domingo, 28 de abril de 2013

Energia, entropia, ecologia, economia

 

Não foi o alarme da mudança climática, nem o encontro Eco-92, no Rio, que despertou nos economistas - alguns deles, pelo menos - a noção de que a economia humana se desenrola num planeta real, de recursos finitos. Já na década de 1960, o romeno Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994) advertiu para a urgência de enriquecer a economia com noções físicas como energia e entropia. Economista com formação de matemático e estatístico, admirado por Joseph Schumpeter e Paul Samuelson e cotado para o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre a teoria do consumidor e a economia agrária, Georgescu-Roegen se dedicou a repensar o modo como a economia pensa a produção. Mas a virada intelectual selou o destino do romeno entre seus pares: até então admirado, ele teve de enfrentar o ostracismo.

A reportagem é de Diego Viana, publicada no jornal Valor, 15-03-2013.

Hoje, quando a sustentabilidade se torna pouco a pouco incontornável nas discussões sobre a economia mundial, as ideias de Georgescu-Roegen começam a encontrar um pouco mais de ressonância. Na quarta-feira, será lançado em São Paulo o livro O Decrescimento: Entropia, Ecologia, Economia, com artigos que expõem as ideias pioneiras do matemático romeno. Organizado pelo economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) José Eli da Veiga, o lançamento terá a presença de dois economistas que conviveram com Georgescu-Roegen: o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Delfim Netto e o ex-preside nte do Banco Central Ibrahim Eris.

Formado em matemática na Universidade de Bucareste e especializado em estatística na França, Georgescu-Roegen se interessou por economia quando foi professor em Harvard, entre 1934 e 1936. Sua convivência com Schumpeter, um dos maiores economistas do século XX, teria resultado em um livro a quatro mãos, se não tivesse decidido retornar àRomênia com a justificativa de que devia algo a seu país. Mais tarde, ao fim da Segunda Guerra, tornou-se professor na Universidade Vanderbilt.

Em 1966, publicou o livro Analytical Economics: Issues and Problems, centrado na teoria do consumidor e elogiado em profusão por Samuelson, outro dos maiores economistas de seu tempo, com epítetos inequívocos como "professor dos professores" e "economista dos economistas".

A causa do ostracismo de Georgescu-Roegen - encam inhado pelo próprio Samuelson, que fez desaparecer o nome do romeno de seu ubíquo manual, "Economics", a partir da décima edição - foi seu interesse intelectual por uma área de estudos até então considerada exotérica, para não dizer absurda: a ecologia. Ao se dar conta de que o processo produtivo e o consumo não são mera função do trabalho, do capital e de insumos, mas uma realidade física, química e social, o até então admirado romeno selou sua sorte no clã dos economistas. "Ele não foi só esquecido. Foi banido. Ele sofreu uma espécie de censura", diz Veiga.

Segundo o economista da USP, a gota d'água foi a reunião da associação dos economistas americanos (American Economic Association) de 1973. "É como o conclave do Vaticano", diz Veiga. Nos meses anteriores, fora publicado o manifesto "Rumo a uma Economia Humana", escrito por membros da organização Fellowship of Reconciliatio n reunidos em um grupo de trabalho intitulado "Dai Dong", sob orientação do pacifista americano Alfred Hassler. "Hoje, esse manifesto me parece até ingênuo, mas na época foi considerado radicalmente ecologista ao mencionar ameaças aos ecossistemas", diz Veiga.
Na reunião dos economistas americanos, de que Georgescu-Roegen participava todos os anos, o matemático romeno propôs que a associação assinasse e apoiasse o manifesto. "Criou-se uma confusão, porque os economistas eram contra e acabaram encontrando uma solução de compromisso: em vez de assinar e apoiar, a associação publicou o texto, mas como anexo e com um tamanho de letra praticamente ilegível."

Até então respeitado por seus colegas por sua capacidade superior de aplicar a matemática às funções de consumo e produção, Georgescu-Roegen percebeu que sua linha de pensamento era heterodoxa demais para aquele ambiente intelectual. "Georgescu foi bloqueado como são bloqueados todos aqueles que não se integram no mainstream", afirma Delfim Netto. "Marx é bloqueado, por exemplo. Diz-se que Georgescu não ganhou um Prêmio Nobel porque não criou uma 'georgescologia', não fez escola. Mas ele tinha nível para ganhar o Nobel, sobretudo em comparação com as bobagens que ganham hoje."
Com o avanço progressivo da matematização na teoria econômica, os economistas se puseram a perseguir a ambição de produzir teses tão exatas e claras quanto as da física. Mas os economistas têm de enfrentar uma dificuldade que não atinge os físicos. "Acontece que nossos 'átomos' pensam", argumenta Delfim Netto. "Por isso, em economia, o passado não contém o futuro e não é capaz de explicá-lo. Na física, o passado contém o futuro. É por isso que nenhum modelo econômico funciona de verdade."

Outro problema que afasta a economia de atingir seu objetivo de perfeição quantitativa, segundo Veiga, é a insistência numa concepção mecanicista e equilibrada do funcionamento do ciclo produtivo. "Com toda sua formação científica, Georgescu-Roegen ficou muito espantado ao começar a estudar a teoria do produtor e descobrir que os conceitos que os economistas tomavam empres tados da física ainda eram todos newtonianos", diz Veiga. A essa altura, a física já tinha abandonado suas concepções de equilíbrio mecanicista, que ainda orientava as pesquisas econômicas. Já em seu livro de 1966, Georgescu-Roegen se mostrava inconformado com aquilo que Veiga nomeia o "progressivo distanciamento da teoria econômica dos fundamentos básicos das ciências naturais". Dentre os fundamentos em questão, Veiga cita o campo físico da termodinâmica e o evolucionismo.

Suas preocupações epistemológicas heterodoxas puseram Georgescu-Roegen entre os primeiros economistas a buscar um fundamento para a economia que levasse em conta o fato de que o próprio ato de produzir é transformador, tanto para a matéria-prima quanto para o maquinário e para as sociedades em que tem lugar. Com isso, seu pensamento econômico se tornou progressivamente evolucionário. Até hoje, análises evolucionárias da economia, como as de Geoffrey Hodgson, encontram pouca ressonância na profissão, embora Veiga se refira às ideias do economista britânico, editor da revista Journal of Institutional Economics, como "o futuro da economia".

Para Delfim, a redescoberta das teses de Georgescu-Roegen é um caminho imposto pelas circunstâncias de um mundo que começa a encontrar seus limites físicos. "A concepção de Georgescu está se impondo naturalmente. Foi homem que antecipou em pelo menos 50, 60 anos essa visão de mundo", diz. "Mas não foi só intuitivo. Construiu um dispositivo analítico que levava a reconhecer os fatos: o desenvolvimento não é um fenômeno econômico, mas termodinâmico. Portanto, obedece às leis da termodinâmica."

Ao lado das mudanças no processo produtivo, o economista romeno passou a argumentar que a produção não pode ser entend ida como um sistema fechado, capaz de funcionar indefinidamente a partir de seus princípios, sem levar em consideração o canal de entrada de recursos. Se fosse assim, a economia funcionaria como um "moto-perpétuo", a máquina capaz de trabalhar eternamente, sem o acréscimo de energia exterior. Mas isso seria absurdo, porque exigiria o esquecimento da segunda lei da termodinâmica, segundo a qual todo sistema caminha na direção do equilíbrio, isto é, da máxima entropia, e deixa de produzir qualquer modificação.

Georgescu-Roegen se esforça por introduzir o tempo nas equações de produção, propõe a necessidade de entender diferenças qualitativas nas funções de capital e trabalho, em vez de ater-se às proporções quantitativas entre um e outro, e termina por afirmar que, em vez de falar em produção, a teoria econômica deveria referir-se a uma transformação. Afinal, o processo de produção econômica consiste em tomar elemen tos da natureza e transformá-los em mercadorias para o consumo humano, com um gasto concomitante de energia que se degrada necessariamente e é irrecuperável.

Segundo Veiga, o título escolhido pelos organizadores franceses Jacques Grinevald e Ivo Rens para a coletânea de artigos de Georgescu-Roegen não é o ideal. O termo "decrescimento" é infiel às ideias do economista romeno. O termo assumiu um sentido mais político do que propriamente "bioeconômico", para usar as palavras do romeno. Georgescu-Roegen, no texto "A Energia e os Mitos Econômicos", escreve - com bastante sarcasmo, na avaliação de Veiga - um programa de nove pontos para chegar a um equilíbrio ambiental e econômico, conforme proposto por economistas ecológicos com quem ele não concordava inteiramente. Esses pontos incluíam generalidades como o fim da guerra e a redução da população, além de pro postas como o fim da moeda e a cura da "sede mórbida por engenhocas extravagantes".

Veiga aponta os limites do pensamento de Georgescu-Roegen, a começar pela ideia de decrescimento, radicalizada por rivais e alunos seus como, respectivamente, Kenneth Boulding e Herman Daly. "Falar em abrir mão do crescimento pode fazer muito sentido na Escandinávia, na Áustria e na Suíça, mas a maior parte do mundo precisa do crescimento econômico, e muito", afirma.

Paralelamente, o economista romeno cai em armadilha parecida com a de Thomas Malthus, que previu, no século XIX, uma crise alimentar como resultado do crescimento populacional explosivo. "Quando penso no tempo que levaria para que a entropia nos obrigasse a abdicar do crescimento, concluo que seriam séculos", diz Veiga. "Afinal, a eficiência energética da produção está aumentando muito rapidam ente. A intensidade carbono da economia mundial, por exemplo, é muito inferior ao que era há poucas décadas."

Veiga evoca os conceitos de "descolamento relativo" e "descolamento absoluto" para explicar seu ceticismo com os alarmes de Georgescu-Roegen. Na maior parte do mundo, incluindo a até recentemente "muito suja" China, a produção dos bens exige cada vez menos custo energético, mas o consumo do insumo continua a crescer em termos absolutos porque a economia cresce. No Reino Unido, porém, há indícios de que o consumo energético esteja caindo absolutamente. "É um indício de que a economia está se tornando imaterial, e essa tendência tende a se generalizar", diz.

O evento em homenagem a Georgescu-Roegen será realizado na FEA-USP, faculdade cujo primeiro programa de pós-graduação em economia ele ajudou a criar, na década de 1960. O economista esteve no Brasil graças ao acordo entre o Ministério da Educação e o Usaid, programa de ajuda econômica do governo dos EUA. Do período passado no Brasil, Georgescu-Roegen levou diversos alunos para doutoramento nos EUA. Lá, o então futuro presidente do Branco Central Ibrahim Eris foi um dos poucos alunos a completar uma tese com o exigente professor.

Para ler mais:


terça-feira, 9 de abril de 2013

Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção ultrapasada de progresso, Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães


É preciso insistir no fato de que é possível ser feliz sem o frenesi de consumo que a mídia nos impõe”, reafirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, à jornalista Júlia Magalhães. Para ele, assim como para Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay – primeiros entrevistados da sério Outra Política – a felicidade pode ter outros caminhos. O novo diálogo é parte da série que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade), e que o site publica na seção especial “Outra Política“.

Pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Viveiros insiste em que só pela educação avançaremos rumo a uma sociedade mais democrática. “A falta de educação é o nó cego responsável por esse conservadorismo reacionário de boa parte da população”, diz ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma conspiração para impedir os brasileiros de ter acesso a educação ou conexão de à internet de qualidade – conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos e bens culturais.

Ainda como Meirelles e Abramovay, Viveiros insiste em políticas que reduzam a desigualdade e favoreçam novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais carros é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria econômica.”

Para o antropólogo, a mobilização pelas causas ambientais é importante, mas ainda está longe de corresponder à gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que está acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O raciocínio é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a Cegueira: “Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a enxergar”.

Diferentemente de Abramovay – que vê germinar um trabalho sério nas empresas e acredita que a sociedade terá força e atitude para impor limites à iniciativa privada –, Viveiros de Castro considera que as corporações não são capazes de ir além do “capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e ambiental. Os dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes sociais como canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.

Não existe um rumo Brasil”, alerta Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a sociedade brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo aos setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata, racista, que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.

Não por coincidência, dissse o mesmo, há pouco, Mano Brown, em vídeo gravado na Ocupação Mauá, centro de São Paulo. “O Brasil está em transição, não sabe se é um país moderno ou se está ainda em 1964. Tem uma geração de direita ainda viva – Kassab é de direita, Alckmin é de direita – que tem um modus operandi dos caras da antiga, de usar a força, o poder.” A seguir, a entrevista (Inês Castilho).



Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?

Preferiria começar por uma desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito satisfeita sob um regime autoritário , sobretudo se conduzido mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro, soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.

O que é preciso para mudar isso?

Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que educar.

Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.

“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta mesmo.

Por onde começaria a reforma na educação?

Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino público teria de ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor, aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de vida, da vida cul tural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.

Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?

Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.

Esses temas ainda não mobilizam?

Existe alguma preocupação da opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações, as empresas – estas investindo cada vez mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.

Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional, como se está comprova ndo, mostra-se completamente despreparada para articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica antropocêntrica do Cristianismo.

Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições dominantes no presente século.

Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é fazer rally no Pantanal…

É uma situação difícil: falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do transporte por carro individual numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.

Você está dizendo que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?

O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária, então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.

A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação de troca energética com a natureza não cabe na matriz econômica do capitalismo.

Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma situação planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país periférico, uma plantation relativamente high tech que abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos bem ne sse momento, mas de forma alguma em posição de controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.

E como você avalia a relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as realidades do Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?

O projeto de Brasil que tem a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país numa fantasia country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica da ditadura e a do governo atual. Muda ram as condições políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos, entre ou tros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.

É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso,o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.

Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.

Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?

A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?

Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão — mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.

E como você vê o jovem nesse contexto?

É muito difícil falar de uma geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram enormemente.

Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?

No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio passado (passado?) escravista.

Outra mudança importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e congêneres está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.

E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?

Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que são a grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator de desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasi leiro vier a acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das redes.

Por isso se intensificam as tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnolotica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito cuidado.

Você imagina um novo modelo político?

Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.

Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções sociocultur ais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Capital financeiro e mudança climática

Capital financeiro e mudança climática

“Estamos diante de um conflito de dimensões históricas: de um lado, a comunidade científica advertindo para que não se queime as reservas de combustíveis fósseis, do outro, as empresas e investidores que possuem interesses em realizar seus ativos (extrair e usas essas reservas). Quem prevalecerá?”, interroga-se Alejandro Nadal, em artigo publicado no jornal mexicano La Jornada, 06-02-2012. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.
As forças do capital financeiro tornarão muito difícil frear a mudança climática. Alguns dizem que a estr utura do setor financeiro não facilitará a transição para uma economia de baixo carbono. O problema é mais grave: o sistema financeiro é um potente obstáculo para prevenir uma catástrofe derivada do aquecimento global.

Para estimar os alcances do perigo é importante relembrar alguns dados. Na atualidade, a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera chega a 394 partes por milhão (ppm). O CO2 é o gás de efeito estufa mais comum (não é o único, nem o mais potente). Os modelos mais desenvolvidos sobre mudança climática apontam que somente abaixo de 450 ppm de CO2 existe uma alta possibilidade de manter o aumento de temperatura dentro da casa dos doi s graus centígrados. Os cientistas consideram que esse limite não deve ser ultrapassado caso se queira evitar uma mudança climática catastrófica.

