“O que não
estão tão claro é se o resultado de alguma maneira contribui para o interesse
público mais geral, ou promove a internet para o bem comum, ou qualquer coisa
que vá além de um conjunto de regras e práticas concebidas para promover os
interesses e os benefícios de quem já goza dos maiores rendimentos graças ao seu
atual ‘interesse’ na internet. O que parece claro, entretanto, é que o modelo
MS que estão
apresentando é de fato a transformação do modelo econômico neoliberal, que
provocou graves estragos e tragédias humanas em todo o mundo, em uma nova forma
de governabilidade ‘pós-democrática’”.
A análise
é de Michael
Gustein, em artigo publicado no sítio da Alainet,
17-04-2014. Michael Gustein, canadense, é diretor-executivo do Centre
for Community Informatics Research, Development and Training.
A tradução
é de André
Langer.
Eis
o artigo.
Um dos
recentes fenômenos que chama a atenção no âmbito da internet, a partir da
perspectiva da sociedade civil, é o repentino surgimento do “modelo
multistakeholderism” – MS – (modelo de múltiplas partes interessadas
ou modelo multissetorial) e sua inserção, nos últimos dois ou três anos [1], nos
debates sobre a governança da internet. O termo, evidentemente, é anterior e
inclusive foi utilizado em relação à internet para descrever (de forma mais ou
menos adequada) os processos de tomada de decisões de vários dos seus órgãos
técnicos (IETF, IAB, ICANN). [2]
Associado
a este fato está o novo e insólito esforço do governo dos Estados
Unidos – em todas as
frentes e junto com seus aliados e acólitos empresariais, técnicos e segmentos
da sociedade civil que participam das discussões da governança da internet –,
para estender o uso das versões do modelo
MS. Ou seja, a partir de quem em âmbitos locais e técnicos
circunscritos obteve um grau considerável de sucesso, aponta-se que se converta
na base fundamental, e praticamente única, sobre a qual se deve canalizar o
tratamento deste tipo de debate sobre a governança da internet (de acordo com o
que estabelece o pronunciamento do governo dos Estados Unidos sobre a
transferência da função da gestão do sistema
de nomes de domínio – DNS). [3]
Cabe
assinalar também que o termo “multissetorial” parece ter substituído a
“liberdade na internet”, como o meme [4] mobilizador de preferência em relação à
internet. (Haja visto que a “liberdade na internet” viu-se desacreditada após as
revelações de Snowden [5], ao ser associada à “liberdade” do
governo dos Estados
Unidos de “vigiar”,
“sabotar” e “subverter” pela internet.)
Em meio a
estes acontecimentos produziu-se um deslocamento sutil na apresentação do modelo
multissetorial: se antes era feito como marco para os processos de consulta da
governança da internet, agora aparece como modelo necessário para a tomada de
decisões para a governança da internet. Por outro lado, dá-se por entendido que
esta tomada de decisões teria lugar não apenas dentro das áreas relativamente
circunscritas da gestão técnica das funções da internet, mas também nas áreas
mais amplas do impacto da internet e das políticas públicas associadas, onde a
importância da internet é ao mesmo tempo mundial e está em rápida
expansão.
O mais
chamativo é que o multissetorialismo é apresentado como o modelo que
substituiria os processos “antiquados” da tomada de decisões democráticas nestas
esferas; o que, segundo alguns de seus defensores, proporcionaria um modelo
“pós-democrático melhorado” para a definição de políticas mundiais em matéria de
internet.
O
que é exatamente o “multistakeholderism”?
Isto não
está completamente claro e ninguém ainda (muito menos o Departamento
de Estado dos Estados Unidos, que invoca o modelo 12 vezes em
sua apresentação de uma página para a reunião NetMundial no Brasil [6] proporcionou algo
mais que referências em manchetes ao “modelo
MS” ou exemplos do que poderia ser.
Seja como
for, um elemento chave é que as políticas (e outros aspectos) serão decididas
por e com a inclusão de todas as “partes interessadas”. Elas, evidentemente,
incluirão, por exemplo, as principais corporações empresariais da internet que
poderão assim promover seus “interesses” e formular as políticas da internet
através de algum processo de consenso onde todos os participantes estarão em
“igualdade” de condições, e onde as normas que regem, por exemplo, os
procedimentos operacionais, conflitos de interesse, os modos e estruturas de
governança interna, regras de participação, etc. etc. parecem inventar-se ao
longo da caminhada.
