do-mato.
Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se os índios pensassem o mundo de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”. Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos os povos do planeta. O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade para outra. Para os povos ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma única cultura, que é sempre a mesma para todo sujeito. Ser gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça, caçar porco.
Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que é construído, dependendo do observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no corpo em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira posição, superior e fundadora das outras duas. Ao passarmos de um observador a outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa mudar.
Já fazia alguns minutos que Déborah tinha se enfurnado dentro da casa, enquanto o antropólogo falava de peixes, antas e urubus. Viveiros de Castro disse se lembrar de que estava lendo um ensaio de Lévi-Strauss quando teve o “estalo” que deu origem ao perspectivismo. Fez uma pausa e, sem se levantar da poltrona, chamou pela mulher. “Débi!”Ela apareceu no mezanino, sobre nossas cabeças. O antropólogo voltou a contar a história. “Eu lembro que saí do escritório, onde estava lendo esse texto, e disse à Débi que tinha acabado de ter uma ideia; uma ideia que iria me ocupar por uns dez anos, se eu quisesse tirar todas as consequências dela.” Virou-se para cima e perguntou: “Lembra, Débi?” Do alto do mezanino, ela riu, simpática, e respondeu balançando a cabeça: “Não.”
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago, avalia que as ideias desenvolvidas por Viveiros de Castro a partir do perspectivismo ameríndio dialogam diretamente com boa parte da tradição filosófica ocidental. Ao mesmo tempo, a síntese que ele propôs do pensamento indígena é uma crítica a essa tradição, ao colocar em questão as noções de “natureza” e “cultura” da “vulgata metafísica ocidental”.
Essa capacidade crítica foi logo notada. Durante um debate na Inglaterra, mal a ideia havia sido apresentada, um interlocutor do antropólogo carioca lhe disse que os índios de que ele falava “pareciam ter estudado em Paris”. Reagindo à provocação, Viveiros de Castro comentou que “na realidade havia ocorrido exatamente o contrário: que alguns parisienses”, e ele se referia certamente a Lévi-Strauss, que viveu no Brasil entre 1935 e 1939, “haviam estudado na Amazônia”. E argumentou que sua análise “devia tanto ao estruturalismo francês”, de Lévi-Strauss, quanto este estava em débito com o conhecimento que travara com povos indígenas do Brasil. “Não fora o Pará que estivera em Paris”, disse o antropólogo, “mas sim Paris no Pará”.
Viveiros de Castro promoveu, em relação à filosofia, algo análogo ao que Pierre Clastres eMarshall Sahlins haviam feito em relação ao Estado e à economia de mercado: mostrou que um outro mundo é possível. A ideia recebeu enorme atenção, dentro e fora do país, quase imediatamente após sua formulação. “Na França e na Inglaterra, o Eduardo é altamente respeitado”, declarou a professora da Universidade de Chicago; “basta dizer que na livraria Gibert, em Paris, há uma seção de prateleira com o nome dele.”
Nos Estados Unidos, a resistência ao perspectivismo foi maior, observou Manuela. No final de novembro passado, contudo, após uma conferência de Viveiros de Castro para a Associação Americana de Antropologia, ela me enviou uma mensagem informando que a recepção às ideias dele estava “melhorando bastante”. Mesmo antes disso, de toda forma, o professor brasileiro já contava com defensores importantes. Marshall Sahlins, colega de Manuela em Chicago, considera Viveiros de Castro “o antropólogo mais erudito e original do planeta” da atualidade, tendo inaugurado “uma nova era para a antropologia, com profundas implicações para o resto das ciências humanas e das humanidades”.
Eduardo Batalha Viveiros de Castro nasceu no dia 19 de abril de 1951, no Rio de Janeiro. Passou toda a adolescência na Gávea, Zona Sul da cidade. Nos anos 60, o bairro era uma larga ilha de classe média contida entre a Rocinha, no alto do morro, e o Parque Proletário, uma favela que não existe mais. Eduardo morava numa casa grande de dois andares, movimentada, aberta à vizinhança, com os pais e os cinco irmãos mais novos. A mãe “era dona de casa, formada em letras, como convinha a uma moça de boa família”. O pai, um advogado trabalhista, não dirigia. Nos finais de semana, contratava os serviços de um vizinho taxista para levar a família à praia em Ipanema.
Tampouco tinham tevê – levaram certo tempo até adquirir uma, “meio que obrigando a gente a estudar”. Por outro lado, a biblioteca era boa. “Os livros que não eram brasileiros eram franceses. Aprendi a ler em francês folheando os livros do meu pai. Minha mãe, também, tinha estudado numa escola de freiras francesas. Havia um ruído de fundo em francês na casa.”
Viveiros de Castro não deu muita atenção quando chegou ao bairro a notícia do golpemilitar, em 64: “Eu tinha 13 anos, estava jogando bola.” Seu interesse, além do futebol, eram os livros de divulgação científica. Começou a gostar de música na época em que os discos dos Beatles e dos Rolling Stones desembarcaram no país, e decidiu aprender inglês quando conheceu as canções de Bob Dylan, que ele reputa, ainda hoje, personagem fundamental em sua formação intelectual. “Os discos dele em geral tinham as letras na contracapa. Era só abrir o dicionário.” Foi por meio do cantor norte-americano que o antropólogo descobriu a geração beat, com seus valores libertários, e a contracultura.
Em contraposição à vida alegre da Gávea, o Colégio Santo Inácio, onde estudou até chegar à faculdade, foi um longo “serviço militar”, do qual disse não guardar boas lembranças – nem más. Uma escola exclusivamente masculina, em que a ênfase não estava no ensino religioso, mas na disciplina.
Os anos decisivos foram 1967 e 1968. Interessou-se pelas discussões intelectuais publicadas nos suplementos dominicais da imprensa, tomando o partido da poesia concreta, das revoluções formais e do tropicalismo, contra o que se refere como vertente nacional-populista, “tipo samba de raiz, Tinhorão, CPC – o marxismo cultural, chamemos assim”. Passou a ler obras de linguística, filosofia, poesia brasileira e literatura francesa. Ainda gostava de matemática, carreira que considerou seguir. Desistiu ao se confrontar com um colega que “nadava de costas” na disciplina. “Ele era muito melhor do que eu. Vi que não tinha condições de ser matemático.”
Foi nessa época, disse o antropólogo, que ele descobriu o mundo intelectual “pra valer”. “Comecei também a desenvolver sentimentos antiburgueses. Deixei o cabelo crescer, por assim dizer. Passei a experimentar as drogas, a frequentar ambientes pouco recomendáveis e a ter amigos fora do colégio. Sobretudo um, que foi muito importante para me situar nos debates da época, amigo meu até hoje, que é o Ivan Cardoso, cineasta.”
Quando se referem um ao outro, Viveiros de Castro e o amigo do tempo da adolescência, dois senhores de mais de 60 anos, parecem garotos. Assim que encontrei Ivan Cardosopela primeira vez, em sua casa, em Copacabana, ele foi logo dizendo: “O Viveiros? Eu comia ele.”
Com uma calva pronunciada, o cineasta trazia o cabelo desarrumado nas têmporas e na nuca. Numa sala atulhada de móveis e objetos criados por ele, quadros com esmaecidas bandeirolas de Festa Junina se destacavam. “São Volpis?”, perguntei. “São Ivolpis”, ele respondeu, satisfeito, “Ivolpis!”
Mais conhecido por seu longa O Segredo da Múmia, de 1982, Cardoso foi um inovador formal, rodando filmes de vanguarda em super-8 a partir do final dos anos 60. Viveiros de Castro conta que a preocupação do amigo com a plasticidade das cenas, aliada à paródia das fitas de terror que fazia, levou o poeta e crítico Haroldo de Campos a sintetizar sua obra como “Mondrian no açougue”. “Tenho uma admiração imensa pelo Ivan”, me disse o antropólogo. “Ele, sim, é um artista. Nunca se afastou disso, e tem uma puta imaginação plástica. Eu sou um anão. O Ivan é um gigante.”
Os pais de Ivan Cardoso e de Viveiros de Castro eram amigos. Os dois garotos estudavam em escolas diferentes, mas próximas. O Colégio São Fernando, que Ivan frequentava, ficava em Botafogo, como o Santo Inácio. Cardoso editava um jornal estudantil e convidava artistas plásticos para dar palestras aos alunos. “O Ivan era muito cara de pau”, explicou o antropólogo. “Batia na porta das pessoas. Eu ia um pouco no vácuo dele.” Os dois ficaram amigos de Hélio Oiticica. “Ele gostou da gente”, contou o antropólogo. “Ensinava coisas. Foi um pouco nosso guia no mundo artístico.”
Esticado na cama de seu quarto, Ivan Cardoso lembrou a primeira vez em que encontrou Oiticica. Cardoso havia ligado para o artista, pedindo que falasse a seus colegas, na escola. Recebeu, como resposta, um convite para que fosse a sua casa, no Jardim Botânico – um lugar que mais tarde ele e Viveiros de Castro passariam a frequentar. “A casa do Hélio era estranhíssima. Misturavam-se críticos de arte e malandros do morro. Era um desfile. Na sala, tinha uma tenda. Ele morava com a mãe. Todo mundo queimando fumo, e a mãe dele descia a escada e reclamava: ‘Vocês vão ser todos presos! Eu já chamei a polícia, seus maconheiros!’ A velha sofreu.”
Viveiros de Castro e Hélio Oiticica gostavam de conversar sobre literatura e filosofia. “Os dois já tinham lido tudo. Cheguei à conclusão de que não adiantava mais eu ler. Qualquer coisa, perguntava para eles.” Segundo o cineasta, seu amigo tomava o café da manhã com um livro aberto na mesa. “Ele lia até trepando”, disse, rindo. “Mas não era apenas um intelectual. Ele andava com um canivete de mola. Era transviado também. Uma vez ele arrumou uma confusão desgraçada no baixo Leblon. Arranjou briga, tacou o carro em cima de um desgraçado lá, um elemento nocivo, tipo um ‘bad boyzinho’ desses. Ele sempre foi uma pessoa carismática, e fazia o marketing dele. Fumava Continental sem filtro, que é um destronca peito desgraçado, e era um bom pé de cana. Tomava traçado.”
No meio da conversa, o cineasta quis saber o que eu achava do amigo intelectual. Em silêncio, sério, prestou atenção à resposta. “Então é isso”, concluiu. “O Caetano está perdendo tempo com esse Mangabeira Unger. É um merda.”
Em 1969, Viveiros de Castro começou a estudar na PUC. Cursou jornalismo por um ano. No ciclo básico, se interessou por ciências sociais e pediu transferência. Parte considerável do que era lecionado no novo curso, no entanto, não o agradava. “O que o pessoal estava ensinando era teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso, burguesia nacional, teoria da revolução – quem seria o guia da mudança, se o operariado ou o campesinato”, contou.
“Eu, na verdade, tinha horror àquela coisa. Não tinha saco para a teoria da dependência e não gostava da teoria do Brasil. Achava de uma arrogância absurda enunciar a verdade sobre o que o povo deve ser, o que o povo deve fazer. Isso de teorizar o Brasil é uma coisa que a classe dominante sempre fez. Quem fala ‘Brasil’ é sempre alguém que está mandando. Seja para fazer revolução de esquerda, seja para soltar os gorilas da ditadura na rua. E aqueles caras… Eu ficava pensando: eles querem as mesmas coisas que os militares. Só que querem ser eles a mandar. Vai ser um quartel, isso aqui.”
O tema mobiliza Viveiros de Castro: esquerda tradicional, “careta”, de um lado; esquerda existencial, “libertária”, de outro. A divisão, ele observa, não era apenas intelectual. Definiu trajetórias pessoais, “como ir para a clandestinidade e para a luta armada; ou ir para a praia, fumar maconha, tocar violão”. Num texto de memórias, disse admirar seus “companheiros mais corajosos” que se arriscaram na clandestinidade. Viveiros resolveu ir à praia.
Em 1970, um píer foi construído em Ipanema, por ocasião das obras para lançar o esgoto longe da costa. Moveram a areia e surgiram morrotes altos, que mais tarde ganhariam o apelido de “dunas do barato”. Mudanças no fundo do mar melhoraram as ondas, atraindo os surfistas. Com eles vieram os hippies e o que havia de contracultura no Rio de Janeiro de então. O jovem estudante da PUC também fazia ponto por lá.
“Como diz o Ivan Cardoso, esse era o tempo em que a gente era feliz e sabia. Eu ia nos finais de semana. Tinha muita droga. Muita maconha, muito ácido. Foi um momento importante porque houve uma interpenetração cultural entre o morro e a baixada, por causa do pessoal que vendia pó, vendia fumo.” Ele próprio, segundo disse, não gostava particularmente das substâncias em voga naquele momento. “Eu sou uma pessoa medrosa. Experimentei uma ou duas vezes LSD. Não gostei, fiquei paranoico. Maconha eu usei muito, mas mais porque era coisa da época. O efeito em si… Me dava sono.”
Seu perfil de usuário era mais clássico: álcool, tabaco e cocaína. “Não era maconha, comida vegetariana, ácido. Eu era mais década de 50 do que década de 70. Fui quase viciado em cocaína. Parei porque achei que não ia aguentar fisicamente. É uma droga horrível. Ela te transforma num monstro narcísico. Dá uma sensação de onipotência, que na verdade é uma ‘oni-impotência’. Quando você está mais onipotente é na verdade quando você está completamente impotente: você fica só falando merda, fazendo besteira, e também não é um estimulante sexual. É uma droga idiota, fascista. Mas eu gostava. Eu usava.”
Entre o píer e a PUC, Viveiros de Castro conheceu a obra de Lévi-Strauss, que começava a ser lida no Brasil. O crítico literário Luiz Costa Lima, professor na mesma PUC, disse ter tomado contato com as ideias do antropólogo francês em meados dos anos 60, “quando começou a moda do estruturalismo”. Atraído pelo rigor formal das análises lévi-straussianas, passou a estudá-las a sério. O que aprendia, ensinava na faculdade. Viveiros de Castro seguiu seu curso. “O estruturalismo fazia parte daquilo que a esquerda tradicional considerava anátema”, disse o ex-aluno. “Falavam que era burguês, formalista, que negava a história. Tinha uma série de palavras de ordem que você ouvia.”
