Entrevista a Júlia Magalhães–
–
“É preciso insistir no fato de que é possível ser feliz sem o frenesi de consumo que a mídia nos impõe”, reafirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, à jornalista Júlia Magalhães. Para ele, assim como para Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay – primeiros entrevistados da sério Outra Política – a felicidade pode ter outros caminhos. O novo diálogo é parte da série que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade), e que o site publica na seção especial “Outra Política“.
Pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Viveiros insiste em que só pela educação avançaremos rumo a uma sociedade mais democrática. “A falta de educação é o nó cego responsável por esse conservadorismo reacionário de boa parte da população”, diz ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma conspiração para impedir os brasileiros de ter acesso a educação ou conexão de à internet de qualidade – conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos e bens culturais.
Ainda como Meirelles e Abramovay, Viveiros insiste em políticas que reduzam a desigualdade e favoreçam novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais carros é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria econômica.”
Para o antropólogo, a mobilização pelas causas ambientais é importante, mas ainda está longe de corresponder à gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que está acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O raciocínio é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a Cegueira: “Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a enxergar”.
Diferentemente de Abramovay – que vê germinar um trabalho sério nas empresas e acredita que a sociedade terá força e atitude para impor limites à iniciativa privada –, Viveiros de Castro considera que as corporações não são capazes de ir além do “capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e ambiental. Os dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes sociais como canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.
“Não existe um rumo Brasil”, alerta Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a sociedade brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo aos setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata, racista, que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.
Não por coincidência, dissse o mesmo, há pouco, Mano Brown, em vídeo gravado na Ocupação Mauá, centro de São Paulo. “O Brasil está em transição, não sabe se é um país moderno ou se está ainda em 1964. Tem uma geração de direita ainda viva – Kassab é de direita, Alckmin é de direita – que tem um modus operandi dos caras da antiga, de usar a força, o poder.” A seguir, a entrevista (Inês Castilho).
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma
desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente
dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe
um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade e de
brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os
dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu
ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é
descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda na sociedade brasileira. Há
setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram
necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”,
ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da
chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito
satisfeita sob um regime autoritário , sobretudo se conduzido mediaticamente
pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é uma daquelas
coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma certa medioria
“progressista”, prefere manter envolta em um silêncio embaraçado. Repete-se a
todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é democrático, “cordial”,
amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o que me parece uma ilusão
muito perigosa. É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”:
fraturada, dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em
harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil permanece
uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente
covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse inconsciente, não iremos “para
a frente”. Em outros momentos, é claro, soluços insurreicionais esporádicos, e
uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, que se
testemunha sobretudo entre os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado
pelo andar de cima, inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte
daqueles que a historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”.
Nós, em suma.
O que é preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar
por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não “educar o
povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o
povo para um nível superior; mas sim criar as condições para que o povo se
eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se dela. A paisagem
educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo
nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo
contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto
de poder em curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil:
domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente
tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que
educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não
é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê
uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de
dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar de
boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino
fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores
recebendo uma miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como
se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito
particular e perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o
principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da
sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação
brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava
Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter uma e ainda não
teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta
mesmo.
Por onde começaria a
reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no
ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino público teria de
ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão –
“revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor, aumentar a
quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas
para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não
redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo
condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para”
ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também
da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China continuar
comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa
melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de vida,
da vida cul tural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário.
Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e culturais, do
povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma sociedade
economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os
temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira”
imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação normativa por via da
midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim)
se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas
urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação com a
terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e Cultura,
em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas
mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra
a Cultura.
Esses temas ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação da
opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional
– o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me
parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está
demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido de
urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós. Essa inércia se
traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações, as empresas – estas
investindo cada vez mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E
pouca pressão sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e
incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente
mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e
comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se infere) de porções
significativas da população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia
que não for vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio
fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta
um discurso politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É preciso
sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é
um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental.
Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso
convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é
garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional,
como se está comprova ndo, mostra-se completamente despreparada para articular
um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes falam,
tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando
desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema
muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela, a
esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo,
revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da
metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a
vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez
de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação
fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir
mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da
vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os
mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais
idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo
ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados
nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e
bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é
fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil: falta
instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade política no
tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há uma questão
ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes
mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam
com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do
transporte por carro individual numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem
mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar grandeza sobre a
quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da
produção de veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma
proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo que
muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito
grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista
periférico. O capitalismo industrial-financeiro é considerado por quase todo
mundo hoje como uma evidência necessária, o modo incontornável de um sistema
social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns companheiros
de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se
nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária, então
logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se mostrar
desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou
de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a
lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia
manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação de troca
energética com a natureza não cabe na matriz econômica do
capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai
ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito
mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está
acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos
preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o
melhor. O otimismo nacional diante de uma situação planetária para lá de
inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro
do capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil
continua sendo um país periférico, uma plantation relativamente
high tech que abastece de produtos primários o capitalismo central.
Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne,
para os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o
mercado. Estamos bem ne sse momento, mas de forma alguma em posição de controlar
a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil
pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar,
é claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se
tornou explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai
parar. O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do
tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de
ser ditas.
E como você avalia a
relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as realidades do
Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a
presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos,
índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados
socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é uma
concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu projeto é
uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país numa fantasia
country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas
quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E
do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a
Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se
rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de
vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica da
ditadura e a do governo atual. Muda ram as condições políticas formais, mas a
imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena
ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é
muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo
comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um
projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura:
destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da
“lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia
de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os
Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob
vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood
dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita geladeira, muita televisão,
todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos, entre ou tros, nós. (Quem
nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem
falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo de vida para seus
beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza:
cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como
os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso
governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços
destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do
leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace
isso,o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB
sabota.
Há uma série de impasses para os
quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo político
tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo possível pelo lado
do movimento social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é
que ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar
vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O
Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários e grandes
empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já
não é mais preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão
começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai
provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai
acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por uma transição ecológica,
climática e demográfica muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias,
fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo as condições
climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos, e é
grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de
alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a
conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos
estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências da
transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da
espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que é
possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a
mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou
idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike
Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os subsídios
aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa
ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a
favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente a
favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão —
mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar
e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar
esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de uma
geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas
ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de
mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram
enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da difusão
do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda,
pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento
da nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite dominante acertar suas
contas com o próprio passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a
consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento evangélico. O
evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e congêneres está
evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas coisas com
que estou bastante otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do
controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento
está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que são a grande novidade
na sociedade brasileira e que estão contribuindo para fazer circular um tipo de
informação que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de
mobilização antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das
redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente
diferenciada” em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a
mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência para a
aliança mortal entre governo e mídia. São um fator de desestabilização, no
melhor sentido da palavra, do arranjo de poder dominante. Se alguma grande
mudança no cenário político brasi leiro vier a acontecer, creio que vai passar
por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as
tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes constituídos – isso no
mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o
“projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo reconhecimento de que o
serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnolotica e política
antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir
que a população tenha acesso pleno à circulação cultural. Parece mesmo, às
vezes, que há uma conspiração para impedir que os brasileiros tenham uma
educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas coisas vão juntas e têm o
mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social, algo que, pelo jeito, é
preciso controlar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no
ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava dizendo que
essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda, que
tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder,
era preciso saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho
um desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor
para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar minhas
preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto
seguro.
Penso, de qualquer forma, que se
deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as
condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de
civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e
norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum
tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa
moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a
China. Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente
continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia
e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é
indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das
suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se
inspirarem nas soluções sociocultur ais que os povos brasileiros historicamente
ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira
minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para
começar, a relação secularmente predatória da sociedade nacional com a natureza,
com a base físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de
iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante
da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário