Novos estudos internacionais vêm revelando os impactos da recente crise econômica mundial na agropecuária e
nas sociedades rurais. São conjunturas dramáticas sob as quais se impõe
a lei da selva, pois os governos hesitam e as estruturas de proteção
social se enfraquecem ante os inevitáveis conflitos em torno do acesso
aos recursos. Corroída a legitimação da autoridade, a instabilidade
econômica e a insegurança política se aprofundam. É quando os mais
fortes tendem a prevalecer.
As pesquisas demonstram tendências similares em curso na agricultura dos Estados Unidos e no conjunto dos 27 países da União Europeia.
São regiões que realizaram censos agrícolas pós-2008, permitindo
avaliações comparativas dos efeitos do trauma econômico no mundo rural.
Entre inúmeras conclusões, eis algumas: concentração da produção, o peso
da tecnologia se torna decisivo, o assalariamento quase desaparece e,
também, os chamados produtores médios vão sendo encurralados, diante do
avassalador domínio das propriedades de larga escala. O rural encolhe e,
com a escassez da mão de obra, discute-se até o uso de robôs no ciclo
produtivo. Mas nas duas regiões cresce o número de microproprieda
des, em razão de entrantes que não são agricultores, mas cidadãos
urbanos que aspiram a ter um "pé na natureza" - ou, então, porque fogem da crise.
E o Brasil?
Estaria o País observando as mesmas mudanças? As pesquisas não são
conclusivas nem temos ainda os censos para comparação. A crise
econômica, no caso específico da agropecuária, não produziu efeitos
negativos, pois os preços dos alimentos no geral subiram ao longo dos
últimos anos, beneficiando os produtores, assim como expandimos nossas
exportações e cresceu a demanda interna. Cada vez mais concentrada, a agricultura brasileira afirmou-se
como uma operosa
máquina de produção e acumulação de riquezas, salvando os saldos
comerciais e contribuindo decisivamente para a manutenção da
estabilidade macroeconômica, mesmo nos momentos mais graves da crise.
Se
o desempenho produtivo, tecnológico e financeiro foi espetacular nesse
período, também teria sido assim sob outros focos? De fato, o principal
desafio no campo brasileiro é social, pois em todos os Estados é
alarmante o abandono da atividade, sobretudo pelos moradores mais
jovens. A pobreza persistente, o acirramento concorrencial que concentra
a produção, a atração do emprego urbano e as facilidades migratórias
são alguns fatores que têm contribuído para o êxodo do campo. O
resultado é a gradual reconfiguração de uma nova sociedade rural. Quem
estaria permanecendo nessas regiões?
Primeiramente, o maior grupo social: um conjunto envelhecido formado pelos "pobres do campo" com
acesso à terra. Constituem a vasta maioria, mas parte expressiva dos
membros jovens das famílias foi embora, deixando para trás, quase
invariavelmente, um casal de idosos que vive de aposentadoria ou de
algum auxílio estatal. Talvez em um decênio, contudo, é geração que
passará, deixando imensa lacuna demográfica e promovendo a
desertificação populacional em nosso vasto interior.
Numericamente,
o segundo agrupamento mais expressivo é formado por uma típica classe
média de pequenos produtores com algum grau relevante de integração
econômica e moderna atividade produtiva. Se os primeiros, em maior
proporção, moram no Nordeste rural, esse segundo grupo ocupa propriedades, particularmente, no Centro-Sul.
Respondem pela maior proporção da produção de diversos ramos, da
avicultura à floricultura, da suinocultura à produção de vários tipos de
frutas, da horticultura à fumicultura. Mas atenção: embora
agricultoras, essas famílias já moram em grande número nas cidades e
encontram bloqueios crescentes na sucessão familiar, pois seus filhos
nem sempre querem assumir o negóc
io.
O terceiro conjunto a destacar é formado pelos assalariados rurais,
usualmente sem terra. São trabalhadores que vivem uma situação curiosa:
os salários estão subindo, mas também crescem as exigências do ofício,
cada vez mais especializado, pois a agricultura tecnologicamente avançou
muito.
Como
são trabalhadores de baixíssimas escolaridade e capacitação
profissional, a maior parte vai engrossando as correntes migratórias que
deixam o campo. E assim, com a redução da oferta de mão de obra, os
salários sobem ainda mais e os empregadores, gradualmente, vão trocando
por máquinas o trabalho manual que antes prevalecia. A consequência é
uma notável onda de mecanização que vai transformar ainda mais a face
agrícola do Brasil.
Há
ainda um reduzido estrato: são os endinheirados, mas não
necessariamente os super-ricos, como às vezes se apregoa. Parte é uma
classe média rural com rendas mais altas e parte, a burguesia agrária.
Moram nas cidades, mas supervisionam seu negócio. São produtores que
enfrentam iguais problemas de sucessão na atividade, pois seus filhos,
quase sempre educados em outras profissões, não se interessam pelo
campo.
Sobrariam
outros grupos menores, como comunidades indígenas e quilombolas. E há
os assentados, que deveriam ser expressivos. Afinal, seria um conjunto
de 1,25 milhão de famílias em 8,8 mil assentamentos, ocupantes de 88
milhões de hectares, quase equivalentes à área total de Mato Grosso.
Mas a reforma agrária é um rotundo fracasso: boa parte dos
beneficiários desistiu, deixando rarefeitos os assentamentos, em
especial do meio do País"para cima", sobretudo no Nordeste e no Norte.
Confrontado
com esse inquietante contexto de mudanças, surpreende o imobilismo
governamental e espanta a omissão do sindicalismo que deveria
representar os mais pobres. Ignoram a nova urgência social - "salvar a pequena produção"!
- e parecem concordes com a tendência de esvaziamento do campo e o
inchamento das cidades brasileiras. Cada vez mais, as regiões rurais
perdem vozes e ganham o silêncio.
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