Costa Lima e o aluno se tornaram amigos. Formaram um grupo de estudos e se dedicaram por alguns anos, duas vezes por semana, à leitura sistemática das Mitológicas, a obra em que Lévi-Strauss analisa a lógica de mitos ameríndios, reunindo rigor formal e atenção aos detalhes concretos, significativos nas narrativas: cores, cheiros, comportamentos dos animais, detalhes escatológicos, sexo. “Fiquei fascinado com os mitos”, disse Viveiros de Castro. “Eram rabelaisianos, mas tinham uma lógica formal, por causa das combinações, das permutações. Eram ‘Mondrian no açougue’, como os filmes do Ivan. Aquilo tinha uma relação com as coisas que eu lia nos suplementos e de que gostava. Em particular a linguística. E os concretistas. Havia uma afinidade, não direta, mas havia, entre concretistas, tropicalismo e estruturalismo.”
Essa não foi a única influência que Costa Lima exerceria na vida do aluno. Terminada a faculdade, Viveiros de Castro não sabia que rumo tomar. Pensou em fazer pós-graduação em letras. O professor, crítico literário, o desestimulou. Fez isso, explicaria mais tarde, porque “o estudo de literatura sempre foi muito ruim no Brasil”. “Hoje é péssimo”, frisou. Recomendou ao aluno, entusiasmado pelas Mitológicas, que cursasse antropologia no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Roberto DaMatta, à época professor do Museu, participou da banca de seleção para o mestrado. “Eu era besta pra cacete”, comentou Viveiros de Castro, ao falar sobre o exame. “O Matta me perguntou: ‘Estou vendo aqui no seu currículo que você leu Lévi-Strauss. O que você leu?’ E eu respondi: ‘Tudo!’”
Na sala de sua casa, em São Paulo, Marcio Silva acendeu um cigarro. O antropólogo pegou uma prancheta na qual havia anotado pontos importantes da trajetória intelectual de seu antigo orientador. Viveiros de Castro se tornou professor assistente do Museu em 1978, pouco depois de concluir o mestrado. Naquele mesmo ano, escreveu um artigo com seus professores Anthony Seeger e Roberto DaMatta sobre a noção de pessoa entre os grupos indígenas da América do Sul, texto que se tornaria referência para o estudo desses povos.
Marcio ressaltou a audácia dos primeiros parágrafos do artigo. Ali os três autores afirmam que diferentes regiões do planeta haviam contribuído, no passado, com algum aspecto importante da teoria antropológica. A Melanésia, diziam, descobriu a reciprocidade – a obrigação social de dar, receber e retribuir “dádivas”, cuja circulação seria como a linha de costura da sociedade, mantendo-a coesa. O Sudeste Asiático, por sua vez, alargou a compreensão dos sistemas de parentesco e das alianças feitas por regras de casamento. Da África, lembravam, veio um entendimento melhor das linhagens, da bruxaria e da política.
Davam então o passo ousado. Os povos da América do Sul, menos pesquisados e conhecidos, deveriam também fazer sua contribuição, resultado de uma característica específica dessas sociedades: o privilégio que conferiam, em suas cosmologias, ao corpo. “Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano.”
Perguntei a Marcio Silva se seu ex-orientador, à época desse artigo um jovem de 27 anos, não lhe parecia “atrevido, pretensioso”. “Essa palavra, ‘atrevido’, é boa”, respondeu Silva. “Às vezes ele parece gostar de correr riscos.”
Deu um exemplo. Nos anos 80, Viveiros de Castro retomou um tema, antes central, que estava fora de moda na antropologia: o parentesco. A partir do final do século XIX, pesquisadores passaram a identificar os laços forjados pela consanguinidade – aqueles que criam grupos de descendência – e pela aliança por casamento – laços que “costuram” as relações sociais entre grupos diferentes – como a coluna vertebral das “sociedades primitivas”. Era assim que elas se mantinham coesas, e era por meio do estudo desses laços que os antropólogos poderiam conhecê-las melhor.
Viveiros de Castro fez uma pergunta distinta. Ele não queria saber apenas o que o parentesco dizia sobre os povos indígenas, mas também o que as culturas ameríndias teriam a dizer sobre o parentesco. Será que os índios explicavam o parentesco do mesmo modo que nós, ocidentais? A ideia que lhe ocorreu é em tudo semelhante à lógica do perspectivismo. Pode ser considerada um passo prévio, mais fácil de compreender quando já se conhece a metafísica dos povos indígenas das Américas.
No Ocidente, ele disse, o que é dado são as relações de filiação, de “consanguinidade”. A ligação entre pais, irmãos e filhos é “natural”, logicamente anterior às relações com esposa, sogros e cunhados – relações de “afinidade” que não são dadas, mas construídas pelas escolhas dos indivíduos.
Para os povos ameríndios, contudo, o valor fundamental não está nos laços biológicos, “de sangue”, mas nas relações de aliança, com sogros e cunhados. Aquilo que para nós faz parte da cultura, do que precisa ser construído, para eles já é dado, é a referência que dá sentido e organiza as relações sociais. A lógica da afinidade, das normas que proíbem ou prescrevem casamentos entre pessoas e grupos distintos, é usada mesmo nas relações sociais relativamente distantes, com outros povos, inimigos e espíritos; relações que não têm a ver, necessariamente, com a troca de cônjuges.