É evidente
que as grandes corporações da internet, o governo dos Estados
Unidos e seus aliados
nas comunidades técnicas e na sociedade civil estão muito entusiasmados;
elaborar conjuntamente questões como os marcos relacionados com a internet, os
princípios e normas (ou não) para a privacidade e a segurança, os impostos, os
direitos autorais, etc., é bastante sedutor. O que não estão tão claro é se o
resultado de alguma maneira contribui para o interesse público mais geral, ou
promove a internet para o bem comum, ou qualquer coisa que vá além de um
conjunto de regras e práticas concebidas para promover os interesses e os
benefícios de quem já goza dos maiores rendimentos graças ao seu atual
“interesse” na internet.
O que
parece claro, entretanto, é que o modelo
MS que estão
apresentando é de fato a transformação do modelo econômico neoliberal, que
provocou graves estragos e tragédias humanas em todo o mundo, em uma nova forma
de governabilidade “pós-democrática”. [Esta conexão entre o modelo econômico
neoliberal e a governança de múltipas partes interessadas apresenta-se mais
claramente em um documento publicado pelo Aspen
Institute, com numerosos coautores e colaboradores, estrelas da
internet: “Toward
A Single Global Digital Economy” (Para uma economia global
digital única) [7]. O documento defende, esboça e celebra o domínio dos Estados
Unidos, das corporações estadunidenses e seus aliados da Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico –OCDE – sobre a economia da internet e proporciona
um plano de ação para a implementação do modelo MS como a estrutura de
governança de apoio.]
Assim, por
exemplo, embora existam oportunidades claras e bem vistas para a participação
das partes interessadas do setor privado, do setor técnico e de atores da
sociedade civil nos fóruns sobre políticas da internet (o mercado) não há
ninguém no processo (nenhuma “parte interessada”) com a tarefa de representar o
“interesse público”. Portanto, ninguém tem a responsabilidade de assegurar que
os processos de tomada de decisões sejam justos e não contaminados e que a gama
de participantes seja o suficientemente includentes para garantir um resultado
legítimo e socialmente equitativo. No modelo de múltiplas partes, como no modelo
econômico neoliberal, também não existe um marco regulatório externo para
proteger o interesse geral ou público no meio dos resultados derivados das
interações entre os interesses setoriais particulares.
E
o interesse público?
Enquanto
em um processo democrático normal (ou um mercado não “liberalizado”) o marco e
as expectativas de participação subjacentes seriam que os atores persigam o
“interesse público” (com diferentes interpretações do que isso poderia
significar, evidentemente) e que existiria algum tipo de contrato social básico
para proporcionar uma “rede de segurança social” para todos os indivíduos e
grupos, e em particular os menos capazes de defender seus próprios interesses,
no modelo MS não há a promoção do interesse público. De alguma maneira o
interesse público seria o resultado ou efeito colateral (mágico) dos processos
de confluência (ou consenso) de cada parte individual agindo em busca de seu
interesse particular. Os governos podem ou não ser uma parte (igual) interessada
deste modelo, mas de todos os modos, a intenção geral é, na medida do possível,
descartar por completo o governo (inclusive no seu papel de protetor dos
direitos e fiador de processos e resultados equitativos).
Sem
dúvida, isto representa uma “privatização” total da governança, quando, por
exemplo, as grandes empresas da internet têm igualdade de direitos na
determinação de assuntos de governança da internet em áreas como a regulação
(quando tal coisa se permitir), junto com as outras partes interessadas. Neste
modelo, não existe um espaço para a internet como um bem comum, nem como um
espaço ou recurso disponível de forma igual para todos e todas como ferramenta
para o melhoramento econômico e social geral (por exemplo, para os
marginalizados, os pobres, a população dos países em desenvolvimento e inclusive
aqueles que não são atualmente “usuários/as” da internet). As “partes
interessadas” podem inventar e inclusive fazer cumprir as normas, e qualquer um
que não é ou não pode ser uma “parte interessada” – bem, azar.
Da mesma
forma, há uma recusa em aceitar inclusive a possibilidade de um marco
regulatório para a internet (foi o argumento expresso com maior veemência no
transcurso da campanha Liberdade na Internet), ou de admitir que a internet
teria tal importância como plataforma fundamental para a ação humana no
presente, que já não pode ser vista como um domínio de ação e controle
unicamente privatizado.