Estudos científicos consideram que para aumentar significativamente a probabilidade de permanecer abaixo desse limite mundial, é necessário limitar suas emissões, no período 2000-2050, para 886 gigatoneladas de dióxido de carbono (GTCO2). Na primeira década do século, foram emitidas 321 GTCO2, dessa forma, fica-nos disponível apenas um volume de 565 gigatoneladas para o período de 2010-2050.

Dados da organização “Carbontracker Initiative” revelam que se fossem extraídas e queimadas as conhecidas reservas mundiais de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás), teríamos emissões superiores a 2.795 GTCO2. Isto quer dizer que estas reservas possuem cinco vezes mais carbono do que o limite acima mencionado, que é de 565 GTCO2. Extrair e usar reservas poderia levar a concentração de CO2 na atmosfera para 700 ppm, o que mudaria o planeta da forma como o conhecemos.

As reservas de combustíveis fósseis das 200 empresas mais importantes de carvão, petróleo e gás no mundo (empresas que negociam nas bolsas de valores) possuem reservas com um potencial de carbono de 745 GTCO2. Ou seja, caso estas empresas extraiam e queimem suas reservas, estaríamos ultrapassando em 180 GTCO2 o volume que está disponível para o período de 2010-2050 (as 565 GTCO2 mencionadas acima).

O problema é ainda mais sério porque estes números não incluem as empresas estatais e muito menos consideram as gigantescas reservas de gás natural dos xistos nos Estados Unidos e em numerosos outros países.

A questão é que as reservas nas mãos dessas companhias se encontram assentadas em seus livros e balanços, com um enorme valor monetário. Uma avaliação destas empresas admite que tais reservas serão efetivamente utilizada s, o que significa que haverá extração. Do ponto de vista contábil, não importa para ninguém se a utilização dessas reservas é suficiente para ultrapassar os perigosos limites dos dois graus centígrados. A mudança climática não é um conceito contábil. Dizendo de outra forma, caso existisse uma autoridade capaz de aplicar a restrição das 565 GTCO2, nos próximos quarenta anos, estas companhias poderiam queimar apenas 150 GTCO2. O restante, o carbono não injetado na atmosfera, seria ativo sem valor e se traduziria em perdas colossais para os investidores que comprometeram investimentos nessas empresas.

Essas 200 empresas do mundo da energia fóssil possuem um valor equivalente a 7,42 bilhões de dólares na bolsa. Os países com maior potencial de gases estufa, nas reservas de companhias que negociam na bolsa, são Rússia, Estados Unidos e o Reino Unido. E nas bolsas de valores de Londres, São Paulo, Moscou, Toronto e do mercado australiano até 30% da capitalização do mercado está vinculada a combustíveis fósseis.

Estamos diante de um conflito de dimensões históricas: de um lado a comunidade científica, advertindo para que não se queime as reservas de combustíveis fósseis, do outro, as empresas e investidores que possuem interesses em realizar seus ativos (extrair e usas essas reservas). Quem prevalecerá? Nos últimos 30 anos, o setor financeiro do mundo foi capaz de dominar a política macroeconômica. As prioridades da política monetária e fiscal do mundo inteiro respondem, atualmente (inclusive em meio à crise), às necessidades do capital financeiro. Por que seria diferente no âmbito da política sobre a mudança climática?

No momento atual, carecemos de um regime regulatório internacional, que permita pensar que a economia mundial pode reduzir sua pegada de carbono na atmosfera, dentro da velocidade que se requer. O Protocolo de Kyoto é uma quimera, e a única coisa que estabelece é um “compromisso” para chegar a um acordo em 2015, que deverá entrar em vigor em 2020. No setor financeiro, abrigam forças que objetarão fortemente a um acordo que evite o perigo da mudança climática catastrófica.