O que precisa ser construído por eles, por outro lado, é aquilo que para nós já é dado: o corpo. A “consanguinidade”, a relação de semelhança corporal entre parentes e, até, entre pais e filhos, precisa ser fabricada mesmo depois do nascimento – por meio da partilha dos mesmos alimentos, por exemplo. Daí a importância do corpo, notada no artigo de 1978.
O atrevimento de seu ex-orientador, segundo Marcio Silva, foi tirar todas as consequências desse fato. Os dois modos de compreensão do parentesco têm implicações políticas distintas. “Numa sociedade como a nossa, a consanguinidade, a relação entre irmãos, é pensada como um modelo da relação social”, disse Silva. “Por exemplo, como Viveiros de Castro lembrava, na Revolução Francesa você tem liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquemos com a fraternidade. A relação social boa é como se fosse uma relação entre irmãos. Mesmo que eu não tenha parentesco com você, eu sou seu irmão: somos ambos filhos de Deus. Também nas constituições laicas operamos com base nessa metáfora fortíssima de irmãos. O que significa dizer que você é meu irmão? Significa que somos semelhantes e que somos conectados por um ente superior. Que pode ser o Estado, pode ser Deus, pode ser o nosso pai, se formos irmãos mesmo. Isso que nos unifica é um termo superior.”
Já na lógica social dos povos indígenas, não há termo superior que unifique. Os outros – que podem ser um povo indígena diferente, o inimigo, os animais – são para os ameríndios, antes de tudo, uma espécie de cunhado. “O que significa chamar de cunhado? Entre dois cunhados não tem ninguém que seja superior: tem uma mulher que é diferente para cada um. Para um é irmã, para o outro é esposa. Somos relacionados porque vemos uma mesma mulher de maneiras diferentes.” Não há, aí, necessidade de Deus, de pai ou de Estado para se pensar a boa relação social.
“Lembro-me dele dizendo em sala de aula, em tom de blague, que na Amazônia não valia o lema ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. Liberdade, tudo bem. Mas no lugar de igualdade, diferença. No lugar de fraternidade, afinidade.”
Se a Melanésia havia contribuído com a noção de reciprocidade, e a África com os grupos de descendência, então os povos da América do Sul forneciam, no início dos anos 90, a ideia de “afinidade potencial”. Tanto nesse caso quanto no perspectivismo ameríndio, que surgiria poucos anos depois, Viveiros de Castro usou conceitos ocidentais – natureza, cultura, consanguinidade, afinidade – para tentar entender as culturas ameríndias. Mas descobriu que era preciso invertê-los para que funcionassem bem naquelas sociedades.
As consequências políticas dessa operação, tanto no caso do parentesco quanto no da metafísica indígena, em que a natureza muda dependendo do observador, eram as mesmas. “Esse é um mundo em que você não tem um ponto de vista dominante, soberano, monárquico”, explicou Viveiros de Castro. “Ao contrário, a condição de sujeito está espalhada, dispersa. Não tem uma transcendência, um ponto de vista do todo, privilegiado. O perspectivismo é o correlato cosmológico, metafísico, da ideia de sociedade contra o Estado, do Pierre Clastres.”
No seu apartamento, em outubro passado, Viveiros de Castro parecia irritado. Explicou que havia se contrariado no trabalho, o que não era incomum. Descreveu mais de três décadas de uma relação conflituosa com seus colegas de instituição. A origem dos aborrecimentos, ele disse, remontava a 1978, quando havia concluído o mestrado e concorreu a uma vaga de professor assistente no Museu Nacional. Dois candidatos se apresentaram: ele próprio e o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho.
Oliveira Filho é, hoje, um dos principais representantes de uma linha de pesquisa importante na instituição carioca. Seus seguidores procuram entender os povos indígenas em suas relações com a sociedade e o Estado brasileiros. Essa corrente descende de Darcy Ribeiro, passando por Roberto Cardoso de Oliveira, um dos criadores da pós-graduação em antropologia no Museu Nacional, em 1968. Cardoso de Oliveira descreveu a “sociologia do contato”, que ele praticava, como uma tentativa de explicar a “sociedade tribal, vista não mais em si, mas em relação à sociedade envolvente”. Em um artigo recente, em que mencionava os Ticuna, do Amazonas, João Pacheco de Oliveira ressaltou que mesmo as “crenças, costumes e princípios organizativos” dos povos indígenas estão “interligados e articulados com determinações e projetos da sociedade nacional”.
Por telefone, o norte-americano Anthony Seeger, coautor do artigo de 1978 e orientador de Viveiros de Castro no doutorado, disse que ele e o aluno acreditavam que “as sociedades em si também mereciam atenção”. Ao se preocuparem com o parentesco e com as cosmologias dos grupos que estudavam, praticavam uma etnologia – a parte da antropologia que se ocupa dos povos indígenas – “clássica”, tida por representantes da outra corrente como excessivamente “filosófica”, apolítica e pouco comprometida com as circunstâncias sociais dos índios. De sua parte, Viveiros de Castro acredita que é a “sociologia do contato”, uma linha de pesquisa, ele diz, associada à “esquerda tradicional”, que é politicamente questionável. Seus rivais veriam os índios a partir da mesma perspectiva adotada pelo Estado, como parte do Brasil. Ele, ao contrário, inverteria o ponto de vista. Partiria das sociedades indígenas, tomando suas ideias e práticas como referências para criticar o Brasil, o Estado, o capitalismo.
