Wolfgang Schluchter, sociólogo alemão, responsável pela edição das obras completas deMax Weber,
projeto que se iniciou em meados dos anos 1970 teve uma entrevista dele
publicada no jornal Clarín, 11-11-06. Os colegas do CEPAT a traduziram.
Schluchter, professor de sociologia na Universidade de Heidelberg, desde 1976, concedeu uma entrevista à IHU On-Line que foi publicada nos Cadernos IHU em Formação, no. 3, 2005, cujo título é Max Weber . O espírito do capitalismo. A edição pode ser consultada nesta página.
Você nasceu em 1938. A Segunda Guerra Mundial influenciou a sua produção intelectual?
Na
verdade, a República Federal da Alemanha (RFA) foi fundada em 1949 e
desde o começo essa foi a ordem política com a qual identifiquei-me. O
nacional-socialismo, como contra-modelo, se manteve para mim como algo
muito abstrato à diferença do que ocorreu com a geração anterior que
inclusive participou da guerra. Cresci em um contexto de uma abertura
para o Ocidente da República alemã e isto influenciou momentos
posteriores de minha carreira. Estive em universidades americanas
(Pittsburgh, New School de Nova Iorque, Berkeley). A partir da
reunificação alemã, minha relação começou a estreitar-se com a
ex-República Democrática Alemã (RDA). Colaborei com a reestruturação da
universidade em Leipzig, algo necessário em um ambiente altamente
ideologizado com as ciências sociais. Na RDA não houve sociologia no
sentido ocidental, havia apenas marxismo-leninismo e algumas
experiências em pesquisas na área social empírica. Em Erfurt trabalhei
na fundação de uma nova universidade. Depois estive em vários países da
Ásia. Para um weberiano, estudioso das perspectivas comparadas da
sociologia da religião, é muito interessante ir a China ou aos "tigres
asiáticos’ e ver de que forma sobreviveu o confucionismo. Por isso vivi
um ano em Singapura e ensinei em Hong Kong, Taiwan e Coréia do Sul.
Há diferentes acolhidas nacionais do pensamento de Weber. Como o meio local influencia essa recepção?
A
recepção depende dos textos disponíveis e de boas traduções porque
grande parte da recepção weberiana não se dá através dos textos
originais. Isto supõe a necessidade de se ter conhecimento do alemão,
ainda que isso não seja garantia de lê-los bem. Weber é
um autor muito difícil e inclusive os alemães tem dificuldades de
compreendê-lo. Por outro lado, a recepção weberiana depende muito das
constelações políticas e científicas de cada país. Olhe-se a Índia. Weber escreveu
um estudo sobre o hinduismo e o budismo. Não procurou analisar a
história social da Índia, ainda que alguma coisa esteja presente. Seu
trabalho é uma clara alternativa à interpretação da Índia de Marx. Mas,
na Índia, a escola marxista sempre foi muito forte. Surpreendentemente,
considerando que a perspectiva marxista não corresponde em absoluto com a
autocompreensão da Índia, a perspectiva de Weber corresponde muito
mais.
Os debates sobre Weber acontecem desde os anos 60, como se relaciona com o problema de sua recepção?
Certas
coisas que foram debatidas no núcleo central dos estudos weberianos
foram recebidas tardiamente em outros lugares. Em que pese a importância
que o idioma tem, existe hoje um weberianismo em diferentes centros,
mas que não fazem contato entre si. Todos os autores escrevem em uma
língua e aqui está o nó da discussão. Porque não se pode afirmar que
"tudo vale". É preciso ser cuidadoso com os textos, é preciso procurar
reconstruir o que Weber tentou
pensar e falar, porque ele foi muito cuidadoso em seus conceitos. Por
isso, as traduções enfrentam problemas sérios. Em sua sociologia da
dominação, por exemplo, há muitos conceitos que procedem da tradição
jurídica, o que não tem nenhuma correspondência em outra língua ou
tradições jurídicas. Por exemplo, Anstalt(instituto), um belo conceito. Talcott Parsons o traduziu para o inglês como organization: um erro. Outro exemplo é o famoso debate em Parsons e Reinhard Bendix, em torno da tradução de Herrschaft (dominação), que não existe em inglês. Como se decidir entrepower, domination ou authority? Isso em inglês, agora imagine em japonês ou chinês, é de enlouquecer...
O que acontece em outros campos culturais?