Os efeitos
danosos do neoliberalismo são muito bem conhecidos. Estes se tornaram evidentes
através do seu impulso à privatização de serviços públicos como a educação e os
cuidados da saúde nos países em desenvolvimento (e desenvolvidos), com os
consequentes aumentos significativos na não escolarização e na deterioração da
saúde entre a população pobre, marginalizada e rural; no enfraquecimento do
contrato social e das redes de proteção social nos países desenvolvidos, com os
aumentos associados da pobreza infantil, da falta de moradia e da fome; no
“Consenso
de Washington” e os regimes de austeridade impostos do exterior,
dos quais muitos países em todo o mundo estão apenas agora se recuperando (e que
o próprio Fundo
Monetário Internacional– FMI – reconheceu como um grave erro e
altamente destrutivo); nas ações do FMI e do Banco
Mundial para insistir
na privatização e na desregulação e assim dizimar numerosas empresas locais a
favor das multinacionais; e em geral, ao dar o impulso (e modelo) ideológico
para um ataque social e econômico significativo em nível mundial contra os
setores empobrecidos e vulneráveis.
Este é o
modo de governança que através do modelo MS (sua contrapartida na governança
mundial da internet e além) está destinado a ser o modelo básico de governo para
a internet, promovido – nada surpreendentemente – pelo setor empresarial e pelo
governo dos Estados
Unidos, mas também – e isso é assustador – por amplos elementos
da sociedade civil, como também da comunidade técnica.
O
verdadeiro significado e o objetivo final desta neoliberalização da governança
não diz respeito, evidentemente, às questões técnicas circunscritas da
governança da internet, mas antes a questões como a fiscalização do comércio
habilitado pela internet e em última instância, a necessidade de compartilhar as
rendas provenientes da atividade econômica relacionada com a internet, em um
mundo onde a desigualdade de renda está crescendo a um ritmo sem precedentes na
plataforma da internet e da digitalização global.
Em
desigualdade de condições
O contexto
atual, onde os gigantes mundiais da internet como o Google ou o Amazon têm total liberdade para transferir/alocar
rendas e custos a qualquer lugar que escolherem dentro dos seus impérios
multinacionais, com a finalidade de reduzir ao mínimo as cargas fiscais, está
chegando rapidamente a um ponto crítico, no qual algum tipo de intervenção é
provável. Em um horizonte mais distante, a importância da polarização de rendas
em escala nacional e internacional – em grande parte veiculada de alguma maneira
com a tecnologia digital e internet – necessitará em algum momento de
intervenção e reequilíbrio, caso se queira evitar os protestos
sociais.
Podemos
supor que, em um regime de governança de múltiplas partes interessadas, os
gigantes da internet como oGoogle ou o Amazon serão sócios (partes interessadas) iguais na
determinação de assuntos de regulação da internet, impostos e a possível
alocação/realocação de benefícios gerais, ou seja, aqueles aspectos que sejam de
preocupação financeira direta para eles e seus acionistas/proprietários. E estas
resoluções terão lugar em contextos políticos onde não houver defensores/partes
interessadas evidentes que representem o interesse público geral global.
Obviamente, não é coincidência que tal arranjo favoreça diretamente os Estados
Unidos e outros países
desenvolvidos interessados e os interesses das empresas dominantes da internet,
isto é, aqueles que fazem lobbymais
ativamente a favor do modelo de múltiplas partes interessadas.
Igualmente,
está claro que os países em desenvolvimento estarão em clara desvantagem. Seus
governos carecem dos conhecimentos e, muitas vezes, dos recursos para agir como
partes interessadas eficazes nos processos deMS.
Suas empresas nacionais de internet ou são subunidades das corporações globais
ou são muito fracas para ser eficazes neste tipo de ambiente; mais, muitas das
suas organizações da sociedade civil foram cooptadas por meio de dádivas, como
viagens internacionais, a bajulação da “participação” em discussões com estrelas
da internet, juntamente com as migalhas dos benefícios organizacionais locais.
Os cidadãos destes países (junto com as populações despossuídas nos países
desenvolvidos) estarão completamente à mercê das elites dos países desenvolvidos
e aquelas desses pequenos segmentos de seus próprios países que já alcançaram o
sucesso no âmbito mundial da internet, podendo beneficiar-se enormemente em
termos de prestígio e de outras maneiras, mediante o domínio sobre os processos
de governança de múltiplas partes interessadas.
Notas:
[1] http://gurstein.wordpress.com/2012/12/09/whose-hand-off-what-internet-some-reflections-on-wcit-2012/
[2] IETF:
Grupo de trabalho de engenharia em Internet. IAB: Conselho de Arquitetura da
Internet. ICANN: Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números.
(Todas siglas em inglês.)
[4] NdE:
Um meme de internet (o mem) é, nas teorias sobre a difusão cultural, a unidade
teórica de informação cultural transmissível de um indivíduo a outro, ou de uma
mente a outra, ou de uma geração à seguinte. (Wikipedia)
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