Viveiros de Castro perdeu o concurso de 1978. Segundo ele porque os representantes da esquerda tradicional eram majoritários na banca. João Pacheco de Oliveira Filho foi o escolhido, mas uma segunda vaga foi criada. O etnólogo “clássico” se tornou, ele também, um jovem professor do Museu. Nos anos seguintes, o que começara como uma disputa teórica se transformaria em cizânia e ressentimento.
Tanto assim que as opiniões sobre o antropólogo carioca se dividem, de maneira marcada. Entre ex-alunos, ele é reconhecido por gestos de generosidade e de correção intelectual. Contudo, são também frequentes os relatos de arrogância na relação de Viveiros de Castro com os colegas, o que contribui para o clima de animosidade na instituição. Ele próprio disse representar, no Museu, “uma posição que é considerada trouble maker, anarquista, e que despreza os outros”. “Isso é quase verdade. Sou tido como alguém que não leva muito a sério o outro tipo de antropologia que é feita lá. De fato. Eu nunca manifestei isso, acho eu. Mas o pessoal percebe. Hoje eu diria que está quase todo mundo aliado ao João, e contra mim. Alguns ficam em cima do muro, que é a posição mais confortável.”
O antropólogo Paulo Maia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-orientando de Viveiros de Castro, afirma que o antigo professor tende a assumir posições pouco diplomáticas. “Ele não quer encontrar um meio-termo: quer marcar posições”, disse Maia. “O Eduardo não busca o consenso e não gosta de pessoas que têm um caráter mais subalterno, boazinhas. Ele gosta de gente mais intempestiva mesmo. Na própria escrita dele, dá para ver isso. É um estilo que não é muito diferente do modo como ele fala. O que para muitos alunos é encantador. A escrita dele é cativante.”
Em 1997, a tensão entre colegas no Museu Nacional se tornou mais aguda. A instituição abriu concurso para professor titular, o posto mais alto da carreira universitária. Quase duas décadas depois da primeira disputa entre os dois, Viveiros de Castro e João Pacheco de Oliveira tinham novamente a intenção de se candidatar à mesma posição. Outros integrantes do departamento se mobilizaram para evitar o embate. “Houve uma pressão muito forte, dentro da instituição, para que só se apresentasse um candidato”, disse Viveiros de Castro. “Partindo daquele éthos característico da academia, em que você prefere arranjar as coisas para evitar situações delicadas. Entenda-se: para que não entre a pessoa que você não quer.”
A solução encontrada, segundo professores do Museu, foi a realização de um sorteio prévio: quem ganhasse se apresentaria como candidato, e o derrotado desistiria da disputa.Viveiros de Castro perdeu.
Naquele mesmo ano, o antropólogo viajou para a Inglaterra, convidado para uma temporada de um ano na Universidade de Cambridge. Lá, conheceu Marilyn Strathern, professora titular de antropologia social na instituição, talvez o cargo de maior prestígio da disciplina. Ela ainda não conhecia o trabalho do colega brasileiro, que fez quatro conferências sobre o perspectivismo ameríndio. Strathern disse ter ficado impressionada com o argumento, exposto com “erudição e autoconfiança” – o mesmo atrevimento que lhe causava problemas em casa ajudava-o a conquistar audiências estrangeiras. A ideia exposta por Viveiros de Castro pareceu à professora “profundamente imaginativa e bastante precisa”.
O texto sobre o perspectivismo foi lançado em inglês em 1998. “Foram essas conferências de Cambridge e a publicação em inglês que alçaram o tema a uma posição de destaque no campo antropológico”, observou Viveiros de Castro. Segundo Strathern, as ideias do brasileiro fazem, hoje, parte do cânone apresentado aos estudantes de pós-graduação da disciplina no Reino Unido.
O caráter conflituoso de Viveiros de Castro se manifesta nas redes sociais. O antropólogo tem mantido, nos últimos anos, intensa atividade política no Twitter e no Facebook. Seus curtos enunciados são às vezes enigmáticos, com frequência irônicos, quase sempre militantes. Em outubro, quando manifestantes subiram no Monumento às Bandeiras, emSão Paulo, e cobriram de tinta as estátuas de Brecheret que celebram a conquista do Oeste pelos paulistas, com consequências trágicas para os índios, ele ofereceu seu veredicto: “É preciso derrubar essa porcaria.”
Boa parte das frases e dos pequenos textos que publicou no Twitter e no Facebook, desde junho, manifestava entusiasmo pelas manifestações de rua, das quais ele evitou participar, por medo de aglomerações. Seus posts revelavam também o que ele chamou de “simpatia” em relação à ação dos black blocs. “É espantoso como a esquerda tradicional está histérica com os black blocs”, ele me disse. “Está histérica porque não controla, porque não é partido. Não é militante de partido. Os black blocs nem existem como movimento. É uma tática.”