É um grande problema para os estudos comparativos. Vejamos o conceito de Weber acerca
da religião. Tomado estritamente, o conceito não poderia ser utilizado
para falar do confucionismo, porque não é uma religião. Mas Weber necessita dele para levar a cabo suas pesquisas comparadas. Assim, há muitos outros exemplos, como Pietät, que joga na China um papel importante e que Weber tomou
do direito romano. Quando se realizam estudos comparados, já a partir
da própria terminologia se dá um certo etnocentrismo que não se pode
evitar. Weber tinha claro que os seus estudos eram eurocêntricos, mas o seu eurocentrismo não se concebe normativamente, como o de Marx que vaticinou que todas as economias asiáticas iriam sucumbir; Weber sempre explicitou que se tratava apenas de um ponto de vista.
Fora estes problemas de tradução, não há e não houve também na Alemanha diferentes formas de se ler Weber?
Correto.
Meu interesse por sua obra surgiu tomando clara distância das posições
marxistas que jogavam um crescente papel nas ciências sociais e nos
movimentos estudantis e radicais da RFA dos anos 60 e 70. Iniciei minha
carreira com um trabalho sobre um pensador político e social-democrata
da época de Weimar, Hermann Heller,
que se exilou em Madri, onde lamentavelmente morreu sem antes retornar.
Se a posição política que ele defendeu tivesse sido partilhada, poderia
ter impedido o surgimento do nacional-socialismo. Foi uma tremenda
injustiça que não se estudasse a obra de Heller, mas sim de outros que tiveram posições democráticas pouco claras ou claras posições antidemocráticas, como Carl Schmitt. Não se deu a Heller o lugar que merece. Dirigi minhas perguntas para contextos mais amplos. Assim começa meu trabalho com Weber. Desde 1976 estou em Heidelberg. Pensei que era uma boa idéia mudar-me para o local onde Weber esteve para fazer sociologia no sentido de Weber.
O que significa "fazer sociologia no sentido de Weber"?
No sentido de Weber,
significa levar adiante uma pesquisa cultural-comparativa fundada em
uma teoria da ação na qual as constelações institucionais desempenham um
papel importante. O debate alemão dos 60 e 70 foi ideologicamente muito
carregado, com um renascimento de posições marxistas acadêmicas e não
acadêmicas, os continuadores daEscola de Frankfurt, os primeiros ensaios de uma teoria de sistemas de Nicklas Luhmann. Nesse contexto, a pesquisa sobre Weber ficou
resumida à "palestra", justamente na Alemanha onde sempre se procuraram
realizar pesquisas de caráter universal, histórica e comparativas,
tradição de Marx, Weber e em certo sentido de Nobert Elias.
Qual foi o impacto da reunificação alemã?
A
reunificação pôs em questão a "naturalidade" de pertença da Alemanha ao
Ocidente. Minha inserção nas universidades da ex-RDA é parte de um
compromisso político. Tínhamos o dever de intervir. Resta ainda avaliar
se nos saímos bem ou mal, mas o fizemos.
Em que situação se encontra a edição das obras completas de Weber?
O projeto surgiu em meados dos anos 1970. Dirk Käsler sustenta que este era um contraponto às obras completas de Marx e Engels e isso me pareceu um pouco trivial. Esse projeto foi uma iniciativa de Johannes Winckelmann e eu tive a responsabilidade de formular as regras básicas para a edição. Tomei em conta a edição das obras de Marx eEngels,
e de outros autores, simplesmente para ver como foram feitas. O produto
terminou sendo muito ambicioso. Se conseguirmos terminar (ri), as obras
completas compreenderão uns 40 volumes. Até o momento temos algo com um
pouco mais da metade. Compreende três secções: a primeira, e mais
importante, é a dos escritos e dos discursos; a segunda são as cartas, a
terceira compreende os conceitos. Quando pronto, teremos a primeira
série de conceitos que Weber deu ao final do século XIX sobre a teoria geral da economia nacional. São chaves, porque permitem ver como Weber se
posicionou fortemente na "disputa pelo método" e trabalhou temas
retomados após o seu colapso nervoso. Dessa forma pode-se contrapor a
hipótese de "quebra" da produção em função desse problema de sua saúde.
Que conseqüências terão a publicação de "Economia e Sociedade" nas obras completas?
Vai transformar a recepção ou deveria fazê-lo. Na versão existente até hoje (a de Marianne Weber e as reedições de Winckelmann) esta obra se divide em duas partes e isso é totalmente insustentável. Economia e Sociedade é
um projeto que transcorreu em diferentes fases. A primeira transcorreu
entre 1910 e 1912, quando Weber começou a recolher o material. A partir
de 1913, tem lugar a segunda fase que se corta abruptamente com a
Primeira Guerra Mundial. Os manuscritos ficaram como estavam, sem ordem
coerente. Em 1919 retoma seriamente o trabalho e se serve dos velhos
manuscritos para escrever os novos. Em suma, não é uma obra dividida em
duas partes, mas sim distintas etapas de um mesmo projeto. O correto
seria ler Economia e Sociedade de trás para frente.
E as cartas?
É um volume realmente importante porque revelam sobre as redes pessoais de Weber. Há ali muitos comentários riquíssimos sobre os livros que lia, sobre como pretendia que se entendessem suas próprias posições.
Como caracterizaria o debate sociológico atual na Alemanha?
Foi fundamental que Habermas retomasse a discussão weberiana dos anos 1970 em suaTeoria da Ação Comunicativa. Graças a ele, o discurso de Frankfurt se transformou em comparação com Adorno e Horkheimer, que tinham uma compreensão bastante rudimentar de Weber. Entre aqueles que trabalham sobre Weber também há grandes controvérsias.Wolgfang Mommsen e
eu temos discutido muitíssimo ao redor de certas interpretações. Alguns
se ignoram entre si. Quiçá isto tenha a ver com esta obra que impacta
existencialmente sobre todos que se dedicam a estudá-la. Por um lado,
essa visão aberta do mundo que tinha Weber e
por outro lado, a sua compreensão profunda sobre a conflitividade da
vida social e sobre a dificuldade para conduzir a própria vida.
Creio
que estas controvérsias estejam vinculadas ao fato de as interpretações
de Weber pertencerem a âmbitos mais amplos de discussão cultural. Os
luhmannianos apenas discutem entre si, e os "outsideres" não têm idéia
do que acontece ali dentro.
Sim, de acordo. Além disso, creio que a teoria de sistemas de Luhmann causou um grande estrago. Desde um ponto de vista histórico universal, em comparação com Weber,
sua teoria é incrivelmente simples e primitiva: uma reflexão conceitual
que se aplica sobre si mesma, uma escola fechada com importantes
efeitos, isso sim, sobre outras disciplinas. Definitivamente essa teoria
vai em uma direção equivocada. Vamos ver se aparecem desenvolvimentos
posteriores e se não serão apenas repetição do já disse Luhmann, porque os discípulos não têm estatura do mestre, que escreveu de maneira brilhante.
Luhmann não pertence também à tradição alemã?
Sim,
também pertence à tradição alemã. Não o quero expatriar... (ri). Bem,
esta é uma das linhas no debate alemão. A segunda linha é versão muito
elaborada do rational choice (o autor mais importante é Harmut Esser). A terceira linha seria a weberiana que tem diferentes facetas. Finalmente, a teoria da ação comunicativa: Habermas e o que produziu. A divisória de águas se dá então entre teoria de sistemas e teoria da ação.
Chama a atenção que não mencione Ulrich Beck?
Não creio que seja um sociólogo que deva ser levado a sério.
Imaginava que ia dizer isto. Mas é muito famoso. E escreveu com outros importantes sociólogos, como Giddens...
É famoso, é verdade. Mas não conheço ninguém que o leve a sério.
Para você o conceito da "sociedade de risco" de Beck não diz nada?
Por favor! Besteiras! Veja: sou um dos co-editores da Kölner Zeitschrif für Soziologie un Sozialpsychologie, uma das revistas sociológicas alemãs mais importante. Beck sempre
quis publicar ali. Nós definimos que publicaremos algo sempre e quando o
manuscrito que enviem nos convença. Mas tudo o que temos recebido dele é
tão incrivelmente ruim que não conseguimos publicar nada, e da mesma
opinião são os avaliadores externos consultados. São textos de
Feuilleton. Aqui também sem grande impacto.
Uma interface entre a ciências sociais e o jornalismo?
Sim, algo assim. Também creio que é muito importante intervir neste espaço. Na Alemanha temos muitas figuras com este estilo. Ralf Dahrendorf, por exemplo, sempre tem desempenhado um papel público. Mas no seu caso ao menos há uma sustentação teórica.Habermas tem
muita consciência dessas duas facetas. Suas publicações estão
orientadas para realizar a transferência da ciência até o amplo debate
da opinião pública.
A sociologia alemã é uma empresa enorme e diversificada. Poucos trabalham no campo da teoria, a maioria faz pesquisa empírica.
Há
um grupo pequeno, pessoas maiores que se ocupam de questões teóricas,
mas o sociólogo ou a socióloga normal, jovem com aspirações, realiza
pesquisa empírica. Há uma crescente tendência de retrocesso de todo o
debate teórico, também nos planos de estudo.
Pode falar ainda da sociologia como disciplina com limites mais ou menos definidas?
É
muito difícil. Também no sentido institucional, a disciplina tende a
desagregar-se. Discute-se muito na Europa acerca da reestruturação das
carreiras universitárias: primeiro haveria um Baccalauréat,
na seqüência magistério e finalmente doutorado. Também se propõe mudar a
primeira fase de estudos em sistema de créditos, na qual a sociologia
se combina com economia, antropologia ou ao que lhe ocorra... Quem sabe
em uns 10 anos já não haja um certificado final de estudos intitulado
"sociologia".
Neste
contexto, que papel joga Weber? Quando cheguei à Alemanha em 1991,
encontrei graduados em sociologia que haviam lido pouco ou quase nada de
Weber. Parecia-me estranhíssimo vindo da UBA, onde Weber aparecia como a
primeira matéria.
É
certo. Mas em Heidelberg não, e vamos ver quanto tempo podemos
resistir. As universidades na Alemanha estão em forte transformação. A
chamada "Reforma" é muito mais radical do que supomos. A massa de
recursos se destina a outros setores como as ciências naturais e
medicina. Carreiras como sociologia e economia irão ter que lutar para
sobreviver. Estas novas concepções pretendem adaptar as universidades às
empresas, tem que competir entre si, vender os seus produtos no mercado
e se não funcionam, fecham. A comercialização do ambiente acadêmico.
Busca-se formar estudantes com capacidade que possa ser rapidamente
utilizada pelo mercado de trabalho. Com isto se perde algo que era
essencial para a universidade alemã: a idéia de que estudar era uma
tarefa em si mesma. O "saber pelo saber mesmo" está em retrocesso. Hoje
se oferecem habilidades extracurriculares, capacidade de trabalhar em
equipe, retórica... Quem sabe Weber fique
apenas na pós-graduação. Não sei. Agora, é um fato que as carreiras tem
que ser "creditadas", há "agências de creditação", procedimentos de
avaliação, tudo deve ser avaliado... Uma espécie da "avaliação
reflexiva" (risos).
Weber
é um clássico indiscutível da sociologia. O que aconteceu com outros
autores que poderiam ter sido e não foram? Ferdinand Tönnies, Werner
Sombart. Foi uma causalidade?
Sombart é um bom exemplo. Simmel também,
que hoje é um certo boom, mas que não creio que irá se sustentar...
Seguramente foi decisivo quem se encarregou da recepção dos autores. Mas
tem que haver algo na coisa mesma que o justifique. Estou trabalhando
em um livro sistemático de história da teoria com uma ampla reflexão
sobre porque e como se deram essas aparições na sociologia. Há quem
opine, como Luhmann que a história da sociologia se acabou e já é passado e é preciso que diga algo de novo.
O mesmo pensava Robert Merton: a história e a sistemática na sociologia deveriam manter-se separadas...
A
construção da teoria se vê como independente da história da disciplina,
como na física, onde se acredita que o conhecimento é uma continua
acumulação. A outra posição é a da "história da sociologia",
habitualmente sustentada por historiados que apenas descrevem uma certa
fase de desenvolvimento. Apresentam-se diversos autores, diversos
aportes teóricos, contexto histórico, intervenções políticas...
Os livros de texto...
Sim. E aí vem alguém e diz, "vou tomar Marx, Tönnies, Simmel e Weber". E vem outro e diz, "vou tomar apenas Marx". Mas não aparece nenhum critério de seleção. Assim fez Dirl Käsler (ri)
em um livro para suas aulas. Há ali 30 autores e um capítulo sobre cada
autor. Mas isto é insatisfatório, como a outra posição que mencionei
antes. A terceira posição é a que fez Parsons na A estrutura da ação social, Habermas em sua Teoria da ação comunicativa e
o que sempre fiz eu: uma história da teoria sistemática, com um
critério de seleção de autores porque escolhi e os coloco em relação
ainda que sejam enfoques distintos.
Especificando os critérios...
O
critério é: que a posição possa fundamentar um "programa de pesquisa",
que tenha um núcleo metafísico, que heuristicamente mostre como se chega
a obter novos conhecimentos, que tenha uma metodologia; uma teoria
sobre a relação entre ação, ordem e cultura e que mostre casos empíricos
(como se pode aplicar todo o modelo).
Sobram poucos autores.
Sim muito poucos: Marx, Durkheim, Weber. O Marx do 18 Brumario. Em Durkheim,Física dos costumes e o Direito. Em Weber, naturalmente, A ética protestante e os trabalhos de ética das religiões universais.
E Parsons?
Sim, inclusive Parsons, que abriu a "roda sistêmica" na qual prosseguiu Luhmann. EGeorge H. Mead, que abriu a "roda lingüística", na qual se meteu Habermas.
Fecho o livro com esta confrontação "teoria da ação - teoria de
sistemas" que, como dizia, é a divisória de águas do debate sociológico
atual
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