“Devo dizer que fiquei muito feliz de ver os manifestantes subirem na parte de cima doCaveirão. Gostaria que eles tivessem virado o Caveirão de cabeça para baixo. Se tivessem feito isso, acharia legal! E será que destruir a porta de um banco é uma coisa assim tão abominável? Em que será que se está tocando quando se quebra a porta de um banco? Por que deixa todo mundo tão nervoso?”
Já havia manifestado ideia semelhante no Facebook. “Quebrou uma vitrine do Banco Itaú, é vândalo, apanha da polícia e vai pro presídio; desapareceu com bilhões do BNDES, é empresário em dificuldades, vai para recuperação judicial”, publicou, no início de novembro. Estendeu-se um pouco mais noutro comentário: “O que o Estado faz, e deixa fazer, com os índios é um resumo altamente concentrado e potencializado do que ele faz, e deixa que façam, com toda a população. Os que dizem que não se pode mesmo dar mole para esses selvagens, que é preciso logo civilizá-los etc., são como o servo que se acha senhor porque o servo do lado levou mais chicotadas no lombo do que ele.”
Em seu apartamento, ao lado da mulher, o antropólogo explicou sua conversão recente às redes sociais, resultado de uma briga com a imprensa mainstream. Há pouco mais de três anos, a revista Veja publicou uma reportagem intitulada “A farra da antropologia oportunista”. Criticava a multiplicação de povos indígenas no país, interessados nas terras que sua nova condição lhes daria direito. “Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas”, o texto registrava. “Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios.”
Citavam então Viveiros de Castro, atribuindo a ele uma opinião crítica aos “índios ressurgidos”: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original.” A primeira frase havia sido retirada de um texto publicado pelo antropólogo, intitulado “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. A segunda, ele nunca disse ou escreveu. “Colocaram entre aspas uma frase que tiraram de um artigo meu, e acrescentaram a ela outra, que eles inventaram.” Ao inventarem, puseram em sua boca ideias opostas às que ele defende. Nas últimas décadas, argumentou o antropólogo, tem acontecido no Brasil algo inverso ao problema que ocupava os fundadores da sociologia do contato. Em vez de os índios se tornarem, aos poucos, brasileiros, são os brasileiros que estão virando índios. E não é necessário um “ambiente de cultura indígena original” para que um grupo advogue essa condição.
“Várias populações tradicionais estão se redescobrindo indígenas. Isso acontece porque eram índios. Foram obrigadas a esquecer que eram, forçadas a aprender português. Houve um processo de branqueamento que nunca se completou. E não se completar fazia parte do processo: o cara deixava de ser índio, mas você não o deixava virar branco. Parava no meio. Virava um brasileiro. O que é um brasileiro? É um índio pra quem você diz: ‘Você vai ser branco, você deixará de ser índio’, mas o cara para no meio. Você é quase branco. O cara perde a sua condição indígena, mas não ganha do outro lado.”
Foi para divulgar sua indignação com a revista, disse o antropólogo, que ele passou a usar as redes sociais. Primeiro o Twitter, no qual tem hoje cerca de 4 600 seguidores. Depois oFacebook, onde conta com mil amigos e quase 5 mil seguidores.
Um dos temas caros a Viveiros de Castro e a Déborah Danowski, tratado com frequência por ele em sua militância na internet, é o que chamam de “catástrofe” ambiental. Em outubro, no dia do primeiro leilão do pré-sal, o antropólogo escreveu: “Não faça parte das minorias com projetos ideológicos irreais: colabore para a destruição do planeta. Deus proverá. VivaLibra, viva a Shell, viva a Total, viva a China, viva o Brasil.” Em meados de novembro, um outro post conclamava: “Liberar a Terra das cadeias produtivas.”
Desde os anos 80, o antropólogo milita contra a construção de hidrelétricas na Amazônia. Foi um dos fundadores do ISA, o Instituto Socioambiental, uma das principais ONGs de defesa do meio ambiente e dos povos indígenas no país. Na sala de sua casa, no Rio, o casal citou estimativas de aquecimento global feitas pelo IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU. Um aumento de temperatura que não é improvável neste século, disseram, pode pôr em risco a maior floresta do planeta. “A parte oriental da Amazônia é mais seca do que a ocidental”, afirmou o antropólogo. “Essa parte mais seca, em alguns lugares, está começando a perder mais água do que recebe. Aquilo está secando. Um processo de ressecamento progressivo, discreto talvez, no sentido de que não é uma coisa catastrófica. Mas acontece que, se essa floresta passa de determinado ponto crítico de ressecamento, uma hora pega fogo e ninguém mais apaga.”
Os dois lembraram ainda a impossibilidade de o planeta comportar, para toda a sua população, o atual padrão de produção e consumo ocidental. “O que vai acontecer, provavelmente, é a falência degenerativa, muito mais do que apocalíptica, do atual sistema técnico-econômico mundial, que não vai se sustentar”, disse Viveiros de Castro. “Temos que nos preparar para um mundo radicalmente diferente deste em que vivemos. Temos que pensar num mundo fora do milênio, fora da ideia de que um dia vamos dar tudo para todos, seja no capitalismo ‘sustentável’, dois ponto zero, seja no socialismo.
A ideia de que vamos finalmente chegar a um estágio de plenitude, de abundância e de equilíbrio. Nós não vamos. Minha impressão é de que estamos numa curva descendente do ponto de vista da civilização, talvez da espécie, e que a gente tem que se preparar para o declínio.”
Argumentei que há quem conte com inovações tecnológicas, como já aconteceu no passado, para mover a fronteira dos limites planetários. “Eu acho que isso é religião”, respondeu o antropólogo. “Essa coisa de que vamos sair dessa é teologia. É achar que o homem sempre pode dar um jeito, pela sua capacidade, de transcender as condições naturais. Isso para mim é cristianismo laicizado.”
O que fazer? “Oposição ao governo, dono de um projeto ecocida”, respondeu. O antropólogo votou em Marina Silva, em 2010, mas disse ter dúvidas se repetirá o apoio em 2014, caso ela venha a concorrer. “Não morro de paixão pelas alianças que ela fez nem por sua base de consulta intelectual”, composta por economistas liberais. “Mas nada, nem o Serra, vai me fazer votar na Dilma. Não adianta virem com o Serra pra cima de mim. ‘Olha o Serra!’ Não há Cristo, nem Diabo, que me faça votar na Dilma.”
A política partidária, de toda forma, parece pouco relevante em seu discurso, fatalista. “Pode ser que nós, ocidentais de classe média, o francês, o brasileiro rico de São Paulo, o americano, pode ser que passemos pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais.”
No seu apartamento, já de noite, Viveiros de Castro se disse pessimista. “Mas esse pessimismo não é paralisante. Não é um quietismo. A sensação que eu tenho é de que a gente está lutando dentro de casa. Quarteirão a quarteirão. Como essas guerrilhas.” Deu um exemplo de resistência. “Dizem que os índios já foram incorporados ao capitalismo. Mas não foram dominados mentalmente. Já foram dominados economicamente, politicamente, mas não mentalmente. O problema com os índios é que eles são insubordinados. Você não consegue domesticar o índio. É por isso que o governo tem tanto horror deles.”
“É isso que significa o brasileiro virar índio”, disse, alargando o sentido da frase. “Numa versão ‘Twitter’, para encurtar a conversa, é isso. É virar black bloc. Menos pelego, e maisblack bloc.”
Em 2008, Marilyn Strathern se aposentou do cargo de professora titular de antropologia social, em Cambridge. Mais de um ano antes, tinha dado início ao processo de escolha de seu sucessor. Ela sugeriu ao etnólogo carioca que apresentasse sua candidatura ao posto.
Viveiros de Castro disse que foi só por causa da insistência da amiga que concordou em concorrer. “Relutei e tergiversei, pois não tinha a intenção de aceitar”, diria mais tarde. Além de razões práticas – como o trabalho de sua mulher no Rio –, afirmou que “sabia do tamanho do abacaxi que era ser o cabeça da antropologia social” na universidade inglesa. Disse não ter vontade de se dedicar à administração acadêmica, o que certamente seria exigido pela posição.
De toda forma, no final de 2007, estava entre os três finalistas. Viajou à Inglaterra para apresentar uma aula na universidade, parte do processo de seleção. Na sala em que falou, numa noite fria do outono inglês, alunos e professores se apertavam, muitos sentados no chão, outros espremidos nos cantos, junto às paredes.
Foi só quatro anos depois de concorrer à vaga na Inglaterra que Viveiros de Castro pôde afinal se candidatar, em 2011, ao posto de professor titular do Museu Nacional. O memorial que escreveu para o pleito foi redigido “num tom quase insolente” de propósito, ele disse. Ali ele afirma que sua produção intelectual “exerceu uma influência teórica muito significativa” na antropologia, “talvez a influência mais significativa exercida até o presente pelo trabalho de um antropólogo brasileiro”. No mesmo texto, voltou ao assunto do cargo em Cambridge, revelando seu desfecho. “Fizeram-me saber (ou deixaram-me saber, como se diz) que eu tinha todas as chances de ser o escolhido. Escrevi rapidamente ao departamento e a Marilyn recusando o posto, just in case. Eu realmente queria continuar sendo um jardineiro em Petrópolis.”
Considerava já ter alcançado, então, o objetivo de se fazer ouvir ao norte do Equador. No memorial, um balanço de mais de três décadas de atividade intelectual, Viveiros de Castroafirmou ter tido, desde o início de sua carreira, o propósito explícito de “rebater para a matriz nossas lucubrações periféricas” e de “meter a colher na sopa metropolitana”.
“Cuido que consegui”, ele conclui, sem modéstia.